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Mostrando postagens de 2019

O pestinha da excursão

A situação contada aqui aconteceu de fato. Eu, minha família e amigos rumo a uma colônia de férias em Campos do Jordão. A disposição dentro do ônibus era a seguinte: os adultos todos na frente, a meninada do meio para trás, com os mais bagunceiros nos últimos assentos. Ali, o banheiro com porta defeituosa que não trancava. Saímos bem cedo e a viagem se iniciou alegre na primeira hora, com muitas conversas, a garotada puxando música, os gaiatos gritando coisas engraçadas. Nas horas seguintes, sossego. Porém, na subida da serra, estrada íngreme, intermináveis curvas, a porta do banheiro iniciou seu bailado irritante. Ela se abria e fechava, batia pra cá, batia pra lá. Naquele momento, a turma da algazarra instigava um dos meninos, o que era famoso por suas traquinagens. Vinha um, desferia-lhe um tapa na nuca e se escondia depressa. Vinha outro, repetia a façanha. E foram tapas, tapas, tapas. Ele reclamando, tentando reconhecer o agressor. Alguém soltou um deboche para atiçá

Flanando por Santa Teresa

          Relendo sobre a morte do artista plástico Jorge Selaron, inevitavelmente, me teletransporto para meu tempo de morador de Santa Teresa. O chileno, cujo sobrenome era Morales, veio para cá em 90 e escolheu aquele bairro para morar e deixar sua obra impregnada, eternizada ali, como a famosa escadaria de azulejos que nos leva até o convento. Fecho os olhos e me vejo novamente lá, em uma das minhas quase diárias caminhadas noturnas com minha cockerzinha preta, subindo a Joaquim Murtinho, as luzes da cidade lá embaixo, o relógio da Central, o Cristo Redentor... No Largo do Curvelo, ultrapassamos o bonde, ainda apinhado de gente e conduzido pelo motorneiro Nelson. Alguns conhecidos me cumprimentam. No lado oposto da rua, minha vizinha Goretti vai arrastada pelo labrador Fred. Acho graça, mas me dou conta que Milla faz o mesmo comigo. Dos sobrados, escuto o som dos televisores, quase todos sintonizados no mesmo jornalismo. De brincadeira, imagino quais as notícias minhas eu poder

Vitórias e um fracasso em comércio informal

          Em tempos bicudos, propus à minha amiga Simone que inventássemos algo que melhorasse nossa situação financeira. A ideia era fabricarmos biscoitos amanteigados. - Biscoitos? Não sei fazer biscoitos, Beto. - Mas você tem mão boa, Simone. Sabe fazer pães e bolos. Podemos aprender. Pesquisamos receitas, maneiras variadas de confeccioná-los e transformamos a pequena cozinha do apartamento dela no louco e enfarinhado laboratório. Fizemos experimentações de ingredientes, com muitas fornadas que não deram certo. Quando, finalmente, pegamos o jeito, inventamos combinações de sabores. Os amanteigados acrescidos de gergelim, amêndoas, conhaque, chocolate, doce de leite, passas ao rum, também foram ganhando formatos variados para serem melhor identificados. Calculamos as porções e distribuímos em saquinhos plásticos, fechados por fitas coloridas, etiquetados e arrumados numa cesta grande de vime. Seguimos para a feira hippie de Ipanema. Nossa estratégia de vendas: para ca

Quebra-nozes

          O rádio sobre a mesa do escritório anunciava a estreia do balé Quebra-nozes no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Regina, borboleteando a esferográfica, diminuiu o volume do aparelho, desviou seus olhos da pilha de papéis, voltou-se para mim e mandou o comentário: - Você acredita que nunca vi um balé na vida? - Acredito. Mas sempre há tempo. - Topa ver esse aí comigo? - Sim. Topo sim. - Vou descolar os ingressos. Ela se levantou bruscamente e saiu da sala carregando a papelada, sua voz enérgica de gerente ecoando ordens, se perdendo no ruído das máquinas de impressão daquele velho sobrado da Rua do Lavradio. Ali eram produzidos banners e todo tipo de material plástico, mas também em tecido, acrílico, ferro, vidro e madeira. Conheci Regina graças aos meus trabalhos de criação como free-lancer. Estreitamos amizade e ela me quebrou galhos, deu pitacos certeiros, indicou-me locais de bons serviços e preços em conta.   Mulher prática, avessa às meias palavras, d

A velhinha da janela

          Quase diariamente, meu trajeto pela Rua Baltazar Lisboa era marcado pela troca de acenos com uma vovozinha de olhar arregalado, protegida pelas grades de uma janela a observar os que passam. Ocupando todo o batente, quase amontoados, bichinhos de louça - cães, gatos, galinhas, vacas, tartarugas, sapos, coelhos - alguns com cabeças balançantes, a dividirem com ela aquela função de vigilância. Certa vez, quis trocar palavras com a curiosa senhora, perguntar-lhe se tudo ia bem. Ela esbugalhou mais os olhos e me respondeu através de frases incompreensíveis. Em seguida, despe jou uma coleção de palavrões. Entendi que não estava com seu juízo em estado perfeito. Sendo assim, nosso relacionamento seguiu como sempre, reservado aos tchauzinhos e sorrisos até o dia em que cai doente. Fiquei fora de combate por um bom tempo. Quatro meses. Vencida a doença, retomei meus hábitos, minhas saídas. Ao passar pela rua, a surpresa: a janela fechada. Dias se seguiram assim. Resolvi pergunt