Beto e sua banda


          Bem no comecinho da minha trajetória como cantor, recebi ligação de certo Luizinho, se dizendo empresário da noite de Muriaé (MG) que, com base nas boas referências das irmãs Castro Mayrink, minhas queridas amigas residentes naquela cidade, queria saber se eu integraria a programação da sua mais recém-inaugurada casa noturna. Ele precisava com urgência de novos artistas.
Anos antes, eu me apresentara lá, levado por um amigo meu do Rio, o Magoo. O Primeiro Passo era um sobrado pequeno de janelões compridos, paredes verdes, com a proposta de ambiente intimista, meia luz, música instrumental baixinha ao fundo, mas logo se tornou badalado demais, lotado de gente até na escadaria, público atraído pelos desconhecidos cantores de música popular brasileira a revezar o microfone naquela peleja contra o vozerio e o tilintar de copos. Imprescindível o repertório que caísse no gosto da turma barulhenta para transformá-la no coro dos entusiasmados. Minha presença carioca ali ganhou notinha no jornal local, instigando os curiosos. Eu me lembro das mocinhas serelepes e seus bilhetinhos, algumas vindo até minha mesa para dizer qualquer coisa, comandadas pela esfuziante Zanzão, uma gordinha bonita, metida em roupas coloridas, a boca brilhante no tom e cheiro de morango a emitir gargalhadas estrondosas, só equiparadas com as do Magoo, o gerente. Foi naquela casa que começou minha amizade com as irmãs Nanda e Monica Mayrink. Uma boa recordação. Mas o Primeiro Passo não mais existe.
- O que você costuma cantar? - perguntou a voz do outro lado da linha.
Citei as músicas românticas e sambas de que gosto. Falei de Chico, Tom, Noel, Ary...
- Ary... – soltou displicente – O que mais?
- Ah... Canto Caetano, Milton...
- Milton... E o que mais?
- Gil, Tim Maia...
- Tim... Sei... O que mais?
O cara me pareceu abstraído ao que eu dizia. Percebi seu murmurar a alguém ao seu lado, depois uma resposta rápida a outro que passava. Som de pratos, louça, vozes ao longe, e os ponteiros da minha paciência ameaçando subida. Perguntei:
- Amigo... Você está me escutando?
- Sim, sim.
- Aí é mesmo um bar? Um barzinho?
- É... – gaguejou – É... É tipo um bar.
Achei a resposta suspeita. Quis saber mais:
- Com um cantinho pra músico...
Foi aí que ele pareceu despertar, porque mudou o tom de voz.
- Um cantinho não, uai. Temos palco ótimo, palco com equipamento de primeira.
Mandei a pergunta que não queria calar:
- E nossa refeição? Ao que temos direito?
- Comida e bebida liberada.
- Maravilha.
Resolvi arriscar. Combinamos o cachê e a data da apresentação. Seriam dois dias, a começar pelo feriado de 15 de novembro.
Sexta e sábado. Duas noites inteiras de cantoria no tal barzinho.
Para a missão mineira, convidei o violonista Zé Paulo, com quem eu dividia o palco do Othon Palace no Centro do Rio e, também, o jovem Ricardo Sardinha, um autodidata que aprendera a tocar violão e piano folheando revistinhas de banca de jornal. Assim que souberam do acerto, as irmãs Monica e Nanda ficaram numa felicidade só. Eu me hospedaria com os dois músicos na casa delas e ainda participaríamos do churrasco no sábado pelo aniversário do Tupiara, o patriarca da família Castro Mayrink.
Na data combinada, desembarcamos antes do meio-dia na rodoviária de Muriaé, no exato momento em que um carro de som passava avisando sobre uma grande atração na cidade. Não conseguimos entender o que se dizia.
Seguimos direto para a casa dos Castro Mayrink, onde um almoço dos deuses nos esperava.  Já ajeitados na mesa, diante daquelas apetitosas maravilhas fumegantes, novamente o carro de som na rua. E pudemos, finalmente, entender o que anunciavam: “Hoje, no Sabor da Terra a grande atração: Beto e sua banda! Beto e sua banda! Beto e sua banda! Hoje, no Sabor da Terra, Beto e sua banda!”
- Beto e sua banda... – repeti confuso – Será que esse Beto...
- Claro que não. Se fosse, seria “Beto e sua bunda” – brincou Ricardo Sardinha.
Achamos graça. Almoçamos e deitamos para um breve descanso. E o carro de som passando e anunciando “Beto e sua banda”.
Às 15h, de posse do endereço, seguimos para o barzinho, para a passagem de som. Na rua, ao cruzarmos por um jornaleiro, li a manchete do Correio Muriaense anunciando “Beto e sua banda no Sabor da Terra”.
Alguns metros adiante, uma faixa atravessava a avenida com o dizer: “Hoje, Beto e sua banda no Sabor da Terra”. Vi duas outras faixas com a mesma mensagem. E o carro de som circulando pelas ruas a todo volume: “Hoje! Beto e sua banda! Beto e sua banda no Sabor da Terra! Não perca a grande atração! Venha se divertir, venha dançar com Beto e sua banda! Beto e sua banda! É hoje, minha gente”.
- Como é o nome do barzinho aonde nós vamos? – quis saber Zé Paulo.
Eu não soube responder. Em momento algum, meu contratante falara o nome do seu estabelecimento e eu sequer perguntara qualquer coisa às meninas. De súbito, uma estranha sensação me veio. Mas tudo haveria de dar certo naquela noite.
Ao chegarmos ao dito local, não identifiquei vestígio qualquer de barzinho aconchegante. O que havia naquela rua era uma muralha a se perder de vista feita de estacas de madeira na vertical, igual estojo de lápis.
- Mas... Isso aí é um forte apache¹
Acima do portão fechado, uma placa confirmava: “Sabor da Terra”.
Gelei.
- Jesus, Maria, José... Somos Beto e sua banda.
Empurrei o portão tremulo e constatei. Era um lugar imenso. Imenso, imenso, imenso, imensamente imenso. Verdadeira arena para rodeios. Por um caminho de pedras, ladeado por mudas de palmeiras, atravessamos extenso gramado até chegarmos a uma choupana gigante. Eu e meus companheiros nos sentimos os irmãos Villas-Boas adentrando território indígena.
Ali, muitas mesas e cadeiras. Um palco alto na extremidade direita. Um funcionário cabeludo, parecendo um índio, nos recebeu. Depois foi lá dentro chamar o patrão. Veio um gordinho branco, careca, olhos claros. Era o Luizinho.
Cumprimentou-me e estranhou meus dois acompanhantes.
- Então essa é a sua banda?
- Sim – respondi ao visível desprezo.
- Tá certo. Vejam tudo lá com o técnico do som.
O equipamento era realmente espetacular. Fizemos os ajustes, enquanto eu refletia no alto daquele palco, olhando o mar de mesas e cadeiras, sobre o motivo do tal Luizinho ter ocultado a realidade daquele espaço. Uma esperteza. Fechou comigo um cachê barato e investiu pesado na divulgação: faixas, carro de som, anúncios em jornal e rádio para a grande atração do feriado: “Beto e sua banda”.
Prometia ao povão um grande baile.
Senti um calafrio. Se fosse hoje, eu tiraria aquilo de letra. Mas, naquela época...
Às nove da noite, estávamos a postos. A casa cheia, mesas quase todas ocupadas. Às 21h15, Zé Paulo subiu sozinho e iniciou uns solos espetaculares de bossa nova. No terceiro número, o Luizinho veio aflito e sussurrou-me:
- A que horas vocês vão começar?
- Começar o que?
- A música.
- Mas... Isso que o Zé Paulo está fazendo é música – respondi chocado.
- Eu sei... Mas é que o povo quer ouvir o cantor.
- Ah, tá. Não seja por isso.
Subi ao palco e mandei de primeira “Pra machucar meu coração”, música do Ary Barroso. O povo parou momentaneamente de conversar. Algum impacto eu causara. E fui seguindo nessa linha: Cartola, Nelson Cavaquinho, Noel...
Novamente o Luizinho veio e me chamou no canto:
- Cadê a música?
- Como é?
- A música.
- Ora... Francamente...
- Me deixa explicar. O pessoal quer dançar. O prefeito está aí com a família reclamando.
Mirei na direção do dito cujo, que abriu os braços, num gesto de quem está inconformado. Um casal que estava com ele se levantou e veio para a pista. Pararam na minha frente e armaram pose de dança. A intenção era me provocar. Macaquearam passinhos e rodopios de rock, fizeram caretas e retornaram para a mesa às gargalhadas. Meu sangue ferveu.
Escolhi então uns sambas do Paulinho da Viola.
A frieza do público imperava até a vaia contida vir de longe e uma bolinha de papel arremessada na nossa direção. Em seguida, vieram os pedidos, uma enxurrada de papeizinhos: “Canta Gian & Gilvan”, “Vai um Zezé di Camargo?”, “Sabe cantar lambada?”, “Manda um sertanejo aí, pô!”, “Minha mulher quer que você leve Ciúmes”.
Eu lia os bilhetes e os empilhava sobre a caixa de som. Meus nervos em pandarecos. Zé Paulo não se abalava. Até achava graça de tudo. Aliás, ele não se alterava nunca. Músico cascudo, acostumado a tocar em orquestra de baile e a encarar todo tipo de situação. Seria capaz até de cochilar tocando.
- Você está rindo, é? – reclamei transtornado – Estão prestes a nos linchar.
Ricardo Sardinha tomou coragem:
- Deixa comigo.
E mandou o repertório de músicas mineiras: Beto Guedes, Milton, Lô... Ninguém se animou. E mais reclamações e bilhetes com pedidos de axé e sertanejo universitário. Nada surtia efeito ao nosso favor. Ricardo tentou conquistar a galera complicada contando um causo mineiro. Ninguém riu. Ninguém gostou. Emendou piada de coxo bem na hora em que um homem arrastando de uma perna entrava.
Era só bola fora.
Voltei com o Zé para o palco olhando o relógio.
- Vamos cantar estritamente o que combinamos e seja o que Deus quiser. Daqui a pouco acaba e a gente cai fora desse lugar maldito.
E assim o fizemos. Cantei sem parar, não olhava para ninguém, não dava pausa para descanso. Contei minuto a minuto. Não aconteceu outro conflito durante o restante da nossa apresentação. Encerrei nervoso, frustrado, arrasado. Sequer comemos, bebemos água. Uma maluquice.
Fui até o Luizinho, reclamei do nosso acerto, daquele equívoco todo e exigi a pizza maior e mais cara da casa para comer fora dali. Sai com a cabeça estourando, jurando não repetir aquele programa de índio. Eu era muito inexperiente para lidar com aquilo.
Não agradamos.
Na manhã seguinte, amargando o fracasso, fomos curtir o churrasco do Tupiara. Foi aquela animação. O divertido aniversariante logo exigiu que eu cantasse “As rosas não falam” e “O mundo é um moinho” do Cartola. Cumpri o prometido. Cantei. Dentre os convidados, havia um rapaz chamado Henrique, que revelou ser habilidoso no pandeiro. Vendo-o tocar, uma luz me acendeu. Fui até o quarto, fiz anotações num papel e voltei aos meus companheiros de enrascada:
- Hoje é nossa segunda noite no Sabor da Terra. E vai ser um arraso.
Provoquei perplexidade.
Antes das nove, adentramos o malfadado forte apache, que já se encontrava mais cheio que na noite anterior, com um novo integrante da banda: Henrique e seu pandeiro. Avistamos um cabeludão no palco na montagem de um teclado e toda uma parafernália. Luizinho se espantou ao nos ver ali de novo:
- Não sabia se vocês voltariam ou não...
- Trato é trato, meu caro. Vamos cumprir.
- Claro... Claro... Quanto aquele lá do teclado... Sempre anima bailes na cidade. Você se importa dele tocar um pouco?
- Problema algum. Ele pode tocar nos nossos intervalos.
Cumprimentamos o cabeludão e ocupamos o palco. Ele foi se sentar perto, com um sorrisinho desafiador. Tirei do bolso o papel com as anotações. E mandamos um repertório completamente diferente da noite anterior. Muito sambão, muita música suingada, muito pop, sambas-enredo... O povo caiu na pista. E o cabeludão com seu teclado a esperar o momento em que atuaria para nos desbancar. Eu até propus na simpatia que ele nos acompanhasse. Não ousou.
Eu, já mais esperto, determinei quatro longos intervalos de descanso. Logo no primeiro, mandei vir tudo o que tínhamos direito de comida e cerveja, para compensar a escassez do show anterior. Acenei para que o tecladista fizesse as honras. Ele foi. E mandou seu axé e sertanejo. A tribo, acostumada com ele, delirou. Não me abalei com aquilo. Deixei que tocasse a vera, enquanto enchíamos nossas panças. De vez em quando, o cara olhava para mim querendo saber se era hora de encerrar suas tecladas e eu, com a boca cheia de pizza, sinalizava para que continuasse, para que tocasse o quanto quisesse. Eu estava achando tudo aquilo ótimo, queria a felicidade total e esquecer o estresse, o desastre da noite passada.
No segundo set, o tecladista recolheu seus equipamentos e sumiu. Cumprimos nossa maratona com sucesso. Eu acompanhado pelo violão preciso e experiente do Zé Paulo e o ágil e moderno do Ricardo Sardinha. Henrique fazendo evoluções no pandeiro.
O último set, propositalmente curto para dar um sabor de quero mais, no derradeiro acorde, fez o povo inteiro de pé gritar: “Por que parou? Parou por que?”.
Enfim, nossa noite de glória.
Embolsamos a grana e saímos pela madrugada, exaustos, contentes, rindo muito, trupicando pelas ruas de Muriaé.  
Muito se comentou sobre Beto e sua banda.

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