Postagens

Mostrando postagens de julho, 2011

Uma amizade sincera (Clarice Lispector)

Imagem
Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada. Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comenta

O voo (Menocci del Pichia)

Imagem
Goza a euforia do voo do anjo perdido em ti. Não indagues se nossas estradas, tempo e vento, desabam no abismo. Que sabes tu do fim? Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas. Conserva a ilusão de que teu voo te leva sempre para o mais alto. No deslumbramento da ascensão, se pressentires que amanhã estarás mudo, esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta. Canta. Canta para conservar a ilusão de festa e de vitória. Talvez as canções adormeçam as feras que esperam devorar o pássaro. Desde que nasceste não és mais que um voo no tempo. Rumo do céu? Que importa a rota. Voa e canta enquanto resistirem as asas. (Menocci del Pichia)

Gentileza gera...

          A chuva dera uma trégua naquele início de noite de sábado. Muita água ainda descia do morro, quando vi passar ao longe Seu Tibúrcio, prestes a encarar uma ladeira bastante enlameada. O magro octogenário todo arrumadinho no seu terno cinza seguia para casa. Preocupado, imediatamente, montei na minha moto cinquenta cilindradas e emparelhei com ele se equilibrando na derradeira pedra de meio fio, sem saber como prosseguir. Naquele trecho da rua o paralelepípedo já não mais existia. Só lama, muita lama. "Sobe aqui, Seu Tibúrcio. Sobe que eu levo o senhor até lá em cima." O elegante ancião olhou para a máquina rosnando, surpreso com o insano convite. "Sou um senhor de idade. Não tem como eu andar num troço desses." "Se o senhor se segurar firme, a gente consegue. Prometo ir bem devagar.” “Você garante que não vou cair?” “Caso sinta que está escorregando, avise que eu paro." "Mas eu estou de terno... É um terno novo..." El