Uma festa no Céu


          São Genésio e um querubim correram para avisar a São Pedro que uma leva de gente acabava de atravessar os portões do Firmamento.
- Vieram de terras tropicais, aquelas que, por muito tempo, diziam ser ali o Paraíso. Pretensiosos eles - disse o querubim num tom debochado.
- Mais brasileiros – refletiu Pedro, direcionando olhar reprovatório ao insolente – Vamos recebê-los.
Enquanto iam, Genésio também comentou:
- A coisa anda estranha por lá, senhor. Muita pobreza, doença, desigualdade. E seus mandatários são piores que o Cão, o Coisa Ruim.
Pedro sinalizou para que silenciasse, ao avistar os recém-chegados. De fato, era um grupo grande, com um barbudo bem à frente a observar ao redor com surpresa.
- Então... Isso tudo aqui... É verdade ou ilusão? – perguntou o intrigado.
- Vocês irão descobrir. Agora só precisam seguir por aquele caminho. Ele lhes levará ao descanso eterno.
Obediente, o grupo se aventurou por aquela trilha de terra batida, muito florida, muito arborizada. Aos poucos, objetos luminosos de diferentes tamanhos e formas iam surgindo, se movimentando por entre as árvores e por sobre suas cabeças. Pareciam planetas, estrelas, cometas. Um espetáculo magnífico. Alguém reconheceu aquilo como criação do mestre Palatnik.
- É dele com certeza.
Logo na primeira curva, viram sentado um desenhista com jeitinho de criança, rodeado de anjinhos, a rabiscar, numa enorme folha de papel, desenhos infantis. Era o Daniel Azulay. Logo adiante, ao redor de numa mesa, os escritores Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna, Edison Borba, Ciro Pessoa e Luiz Alfredo Garcia Roza brindavam com suas xícaras de chá, recepcionados por Darcy Ribeiro e Antonio Callado. E clicados pela poderosa câmera do fotógrafo Antonio Guerreiro.
Viram passar a Carmen Mayrink Veiga com a Gisela Amaral de braços dados com Grande Otelo e Monsueto.
- Meu Deus! – exclamou uma mulher do grupo, caindo de joelhos – Então aqui é mesmo o Céu? O Céu do Brasil?
Outra mulher, também maravilhada, concordou:
- Com certeza. Espero encontrar meus velhos companheiros de rádio.
Um homem a interpelou:
- Estou reconhecendo a senhora. É atriz, pois não?
- Sim. Também radialista. Eu me chamo Daisy Lúcidi. E você?
- Apenas um humilde fã da Emilinha. Quero muito encontrá-la.
O líder barbudo os interrompeu:
- Vamos continuar. Ainda não encontramos um abrigo.
O caminho os levou até um rio. Por ali foram beirando na direção de uma montanha. A subida parecia interminável. Alcançado o topo, avistaram um imenso vale, de onde se ouvia vozes, risos, músicas. Com a descida, computaram uma hora de caminhada. Mas ninguém manifestava cansaço ou sede. Um vasto gramado, macio, brilhante, um campo de futebol se abriu diante deles. Em uma das traves de gol, jogadores de tempos longínquos, como Nilton Santos, Didi, Garrincha e outros, batiam uma bolinha. No lado oposto, acontecia uma mesa redonda com Paulo Henrique Amorim, Ricardo Boechat e Sérgio Noronha debatendo com os pilotos de Fórmula 1 Niki Lauda e Ayrton Sena, e o jogador de basquete americano Kobe Bryant.
Mais uma vez, o barbudo deu seu comando:
- Vamos em frente, minha gente.
A partir dali, a estrada se ampliou e foram aparecendo, de um lado e de outro, simples casinhas, alguns de seus moradores nas janelas acenando. No meio delas, um castelo sombrio, mas não abandonado. Era um entra e sai de gente, câmeras, refletores, ordens sendo dadas por um megafone.
- Um filme! Estão fazendo um filme ali!
Uma mocinha muito bonita, talvez assistente de direção, veio matar-lhes a curiosidade:
- Nossos cineastas se juntaram com outros grandes para uma espetacular história.
Foi então que, em meio a tantos da equipe, assistentes e atores, reconheceram os famosos diretores que, em dupla, confabulavam: o Nelson Pereira dos Santos com o Stan Lee, o Glauber Rocha com o Bertolucci e o Zefirelli com o José Mojica Marins.
- O Zé do Caixão aqui?! – exclamou um assustado.
- E por que não? – rebateu a mocinha.
- Ele só fazia filmes com demônios, muita obscenidade, nudez...
- E o que é que tem? Um homem bom, talentoso, criou sua arte e – sussurrando-lhe ao ouvido – eu também pratiquei minhas ousadias e, no entanto, estou aqui.
E retomando o tom de voz de antes, a garota convidou:
- Há vagas para todos que quiserem fazer parte dessa produção. Alguém se habilita?
O líder barbudo tomou a palavra:
- Há um entre nós que deve aceitar. Precisamos ouvi-lo.
Um espaço entre os viajantes foi se abrindo para revelar um senhor magrinho, acabrunhado, olhar triste, que gaguejou para responder.
- Eu... Eu já estou muito velho... Não tenho condições. Qual a minha serventia?
- Toda – disse a espevitada – Aqui não há velho, nem moço. Aqui você poderá ser o Xerife, o Tio Maneco, o que você quiser ser. Vem com a gente Flavio Migliaccio.
O rosto dele se iluminou. Tomou as mãos dela, que tratou de avisar:
- Você fará dupla com Jesus.
- Jesus? Aquele que dizem ser filho do Homem? Eu nunca levei muita fé de que...
- O nome é o mesmo, mas este é o Chediak. Também chegou faz pouco tempo.
Seguiram os dois serelepes para o set de filmagem.
O líder da turma coçou a barba.
- Essa garota... Tão linda... Seu rosto...
- É a Leila Diniz – disseram alguns de pronto.
Mas ainda havia chão a percorrer e a paisagem foi mudando de tonalidade, como se, a qualquer momento, fosse anoitecer. Um serafim passou voando para acalmá-los, dizendo que não existia pressa. Porém, ali não era a parada final.
A caravana pôs-se de novo em movimento por aquela rota, tornada sinuosa, envoltos pelo trinar de pássaros. Aos poucos, aquela sinfonia foi dando lugar ao som de instrumentos vindos de um sobrado, grudado na encosta de um monte. Ali acontecia uma Jam Session. Foram espiar.
Lá dentro, um encontro nunca imaginado. Arthurzinho Maia, no baixo, fazia dobradinha com o violonista Paco de Lucia e com os saxofonistas Aurino de Oliveira e Lee Konitz. Numa mesa de canto, esperando a vez, Marcelo Yuka e Binho Schaefer se levantaram para aplaudir o Michel Legrand, que acabava de chegar.
A euforia daquele incrível encontro fez com que parte do grupo decidisse ficar por lá. A outra metade seguiu viagem.
Uma noite azulada se fez, assim que alcançaram uma ampla praça lotada de gente, índios, negros, brancos com suas danças, seus rituais, povo do candomblé, umbanda, budistas, evangélicos, hare-krishnas e tantos outros, todos ali misturados e em plena harmonia. No coreto, a iyalorixá Stella de Oxossi gargalhava com Padre Quevedo. Num palanque, Chico Anysio e Arnaud Rodrigues reviviam “Baiano e os Novos Caetanos”, aplaudidos por Agildo, Jorge Dória e Carvalhinho. Uma Brasília amarela circundou com os Mamonas Assassinas fazendo a maior farra. Na ponta mais distante da praça, num amplo anfiteatro, uma constelação de estrelas se prepara para estrear dois espetáculos: um drama de época - com Paulo Autran, Dina Sfat, Sérgio Cardoso, Tonia Carrero, Italo Rossi, Ruth de Souza, Caio Junqueira, Maria Isabel de Lizandra, Joel Barcellos, Márcia Real e João Carlos Barroso, sob a direção do Domingos de Oliveira – e uma comédia ambientada em um convento de freiras, escrita pela Fernanda Young, com Marília Pera, Lady Francisco, Nair Bello, Consuelo Leandro, Etty Fraser, Dercy Gonçalves, Rogéria e Zilda Cardoso, com a participação da Doris Day. Jorginho Fernando aceitou dirigir e incluiu sua mãe Hilda Rebello no elenco. O ator Ornelas Filho foi escalado para viver mais uma vez o Saci Pererê do Sítio.
No lado oposto, um anfiteatro igual, dava início a um desfile de grandes vozes da música popular brasileira, com produção de André Midani, direção de Bibi Ferreira e apresentação de Hebe Camargo e Gugu Liberato. Primeiro, vieram os cantores: Walter Franco, Tunai, Tavito, Carlos José, Jerry Adriani, Jorge Goulart, Luiz Vieira, Gabriel Diniz, João Gilberto em dupla com Serguei em Chega de Saudade, e o cantor português Roberto Leal com seu Tiroliro. Depois vieram as cantoras: Nara Leão, Selma Reis, Ademilde Fonseca, Carmélia Alves, Nora Ney, Rosita Gonzalez, Zezé Gonzaga, Violeta Cavalcante, Cássia Eller, Deise Cipriano da Fat Family, a frenética Edyr de Castro cantando Perigosa, Miúcha, acompanhada pelo piano do Tom com Pela Luz dos Olhos Teus, Marisa Gata Mansa cantando A Viagem, Dalva visceral com Segredo e Dolores Duran com A Noite do Meu Bem.
Elizeth se superou com Canção de Amor. Angela Maria arrebatou com Babalú. Carmen Miranda e o Bando da Lua foi um número a parte com Tico-tico no Fubá.
Emocionante o reencontro da Sylvia Telles com sua filha Claudinha. Chorosas de felicidade, abraçadas, cantaram Amendoim Torradinho.
Ataulfinho, que já estava ali há quase dois anos, cantava Leva Meu Samba em dupla com seu pai Ataulpho Alves, embargou a voz ao reconhecer sua esposa Malu, que acabava de chegar com aquele grupo de viajantes. Mais abraços e choros. Ele cantou para ela Em Você. Como encerramento, Moraes Moreira levantou o astral com o seu Pombo Correio. De bis, todos vieram ao palco para cantar Cidade Maravilhosa, do André Filho que, orgulhoso, acompanhava tudo quietinho da coxia. Tim Maia não cantou porque chegou atrasado. Mas veio.
Um clima de festa por toda a parte, uma energia forte, boa, emanando daquela gente, os que outrora tinham sido viventes das terras tropicais. O grupo de viajantes compreendeu ter chegado ao seu destino certo. Foram se dispersando pela praça, escolhendo seus lugares. Só o líder barbudo é que ainda se encontrava atordoado, sem saber para onde ir. Foi então que o querubim atrevido surgiu diante dele.
- Vem comigo, homem.
- Ir pra onde, criatura?
- Vem comigo, pô! Pelo amor a Nossa Senhora Aparecida, São Jorge, Iemanjá, Ogum, ou o que bem quiser. Venha sem reclamar.
Assim foi feito. Dobraram uma esquina e, na rua detrás, um botequim, onde acontecia uma roda de samba bem animada.
- Aqui é o seu lugar - disse o querubim, que desapareceu num raio de luz.
Aquele estabelecimento estava cheio. Lá dentro, Beth Carvalho terminava de cantar Coisinha do Pai. Pelas mesas, Wilson das Neves com Vinícius de Moraes, Villa-Lobos e Luiz Melodia; Dona Neném, Seu David do Pandeiro, Paulo, Natal e uma turma boa da Portela; Emilinha com Marlene e as Irmãs Batista; Xangô e Tantinho da Mangueira com Cartola, Dona Zica, Jamelão, Dona Neuma e Nelson Cavaquinho; Noel Rosa com Wilson Batista, Candeia, Geraldo Pereira, Jackson do Pandeiro; Braguinha com Almirante, Lamartine e Alberto Ribeiro; Ismael, Pixinguinha, João da Baiana e Donga; Sinhô com Mário Reis, Chico Alves, Orlando, Silvio e Nelson Gonçalves; Adoniran, Miriam Batucada, Dona Ivone, Clementina, Aracy de Almeida, Moreira e Bezerra da Silva. Vó Maria, Tia Maria do Jongo, Tia Ciata... Era muita gente importante se fazendo presente. Até Michael Jackson e Whitney Houston vieram e dançaram o miudinho.
O recém-chegado foi logo recebido com um forte abraço dos compositores Johnson Mayer e Elton Medeiros. Naquele momento, Clara Nunes, que assumia o microfone para cantar Nação, reconheceu no barbudo que adentrava, o autor daquela música.
Era o próprio. Seu querido amigo Aldir Blanc. Os irmãos Betinho, Henfil e Chico Mário, que ocupavam um lugar perto da janela, custaram a acreditar. Correram também para abraçá-lo. E a emoção tomou conta do botequim.
Elis, que vinha passando, com seu jeito atrevido, tomou para si o microfone e disse:
- Agora é comigo.
E com ela, todos cantaram “a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”.
Fez-se a festa sem ter hora, nem data para acabar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O gambá e a careca do papai

Viva Mario Pereira, grande amigo, maravilhoso saxofonista