Nomes e as falhas de memória
Na
recepção de um curso de línguas no Largo do Machado, acompanhei a aflição da
secretária com uma copeira diante da porta trancada do banheiro.
Dizia
sussurrando e pausadamente a secretária:
“Eu
tenho certeza. É a Dona Lúcia Terezinha que está aí dentro.”
“Mas
a senhora a viu entrar?”
“Ver
mesmo eu não vi. Mas estava agorinha conversando e depois sumiu.”
Toda
receosa, segurou a maçaneta e torceu bem devagar. Estava trancada.
“Dona
Lúcia Terezinha! A senhora está ai?”
Silêncio.
Tornou a chamar:
“Dona
Lúcia Terezinha!”
Tive
vontade de rir, não da situação, mas do jeito como ela dizia ‘Lúcia Terezinha’
num tom engraçado, esganiçado.
Paulina,
a secretária, era uma senhora dos seus setenta e poucos anos, vistosa, cabelos
tingidos de castanho claro, olhos bem verdes, voz estridente saída de uma boca
enorme que, quando falava, mostrava uma dentição perfeita e bem avantajada.
A
copeira, uma negra magrinha e despachada, deu toques fortes na porta do
banheiro, mas o silêncio permanecia. Paulina levou as mãos à boca e disse:
“Meu
Deus... Dona Lúcia Terezinha deve ter passado mal, pode estar desmaiada, até
ter morrido aí dentro.”
Essa
era outra característica de Paulina: assustada e trágica.
Uma
vez, ia distraída pela calçada, quando foi abordada por um argentino. Não
pensou duas vezes. Tirou os brincos, cordão, relógio, umas bijuterias que ela
vendia no curso e depositou tudo nas mãos do homem. E saiu em carreira desabalada
gritando:
“Não
me mate, por favor. Leva tudo, mas não me mate.”
Era
simplesmente um turista querendo informação sobre uma rua. Ele teve que correr
atrás dela para devolver aquilo tudo.
Em
outra situação, Paulina entrou depressa num carro amarelo parado e disse ao
motorista surpreso que seguisse para o Leblon. Era um carro particular.
Voltando
ao caso do banheiro trancado.
“Vamos
falar com a Íldico”, sugeriu a copeira.
Íldico
era o nome da diretora, que não demorou nada a aparecer. Decidiram chamar o
zelador do prédio para arrombar a porta. Quando finalmente ele chegou com sua
caixa de ferramentas e já se preparava para desparafusar o trinco, uma
professora sisuda surgiu lá de dentro e perguntou:
“Alguém
viu o Werther por aí? Ele disse que ia ao toalete e até agora nada.”
Foram
palavras mágicas ditas num volume bem acentuado. A maçaneta se mexeu e todas
recuaram depressa. A porta se abriu e um menino bonitinho saiu lá de dentro e,
com uma tremenda carinha de safado, voltou depressa para a sala de aula.
Paulina
novamente levou as mãos ao rosto e exclamou:
“Werther!
Então era você, menino?”
Muito
engraçado o jeito como Paulina pronunciou o nome de um personagem de Goethe,
quase enrolando a língua para dizer o “R”.
Já
a professora amarrou a cara e se queixou, antes de voltar para a sala:
“Werther!
Esse garoto é impossível!”
Aquela
mulher não sorria jamais. Sempre séria, falando quase aos berros e devagar. Possuía
nome composto: Joana Angélica, que fazia questão que fosse pronunciado
inteirinho e pausadamente:
JO-A-NA
AN-GÉ-LI-CA.
Foram
muitas as vezes em que a cumprimentei sem dizer seu nome e ela frisando:
“Não
gosto do ‘senhora’. Diga JO-A-NA AN-GÉ-LI-CA. É fácil. Basta lembrar aquela rua
de Ipanema.”
Nomes
curiosos, diferentes ou compostos me despertam a atenção. Eu gosto.
Aproveitei
alguns para batizar personagens de estórias que gosto de escrever.
A
lista é comprida, alguns meus amigos: Álvaro Carlos, Hercules Alberto, Gottardo
Luiz, Sandra Cecília, Josephina Martha, Mario Robert, Kilder Willianker...
E
quando os nomes são compostos, mas também com as mesmas iniciais? Tenho o
exemplo de uma família: Reginaldo Luiz e Romilda Maria batizaram seus filhos de
Rogério Luiz, Rosangela Maria, Regina Maria e Romário Luiz.
Existem
casais com o mesmo nome. Sei de um: ele, Adair. Ela, Adair.
Na
faculdade eu tive uma colega Branca e outra Preta. A Branca era mulata e a
Preta, quase transparente de tão branca.
Quando é pouco convencional ou se é composto, memorizar
fica fácil. Porém, se é um nomezinho simples, sem qualquer glamour, decorar
torna-se um suplício.
E a dificuldade aumenta ainda mais se você passou parte da
sua vida lidando com público, que foi o meu caso, porque precisa se lembrar de
onde conhece a pessoa e qual o seu grau de intimidade com ela.
No tempo em que eu fazia recreação num orfanato de meninas em
Vila Isabel, certa vez, desenhando com elas, vivi o maior sufoco. Cada uma
pegava seu desenho e exigia que eu escrevesse no rodapé seu nome. Teria que
adivinhar e escrever. Percebi que, caso eu não acertasse, ficariam magoadas.
Fui esperto. Para cada uma eu dizia:
“Mas é claro que eu sei o seu nome. Você é a Astrovalda.”
Fui inventando o que me viesse de mais esdrúxulo na cabeça.
Deu certo. Provocava riso nelas e, desse jeito, acabaram revelando como se
chamavam.
Pela minha vida, já fui chefe de departamento pessoal,
escriturário em agência bancária e atendente de loja. Nessas funções, muitos
nomes e sobrenomes me passaram pelas vistas. Também convivi com centenas de
pessoas pelos salões do Centro de Dança Jayme Aroxa, sem falar no público dos
meus shows.
Muita gente, muitos nomes.
Volta e meia, encontro alguém de surpresa e me dá um
branco. Fico sem saber na hora de onde conheço a pessoa.
Na Praça Saens Pena, certa vez, uma garota se deparou
comigo, abriu os braços e pulou no meu pescoço. Encheu-me de perguntas,
perguntou pela minha família e falou que adorara nosso papo, que poderíamos
repetir aquele dia.
Dia? Que dia?
Diante de tanto entusiasmo, não tive coragem de confessar
que não me lembrava de nada. Resolvi descobrir através de iscas. Perguntei pela
mãe dela.
“Você esqueceu que minha mãe morreu faz tempo?”
Quase brinquei com aquela frase: “Morta pra você, mas pra
mim, continua vivinha.”
Pedi desculpas. Perguntei pelo irmão.
“E eu tenho irmão?”
“E seu namorado?”
“Ah... Para de me encarnar, Beto. Você sabe que não tenho
namorado.”
Eu sabia? Caramba... Ela não dava uma dica sequer.
Nós nos despedimos. Foi cada qual para o seu lado. Ela
feliz com nosso reencontro e eu me torturando, pensando em onde, quando e
porque estivera com aquela garota. Fiquei nesse martírio por meses a fio, até a
mente clarear. Tinha sido numa festa onde conversamos muito pouco, mas o
suficiente para ela não me esquecer.
Mas
voltemos novamente para a recepção do curso de línguas no Largo do Machado. Eu
me despedi da sempre assustada secretária Paulina e desci no elevador com a
professora sisuda. Já na rua, beijando-a, na hora de dizer seu nome, estanquei.
Joana
Angélica elevou o dedo, prestes a me reprovar, caso eu a chamasse de senhora.
Acreditei
estar preparado, lembrei que o nome era o mesmo de uma rua de Ipanema e mandei
na lata pausadamente como deveria fazer:
“MA-RI-A
QUI-TÉ-RI-A.”
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