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Uma festa no Céu

          São Genésio e um querubim correram para avisar a São Pedro que uma leva de gente acabava de atravessar os portões do Firmamento. - Vieram de terras tropicais, aquelas que, por muito tempo, diziam ser ali o Paraíso. Pretensiosos eles - disse o querubim num tom debochado. - Mais brasileiros – refletiu Pedro, direcionando olhar reprovatório ao insolente – Vamos recebê-los. Enquanto iam, Genésio também comentou: - A coisa anda estranha por lá, senhor. Muita pobreza, doença, desigualdade. E seus mandatários são piores que o Cão, o Coisa Ruim. Pedro sinalizou para que silenciasse, ao avistar os recém-chegados. De fato, era um grupo grande, com um barbudo bem à frente a observar ao redor com surpresa. - Então... Isso tudo aqui... É verdade ou ilusão? – perguntou o intrigado. - Vocês irão descobrir. Agora só precisam seguir por aquele caminho. Ele lhes levará ao descanso eterno. Obediente, o grupo se aventurou por aquela trilha de terra batida, muito florida, muito

A casa da esquina

          Eu e minha irmã, ainda pequeninos, atravessamos a Rua General Roca de maneira irresponsável, enfrentando os carros que vinham na nossa direção, agarrados às mãos da nossa tia Célia, corações aos pulos, apavorados com a mulher furiosa que nos perseguia aos berros. Num relance, vi os olhos dela faiscando. Só nossa tia, comportamento adverso, achava graça daquela aventura e, enquanto nos guiava naquela carreira, virava-se para a outra e mostrava a língua, provocando. A travessia arriscada nos deu alguma vantagem e logo alcançamos a casa da esquina, a morada da minha avó materna. Cruzamos o jardim, entramos batendo a porta com força, corremos ofegantes para a janela mais próxima e espiamos pelas frestas da veneziana fechada. Lá fora, a constatação assustadora: o portão ficara aberto. Segundos depois, nossa perseguidora adentrava nossos domínios. Nas mãos, um pedaço de pau. Minha tia abriu rapidamente a veneziana, mostrou a face debochada e gritou: - Vitória maluca! Vitória

Beto e sua banda

          Bem no comecinho da minha trajetória como cantor, recebi ligação de certo Luizinho, se dizendo empresário da noite de Muriaé (MG) que, com base nas boas referências das irmãs Castro Mayrink, minhas queridas amigas residentes naquela cidade, queria saber se eu integraria a programação da sua mais recém-inaugurada casa noturna. Ele precisava com urgência de novos artistas. Anos antes, eu me apresentara lá, levado por um amigo meu do Rio, o Magoo. O Primeiro Passo era um sobrado pequeno de janelões compridos, paredes verdes, com a proposta de ambiente intimista, meia luz, música instrumental baixinha ao fundo, mas logo se tornou badalado demais, lotado de gente até na escadaria, público atraído pelos desconhecidos cantores de música popular brasileira a revezar o microfone naquela peleja contra o vozerio e o tilintar de copos. Imprescindível o repertório que caísse no gosto da turma barulhenta para transformá-la no coro dos entusiasmados. Minha presença carioca ali ganhou no

A pianista do shopping

          “Pelo galo não cantar, o dia não vai deixar de raiar”. Li em voz alta a frase retirada do livro “Almanhaque” do Aparício Torelli (Barão de Itararé). Tornei a repeti-la, enquanto Simone me trazia um copo com água. Eu acabara de chegar esbaforido ao seu apartamento em Ipanema. - Pronto. Eis a frase do nosso dia. Agora podemos agitar por aí. Aquilo se convencionou. Todas as vezes que eu adentrava o apartamento dela, abria displicente aquele livro e colhia uma frase no rodapé da página, como uma forma de celebrar nosso encontro. Minha loura companheira de bagunças veio com a novidade: - Você não imagina o que eu descobri. Sabe o Cassino Atlântico? O shopping? - Sei. O que tem? - Tem uma senhora bem idosa tocando piano lá na meiuca da tarde. Achei graça daquela palavra meiuca”. Ela riu junto. - Um piano naquele shopping sem graça? - Vamos até lá ver? Que tal? Vamos chamar a Alayde. Topei, apesar de surpreso, porque Simone não era muito afeita em sair com dia

A cozinheira impecável

          Em visita ao amigo Victor Hugo, eis que ele me convidou a almoçar, todo animado com a cozinheira nova. - Ela me foi muito bem recomendada – sussurrou – Cuidadosa, limpa, cozinha maravilhosamente bem. Depois, aumentando o volume da voz, fez o comunicado à dita cuja que agia lá nos fundos: - Dona Edneia! Meu amigo Beto vai almoçar com a gente, tá? De onde estávamos, aquele compartimento precioso da casa era bem visível. Pude ver uma senhora magra levantando a tampa de uma panela no fogão e jogando pedaços de algo dentro. Largou utensílios na bancada e veio até a sala, pano de prato em um dos ombros, fungando e esfregando o nariz. - Seu Victor. Já desossei o frango, fiz o arroz e o feijão. Só me falta agora preparar a salada que é a minha especialidade. O senhor vai amar. Dito isso, a modesta retornou à função. Posicionou-se diante da pia e, de costas para nós, iniciou a lavagem das hortaliças. Ia manuseando folhas de alface para ajeitá-las no interior de uma salad

Um Halloween em Portugal

          O engarrafamento ia longe pela Avenida Infante Dom Henrique e eu, dentro do ônibus, me afligia com o provável atraso. Marcara com Arthur sete horas em ponto na entrada da Starbucks do Rossio, mas, pelo andar da carruagem... Já havíamos estado juntos semanas antes naquela estação de trens, finalzinho de tarde sossegada, pouca gente na rua e, ao contrário do que eu imaginara, não brindamos nosso encontro com a famosa ginjinha, mas sim com a cerveja da Taverna Imperial, bem ao lado do Hotel Avenida Palace. Alguns pedintes e um senhor bem vestido fingindo vender óculos, mas oferecendo drogas, encurtaram nossa permanência ali. Dispensamos o Elevador de Santa Justa e, subindo a pé o Bairro Alto, vi descer um grupo gargalhante de homens rosados, carecas, vestindo camisas pretas com detalhes em amarelo. - Parecem alemães. De fato eram. Na Bertrand, a maior e mais antiga rede de livrarias do país, o livreiro comentou da partida de futebol entre o Borussia Dortmund e o Sporting