A casa da esquina


          Eu e minha irmã, ainda pequeninos, atravessamos a Rua General Roca de maneira irresponsável, enfrentando os carros que vinham na nossa direção, agarrados às mãos da nossa tia Célia, corações aos pulos, apavorados com a mulher furiosa que nos perseguia aos berros. Num relance, vi os olhos dela faiscando. Só nossa tia, comportamento adverso, achava graça daquela aventura e, enquanto nos guiava naquela carreira, virava-se para a outra e mostrava a língua, provocando. A travessia arriscada nos deu alguma vantagem e logo alcançamos a casa da esquina, a morada da minha avó materna. Cruzamos o jardim, entramos batendo a porta com força, corremos ofegantes para a janela mais próxima e espiamos pelas frestas da veneziana fechada. Lá fora, a constatação assustadora: o portão ficara aberto. Segundos depois, nossa perseguidora adentrava nossos domínios. Nas mãos, um pedaço de pau.
Minha tia abriu rapidamente a veneziana, mostrou a face debochada e gritou:
- Vitória maluca! Vitória maluca!
De imediato, ouvimos a resposta de ódio da outra:
- Branca azeda! Branca azeda! Eu vou te pegar, branca azeda!
Desferiu golpes na janela inimiga e só os interrompeu quando ouviu nova provocação, só que vinha da outra extremidade da casa.
- Vitória maluca! Vitória maluca!
E para aquele lado, a irada correu. E mais pauladas.
Nossa avó Nadina, ocupada que estava na cozinha, mãos enxugando no avental, veio para por fim naquela brincadeira sádica.
- Pare com isso, Célia. Está assustando as crianças.
Foi lá fora e acalmou a mulher.
O nome Vitória não combinava em nada com a figura triste daquela pobre negra, meia idade, que vivia por ali esmolando e oscilando de humor, sempre falando sozinha, às vezes rindo, outras horas, praguejando, xingando, cuspindo nos passantes. Chegava a desnudar-se. Minha avó a ajudava dando-lhe comida, roupas, banho e moradia. Ela aceitava, desde que pudesse se aninhar no cantinho norte do jardim daquela casa. Outros que tentaram reabilitá-la, investigando a possibilidade de parentes, a levaram para um abrigo. Ela fugiu. A rua era sua casa.
Vitória e minha tia Célia mantinham uma relação curiosa, quase sempre de afeto, mas também de implicâncias. Conversavam na varanda, davam risadas, falavam de paqueras. Mas nos dias surtados daquela mulher, minha tia a provocava, adorava atiçá-la. Foram anos naquilo.
Aquela casa onde minha avó Nadina viveu por muitos anos com o marido – meu avô Eugênio – e suas três filhas – minha mãe Astrea Maria, Célia Maria e Sonia Maria nesta ordem - ocupava toda a curva do encontro entre as ruas General Roca, Soriano de Souza e Barão de Mesquita. Espaçosa, amplos cômodos, duas salas, três quartos, boa cozinha, quintal. Mobília escura, jarras, jarrões portugueses, lustre de cristal sobre a comprida mesa de jantar, pesadas cadeiras de encosto alto, um grande espelho de moldura banhada a ouro, o fascinante relógio cuco. Na cristaleira, cálices, conjuntos de delicadas xícaras japonesas, talheres de prata, bibelôs, cada peça ali muito bem arrumada. Havia também um piano silencioso. Sobre ele, uma cuia de chimarrão com suporte imitando patas de animal, objeto que me fascinava, além do cuco. Na outra sala, contrastando com toda aquela sobriedade, dois pequenos sofás estilo JK de napa azul que, anos depois, se mudariam para a casa da vizinha ao lado. O som de uma vitrola atravessava o dia tocando um pouco de tudo. Ouvia-se Dalva, Angela Maria, Elizeth e Cyro Monteiro, Sérgio Reis, Roberto Carlos, Wanderléa e a turma da Jovem Guarda. Num tempo que eu não conheci, era o som do violão do meu avô que ocupava aqueles espaços, até a noite em que ele disse que precisava ir à farmácia. E nunca mais voltou.
Minha avó, emocionada, me contava de como o pai dela se enfatiotava todo para ocupar sua cadeira cativa no Municipal.  Também falava de um senhor muito velho que morou por um tempo lá, o tio Gastão, primo do meu avô. Habilidoso, transformava miolo de pão em impressionantes bichinhos: vacas, cavalos, tartarugas, cães, gatos, aves... Uma perfeição.
Bicho de verdade era o que mais havia na casa das Cavalcanti. Eram cães, gatos, aves, um cágado, um sagui, um entra e sai de “gente”, a maioria, filhotes abandonados no jardim. Citarei alguns desses moradores: duas gatas preguiçosas, Poupée e Marilyn, um papagaio nervoso, um corrupião serelepe e um mico travesso.
O papagaio odiava minha avó. Só de ouvir sua voz, se arrepiava todo, revirava os olhos, virado no capeta. Por isso, a necessidade da corrente para contê-lo. Uma vez, provocou um rasgo no dedo da minha avó. Precisou dar ponto.
Já o corrupião a adorava. Vivia solto pela casa e sua negritude, a camuflá-lo nas sombras dos ambientes, provocava frequentes sustos. O mico adorava se enroscar em qualquer vasta cabeleira. A gata Poupée, já bem velhinha, esclerosou e pegou a mania de defecar no fogão. Um dia, assim como fizera meu avô, saiu para a rua e nunca mais voltou. Durante um período em que minha avó precisou se hospitalizar, o corrupião não quis mais comer. Adoeceu e morreu de tristeza.
Minha mãe se recorda de um tio-avô que, de vez em quando, vinha de surpresa trazendo cavalos. A garotada da vizinhança logo vinha para usufruir daquela novidade e cavalgar pelos arredores. Depois, corriam todos para as partidas de vôlei que aconteciam no final da Rua Soriano de Souza, quando esta era sem saída. O ator Hugo Carvana fazia parte dessa patota. Também se brincava de pique, amarelinha, queimado, tamborete. Em tempos remotos, a alegria daquela esquina era diária e às vezes ia até tarde. Só foi interrompida pela gripe espanhola, com muita gente doente jogada por aquelas calçadas. A morte se espalhando. 
Já no meu tempo de criança, no grande jardim da casa, ornado de roseiras e pequenas árvores a escorarem o muro baixo, aconteciam os lanches da tarde. Sentados em cadeiras de ferro ao redor de uma mesa de tampo de vidro da varanda, esperávamos pelo padeiro. E ele vinha na bicicleta, com as delícias ocupando seu cesto gigante: pães de sal ou açucarados, bolos, sonhos, doces de batata-doce, de abóbora, de leite, mariolas, peitinhos de moça, queijadinhas, balas, suspiros... Por ali também passava o vassoureiro, o pipoqueiro, o vendedor de algodão doce e o de pirulitos caramelados e de cones de biscoito, aqueles que se desmancham na boca. Ao longe, a gente já o ouvia batendo seu ferrinho, fazendo “ling-ding, ling-ding, ling-ding”.
Na esquina direita, havia o famoso Sheik, lanchonete de comida árabe que não primava muito pela higiene, mas suas esfiras eram deliciosas. Na calçada oposta, uma construção comprida, assemelhada com imenso vagão de trem, era a fábrica Confiança de Tecidos, com seus janelões quase ocultos pelos ciprestes e as grades verdes. Numa noite, vimos descer sobre aquele teto um estranho clarão que se ampliava e se reduzia na intensidade. Durou pouco. De repente, foi se elevando, subindo, subindo... Ganhou a velocidade de um raio e sumiu no céu. Os que pararam na rua para ver, afirmaram que era balão. Alguém sugeriu ser uma estrela cadente. A maioria apostou no disco voador.
Pelo lado esquerdo, o posto de gasolina que, em outra noite, também protagonizou espetáculo luminoso. Pegou fogo. Foi um corre-corre danado. Todos temiam que explodisse e devastasse tudo nas proximidades. Não explodiu. Mais adiante do posto, a Praça Lamartine Babo. Eu me lembro da sua inauguração, que contou com a presença do governador Carlos Lacerda e do grande número de fãs a acenar corvos feitos de cartolina. Ali, na Avenida Maracanã, um entroncamento, onde acontecia a mudança de direção do bonde nos trilhos, com o rio do mesmo nome a correr por entre as duas pistas, se escondendo por debaixo da sequência de casinhas operárias. Dali até a Rua Maxwell era um bairro que não existe mais: Aldeia Campista, onde morava o escritor Nelson Rodrigues.
- Vitória maluca! Vitória maluca!
As provocações da minha tia pareciam não ter fim. E a outra descendo a paulada na veneziana da janela.
- Branquela! Branca azeda dos infernos!
Minha avó, ocupada que estava na cozinha, mãos enxugando no pano de prato, veio para acabar com aquilo.
- Pare com isso, Célia. Deixe a coitada. E está assustando as crianças.
Nisso, a campainha toca. Era minha avó paterna, Vó Anita, para uma visitinha com surpresa: um bolo, sua especialidade.
- Meu Deus! É a Dona Anita!
A porta se abriu e a visitante foi puxada para dentro depressa.
Eu me lembro desse dia. Vó Nadina, carinhosamente, acalmando a enfurecida.
Minutos depois, minha tia Célia e Vitória, pacificadas, comiam juntas o bolo na varanda.
O tempo passou. Vitória sumiu, sumiram os bondes, a fábrica Confiança foi demolida para erguerem um shopping com edifícios.  Ainda há o posto de gasolina, mas mudou-se dono e a marca algumas vezes. Após anos de existência, também se foi o Sheik e suas esfiras. Agora é um comércio popular de roupas.
Nestes últimos anos, passar por ali virou meu trajeto constante, driblando gente apressada, trânsito doido, muitos camelôs, mendigos, muita sujeira. Naquela esquina, onde passei parte da minha infância, agora existe um restaurante. Estive certa noite com amigos para tomarmos sucos. Enquanto papeávamos, eu olhava aquele espaço amplo de mesas e cadeiras, imaginando em que parte da outrora construção eu estaria naquele momento. Talvez a sala de jantar ou a varanda. Da casa da minha avó não ficou qualquer vestígio. E, tragicamente, repetindo como no passado, a gripe espanhola, veio o deserto, o vazio, o silêncio, o Covid-19, vírus mais ameaçador.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O gambá e a careca do papai

Viva Mario Pereira, grande amigo, maravilhoso saxofonista