Zimbo, meu anjo protetor


Uma amiga espírita me disse algumas vezes que neste mundo existem seres que surgem de vez em quando nas nossas vidas para nos proteger, nos dar alegrias, aliviar nossas aflições. Espíritos encarnados ou não, bichos ou pessoas. São anjos.
Esse meu relato é sobre alguém que me surgiu durante viagem de duas semanas pela Ilha Grande.
No primeiro dia, em caminhada com destino à praia Lopes Mendes, após subida bem puxada, eu ia descendo uma ribanceira, quando cruzei com um casal, um homem e uma mulher, os dois cabeludos, roupas coloridas, mochilas nas costas e um grande cachorro vira-latas cinza e branco, bem peludo indo atrás deles.
Nós nos olhamos, nos cumprimentamos, mas minha atenção estava nas pedras a vencer, com medo de escorregar e me machucar. Finalmente, toquei os pés na areia da praia de Palmas, corri direto pra água e mergulhei. Foi quando percebi que aquele cão deixara para trás seus supostos donos para vir no meu rastro.
Gritei chamando o casal. Os dois já distantes lá em cima, quase sumidos nas árvores, se viraram e eu os alertei sobre o animal. O homem respondeu gritando que aquele não pertencia à eles, era solto na ilha, não tinha dono.
Nessa altura, o meu mais novo companheiro já estava dentro d’água, circulando em volta de mim, me chamando para brincar.
Com cautela, eu o acariciei, ensaiei uma conversa e sai pela areia procurando algo para jogar, brincadeira ideal de socialização com os bichos. Achei coco e galhos. Ele, vigoroso, disparava e pegava tudo depressa. Mas não devolvia. Deixava cair na areia e se jogava na água. Eu ia lá, catava o brinquedo e tornava a jogar. Ficamos assim um tempinho até retomar meu objetivo e alcançar Lopes Mendes.
Ele foi comigo.
Naquela última praia, acomodou-se à sombra de uma amendoeira.
Um pescador trouxe água pra gente e eu fui para o mar pensando em um nome para batizá-lo. Na minha cabeça, a música Zambi (Edu Lobo) cantada pela Elis Regina rodava. Fiquei matutando... Zambi, Zumbi, Zambê... Acabei em Zimbo.
Zimbo seria o seu nome enquanto estivesse comigo.
A fome apertou. Eu ficara tempo demais ali e levaria uma eternidade para chegar à vila do Abraão. O que fazer? Nada de diferente. Sufocar a vontade de comer e retornar.
E lá foi Zimbo me acompanhando de volta.
Em Saco de Palmas, encontrei um simpático casal, Odile e Renée, tentando arrancar uma imensa jaca de uma jaqueira. Eram franceses e moravam em São Paulo. Com eles, um casal de filhos adolescentes. Generosos, me presentearam com uma parte daquela fruta. Aquele seria meu almoço. Sentei-me à beira d’água e fui destrinchando, colhendo os bagos. Zimbo ao meu lado, parado, sem o menor interesse.
“O que é que você vai comer, hem, amigão?”
Os franceses se despediram e planejamos um novo encontro para mais tarde.
Não sei quanto tempo fiquei ali comendo aquilo, mas quando quis me levantar, cadê que conseguia? A jaca pesava no meu estômago. E agora?
Rolei para dentro d’água. Eu me senti um boi, um hipopótamo.
Como digerir o suave banquete?
Finalmente arrumei forças para ficar de pé e caminhar feito uma tartaruga e cumprir aquela saga. A noite já caía quando cheguei ao acampamento na Vila do Abraão.
Zimbo estancou bem na entrada.
Acreditei que entraria comigo. Nada disso. Deu meia volta e sumiu na rua escura. Certamente eu não o veria mais.
Porém, no dia seguinte, uma surpresa feliz: Zimbo já estava de tocaia, pronto para novo passeio e se saracoteou todo quando me viu.
“Você de novo, rapaz!”
Dei-lhe carinho e fomos.
Quis fazer uma nova trilha e cruzamos as ruínas do velho presídio, uma cachoeira, um pontilhão destruído. Em breve, a praia da Feiticeira.
Dois caras de Brasília, Carlos e Luiz, se juntaram à nossa jornada. Conversamos muito, comparamos a qualidade de vida do Rio de Janeiro com a capital do país, falamos de política e nos divertimos a vera com o comportamento do cão que, a cada praia que surgia, disparava para dentro d’água. Esbanjava pura alegria.
Numa birosca do Boqueirão, almoçamos anchova. De acompanhamento, arroz com camarão. Zimbo teve direito a uma boa parte.
Conta paga, os brasilienses se despediram. Seguiriam adiante até o Saco do Céu.
Decidi voltar.
Achei que Zimbo poderia querer trocar de dono e acompanhá-los, mas isso não aconteceu. Seguiu fiel comigo.
E, no acampamento do Abraão, a mesma coisa se repetindo: Zimbo paralisou diante da entrada, deu meia volta e sumiu.
Pela manhã, tudo de novo. Lá estava o cão.  
Foi assim durante toda a minha estada na ilha.
Não sei explicar. Só sei que ele se afeiçoara a mim e eu a ele.
Numa dessas incursões pela ilha, meu amigo me deixou apreensivo. Atravessávamos tranquilamente um caminho reto pelo meio da mata, quando escutamos um barulho de galhos secos se quebrando. Algo se mexia, espreitava.
Zimbo rosnou, farejou e se meteu depressa no meio das folhagens. Sumiu.
Preocupado, chamei por ele. Nem sinal. Pensei em entrar ali, mas não me arriscaria. Repeti o chamado várias vezes. Após cinco minutos, ele apareceu lá adiante com carrapichos grudados no pelo e no focinho. Fiquei sem saber de nada.
Prosseguimos.
Com meu guarda-costas, conheci dezoito praias, rios, belos cenários em caminhadas exaustivas, mas divertidas.
No último dia, já me sentindo dono daquele animal, decidi levá-lo para morar comigo na cidade grande. Desmontei a barraca, guardei tudo e tomei o rumo do cais.
Ele me acompanhando.
Na plataforma, conversei com o barqueiro que tentou demover-me da ideia:
“Esse cachorro é daqui. Ele não vai querer entrar na barca não, moço.”
Não quis acreditar. Estava seguro do meu propósito.
Comprei o bilhete e entrei pelo píer. Avistei a família de franceses que acenaram para mim. Retribui o aceno e me virei para mostrar a eles o companheiro que iria conosco. Mas, para minha surpresa, Zimbo paralisara lá atrás. Não caminhara um centímetro sequer.
Eu o chamei e nada. Insisti. Nenhum movimento. Apenas me olhava fixamente.
Resolvi trazê-lo na marra.
Larguei as bagagens no chão e voltei. Prestes a tocá-lo, ele recuou. Avancei e o agarrei. Ele resistiu e se soltou. Tentei duas, três, quatro, cinco vezes. Eu o agarrava, ele se debatia e se desvencilhava de mim.
O povo todo atento. A barca apitou. Entrei em desespero. Não iria sem ele.
Renée veio para me convencer a desistir daquilo. Não havia jeito.
E o último apito avisou da partida imediata. Fui obrigado a embarcar.
Uma tristeza gigantesca.
A barca começou seu movimento e a vila do Abraão foi se afastando devagar.
Meu amigo de quatro patas diminuía de tamanho, ficava para trás, mas continuava lá, paradinho, seus olhos cinza ainda concentrados em mim.
Chorei como criança.
Contei essa história para minha amiga espírita que garantiu:
Zimbo era um anjo. Meu anjo protetor na ilha. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O gambá e a careca do papai

Viva Mario Pereira, grande amigo, maravilhoso saxofonista