Gentileza gera...


          A chuva dera uma trégua naquele início de noite de sábado. Muita água ainda descia do morro, quando vi passar ao longe Seu Tibúrcio, prestes a encarar uma ladeira bastante enlameada. O magro octogenário todo arrumadinho no seu terno cinza seguia para casa. Preocupado, imediatamente, montei na minha moto cinquenta cilindradas e emparelhei com ele se equilibrando na derradeira pedra de meio fio, sem saber como prosseguir. Naquele trecho da rua o paralelepípedo já não mais existia.
Só lama, muita lama.
"Sobe aqui, Seu Tibúrcio. Sobe que eu levo o senhor até lá em cima."
O elegante ancião olhou para a máquina rosnando, surpreso com o insano convite.
"Sou um senhor de idade. Não tem como eu andar num troço desses."
"Se o senhor se segurar firme, a gente consegue. Prometo ir bem devagar.”
“Você garante que não vou cair?”
“Caso sinta que está escorregando, avise que eu paro."
"Mas eu estou de terno... É um terno novo..."
Ele relutava. Examinou o chão da rua que virara um charco, a lama que escorria mais adiante. E eu ali insistindo.
Resolveu arriscar. Levantou a perna esquerda com dificuldade, montou na garupa, se ajeitou e avisou que estava pronto.
“Podemos ir. Mas vá devagar, hem?”
Eu me conscientizava da responsabilidade por conduzir aquela pessoa tão frágil, ao mesmo tempo em que estava feliz por prestar-lhe auxílio.
Certa vez, logo que adquiri aquele veículo, ofereci carona para uma senhora que vinha carregada de sacolas debaixo de sol a pino. Ela aceitou minha gentileza e montou na garupa. Pendurei suas sacolas no guidão e acelerei. Percorremos duas quadras inteiras em alta velocidade sem que ela dissesse palavra.
Muito bom quando podemos ser úteis aos outros. Imaginei que ela estivesse satisfeita com aquela inesperada ajuda. Porém, ao chegamos diante da sua casa, ela desmontou e deu uma tonteada. Apresentou-me suas mãos:
“Olha só o que essa bodega fez comigo! Olha só!”
Os dedos estavam vermelhos, macerados no selim, onde ela se agarrara como uma desesperada. Em seguida, apontou para a queimadura que se fizera na perna direita, ao grudar-se ao cano de descarga. Agarrou as sacolas com raiva e entrou praguejando.
Um frio percorreu minha espinha ao lembrar aquele momento desastroso.
Não vacilaria, não repetiria tal situação com aquele senhor, figura tão querida do lugar.
Com cautela movi o punho do acelerador e a moto fez seu movimento lento. Seria uma velocidade bem reduzida, conforme havia lhe prometido. Percorremos da metade até o final de um trecho semiplano sem dificuldade.
Dali em diante, a subida.
"Tá tudo bem aí, Seu Tibúrcio?"
"Sim. Dentro do possível."
“Agora vamos encarar a ladeira.”
Naquela rua íngreme, os pneus dos carros que passaram haviam deixado valas fundas e compridas iguais riachos a escorrer.
Fiz uma breve parada para analisar a situação. Como vencer aquilo?
Mirei a roda da frente para uma daquelas línguas d’água. O jeito seria encaixar-nos ali para subirmos até o final.
Respirei fundo, tomei coragem e acelerei. A moto deu uma leve titubeada ao entrar no canal. Depois iniciou uma subida reta. Dali, só tranquilidade.
"Ufa! E aí, Seu Tibúrcio? Tudo bem?"
Silêncio.
"Seu Tibúrcio... Tá tudo bem? Seu Tibúrcio! Seu Tibúrcio!"
Nenhuma resposta.
Parei e constatei: a garupa vazia. E assombrado, vi o pobre homem todo embecado rolando ladeira abaixo. Chegou a dar uma meia cambalhota para trás.
Voltei com a moto.
"Meu Deus!!!!! Seu Tibúúúúúúrcio!!!"
Estendi-lhe a mão. O estatelado recusou irritado.
“Ah... Sai com essa droga pra lá.”
Preferiu levantar-se sozinho, batendo as mãos no terno que de cinza virara marrom da lama que corria e o sujara dos pés à cabeça. Eu fiquei arrasado por vê-lo daquele jeito.
“Puxa, Seu Tibúrcio... Não sei o que dizer... Peço mil desculpas...”
“Tudo bem, tudo bem. Mas pode me deixar que eu vou sozinho.”
E seguiu caminho sem mais se preocupar por onde pisava.
Meu auxílio fora desastroso.

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