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Mostrando postagens de novembro, 2012

Nomes e as falhas de memória

Na recepção de um curso de línguas no Largo do Machado, acompanhei a aflição da secretária com uma copeira diante da porta trancada do banheiro. Dizia sussurrando e pausadamente a secretária: “Eu tenho certeza. É a Dona Lúcia Terezinha que está aí dentro.” “Mas a senhora a viu entrar?” “Ver mesmo eu não vi. Mas estava agorinha conversando e depois sumiu.” Toda receosa, segurou a maçaneta e torceu bem devagar. Estava trancada. “Dona Lúcia Terezinha! A senhora está ai?” Silêncio. Tornou a chamar: “Dona Lúcia Terezinha!” Tive vontade de rir, não da situação, mas do jeito como ela dizia ‘Lúcia Terezinha’ num tom engraçado, esganiçado. Paulina, a secretária, era uma senhora dos seus setenta e poucos anos, vistosa, cabelos tingidos de castanho claro, olhos bem verdes, voz estridente saída de uma boca enorme que, quando falava, mostrava uma dentição perfeita e bem avantajada. A copeira, uma negra magrinha e despachada, deu toques fortes na porta do banheiro, mas o

Minha noiva abandonada

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Durante turnê organizada pelo compositor Johnson Mayer pelo sul do país, nossa trupe fez uma parada em Marialva (PR), famosa na produção de uvas, para almoço na Churrascaria Rodízio Coligny. Estávamos eu, Johnson com seus dois filhos e o irmão Henry na varanda do restaurante, quando uma moça bem novinha, bem humilde, linda veio nos atender. Puxou seu bloco de notas e esperou que decidíssemos o que comer e beber, em meio a tanta bobagem falada, mas nada que fosse ofensivo. Ficou ali, paradinha, confusa, até que não conseguiu disfarçar que se divertia com aquela mesa de malucos. Levou a mão esquerda à boca e ficou se segurando. Aquilo foi um incentivo para mais besteiras. Durante o almoço, todas as vezes que ela vinha, falava sempre com a voz abafada pela palma da mão. Johnson apontou para mim e perguntou se ela não estava me reconhecendo. Olhou-me desconfiada e balançou a cabeça em negativa. Ele então disse que eu era um cantor galã famoso no Rio de Janeiro. A moça me analiso

Perigosa aventura aérea

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Na volta da praia de Itaúna em Saquarema com amigos, avistei uma faixa de pano convidando para passeio de ultraleve por um precinho bem barato. No campo de aviação, dois aparelhos, dois pilotos. Um deles acabava de pousar.  Fomos até lá dar uma conferida. O passageiro, na verdade, era uma mulher, uma senhora bem idosa, imóvel, toda amarradinha nas correias de segurança. Sorria e tinha os braços meio para cima, as mãos cerradas com os dedos polegares naquele famoso gesto do “ok”. “Essa velha já deve ter pra mais de oitenta anos”, comentou uma amiga. “Pois é. Se ela teve coragem de ir nisso aí, nós podemos também. Vamos?”, desafiei. Um rapaz veio falar conosco, se apresentou e garantiu: “É seguro, não tem que ter medo, a viagem é curtinha e é o tempo todo de cinto.” “Cinto”, questionei, apesar da vontade. “Se esse troço cair, de que adianta cinto?” “Sinto muito, mas não vou não”, garantiu minha amiga com firmeza. “Ah... Vamos, Patrícia?”, insisti. “Vamos?” “Cruz cred

Um desconhecido no velório

Após um mês e uma semana internado na Beneficência Portuguesa, morreu o avô de amigos meus. Era um octogenário vigoroso, português de temperamento forte, mas um acidente vascular cerebral o derrubou. Passei uma madrugada inteira com a família na capela daquele hospital. Um dos netos surgiu com um terno antigo decidido a vesti-lo decentemente. Sugeriu que eu o ajudasse naquela função, mas não tive coragem. Um enfermeiro veio ajudar. Foi uma luta para enfiar aquela roupa no morto. Mal cabia e o dito cujo já estava endurecendo. Para completar o clima, dois homens entraram trazendo outro corpo, o de uma senhora bem gorda, que foi acomodada ao nosso lado, mas distante, porque era uma capela bem espaçosa. Daria para promover uns quatro velórios ali. Nossas vozes ecoavam quando falávamos um pouco mais alto. Quando amanheceu o dia, a família da mulher foi chegando aos poucos. Cada um que entrava, cumprimentava com a cabeça e se juntava aos outros. Aqueles dois grupos ficaram ali, lad

Um bicho diferente

Domingo de sol e, por sugestão minha, íamos eu com meu amigo Flavio, sua esposa Bianca e seus dois filhos Felipe e Vinícius subindo a trilha que começa ali na pista Claudio Coutinho, terminando no alto do Morro da Urca. Os meninos subiam reclamando muito de cansaço e de calor. Estavam contrariados, desacostumados com aquele tipo de programa. Era como uma escalada, um martírio. Para distraí-los, propusemos um jogo de adivinhação. Alguém deveria pensar em algo e responder apenas ‘sim’ ou ‘não’. E começamos. Cada um foi imaginando algo e os outros iam descobrindo. Quando foi a vez do Felipe, ele disse: “Pensei.” E vieram as perguntas. “É mineral?” “Não.” “Vegetal?” “Não.” “Animal?” “É.” “Mamífero?” “Não.” “Tem quatro patas?” “Não.” “É uma ave?” “Não.” “É um animal terrestre?” “Não.” “Então é aquático.” “Sim.” “Um peixe?” “Sim.” “Peixe grande?” “Não.” E começou uma enxurrada de nomes de peixes e o menino ia negando tudo. Tentamos descobri

Aos pés de uma mulher divina

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Eu era menino, mas ainda me lembro de uma tarde ensolarada, um chá beneficente em prol de um asilo de velhinhos que aconteceu no salão nobre do Tijuca Tênis Clube. Minha mãe trabalhava na organização daquele evento que conseguiu angariar uma boa quantidade de agasalhos, cobertores, utensílios, comida e dinheiro. A venda dos ingressos estava vinculada à promessa de um grande show de variedades: mágicos, dançarinas, desfile de roupas de um estilista do bairro, sorteio, bingo e, como atração principal, uma cantora que, naquela época, estourava nas paradas de sucessos das rádios cantando um ritmo da região norte. A cantora era famosa. Famosa também era a mãe dela, notabilizada pelos muitos barracos que armava, conhecida por se intrometer na vida amorosa e profissional da filha. Restando poucos dias para a festa, a dita mãe da cantora ligou para a organização querendo saber o valor do cachê que a filha receberia. Ao ser informada de que se tratava de um chá beneficente, mandou

Zimbo, meu anjo protetor

Uma amiga espírita me disse algumas vezes que neste mundo existem seres que surgem de vez em quando nas nossas vidas para nos proteger, nos dar alegrias, aliviar nossas aflições. Espíritos encarnados ou não, bichos ou pessoas. São anjos. Esse meu relato é sobre alguém que me surgiu durante viagem de duas semanas pela Ilha Grande. No primeiro dia, em caminhada com destino à praia Lopes Mendes, após subida bem puxada, eu ia descendo uma ribanceira, quando cruzei com um casal, um homem e uma mulher, os dois cabeludos, roupas coloridas, mochilas nas costas e um grande cachorro vira-latas cinza e branco, bem peludo indo atrás deles. Nós nos olhamos, nos cumprimentamos, mas minha atenção estava nas pedras a vencer, com medo de escorregar e me machucar. Finalmente, toquei os pés na areia da praia de Palmas, corri direto pra água e mergulhei. Foi quando percebi que aquele cão deixara para trás seus supostos donos para vir no meu rastro. Gritei chamando o casal. Os dois já distantes l

Guardado no coração

Sabe aqueles dias em que você está deprimido, se sentindo a criatura mais infeliz do universo? Pois é... Era uma terça-feira. Já passava do meio-dia e eu paralisado, os olhos congelados numa parede vazia do Centro Cultural Light. Foi quando uma voz veio me tirar daquele transe: “Vejo que você gostou da obra, porque resolveu fazer parte dela.” Eu me dei conta de que estava dentro, quase pisando numa interferência artística, como costumam chamar. Eram uns objetos disformes de gesso colocados no chão, bem no canto de uma sala de exposições. Sorri constrangido para o rapaz que me alertara. Era magro, bem moreno de pele, cabelo preto liso, cara de indiano. Vestia-se modestamente: sandálias de couro, calça verde surrada, camisa branca, um colete caqui e uma enorme mochila nas costas, completamente o oposto de mim, metido num terno e gravata. Nessa época, eu trabalhava como gerente comercial em uma editora afiliada da FIRJAN. “Eu me chamo Yohannah”, se apresentou estendendo sua mã