Um desconhecido no velório
Após
um mês e uma semana internado na Beneficência Portuguesa, morreu o avô de
amigos meus. Era um octogenário vigoroso, português de temperamento forte, mas
um acidente vascular cerebral o derrubou.
Passei
uma madrugada inteira com a família na capela daquele hospital. Um dos netos surgiu
com um terno antigo decidido a vesti-lo decentemente. Sugeriu que eu o ajudasse
naquela função, mas não tive coragem. Um enfermeiro veio ajudar. Foi uma luta
para enfiar aquela roupa no morto. Mal cabia e o dito cujo já estava
endurecendo.
Para
completar o clima, dois homens entraram trazendo outro corpo, o de uma senhora
bem gorda, que foi acomodada ao nosso lado, mas distante, porque era uma capela
bem espaçosa. Daria para promover uns quatro velórios ali. Nossas vozes ecoavam
quando falávamos um pouco mais alto.
Quando
amanheceu o dia, a família da mulher foi chegando aos poucos. Cada um que
entrava, cumprimentava com a cabeça e se juntava aos outros. Aqueles dois
grupos ficaram ali, lado a lado, sussurrando, choramingando, velando seus
mortos.
Até
que num certo momento, o toque forte de telefone provocou susto. Um “trim” horroroso
vindo do outro lado do salão. Identificamos um aparelho negro, velho, desses
bem antigos com disco.
Tocou,
tocou, tocou. Ninguém do hospital vinha.
E
tocou, tocou, tocou.
Foi
dando aquela angústia. Ninguém se habilitava a atender.
Deu
uma interrompida. Depois voltou a tocar. Tocou, tocou, tocou.
Não
aguentei:
“Vou
lá.”
E
atravessei aquele salão em passadas rápidas, o toque dos meus sapatos no
assoalho querendo concorrer com aquele som.
Tirei
o fone pesado do gancho e o levei ao ouvido.
“Alô!”
Não
entendia nada do que era dito. Uma voz sumida.
“Dá
pra falar mais alto?”
Minhas
palavras se repetiram em ecos naquele espaço. Percebi os olhos de todos
concentrados em mim. Eu deveria ser mais cuidadoso, mas ali seria impossível. O
som reverberava até com a queda de um alfinete.
Eu
me senti ridículo ao abaixar o volume da voz para dizer:
“Fala
mais alto e pausadamente.”
Um
dos presentes vivos não segurou o riso, mas logo o engoliu.
Acreditando
ter compreendido, olhei para a família da morta e perguntei:
“É
alguém perguntando por um tal de Bagatela. Alguém aí se chama Bagatela?”
Acenaram
em negativa com a cabeça.
Voltei
ao telefone e respondi:
“Meu
amigo. Foi engano. Não tem Bagatela nenhum aqui não.”
Desliguei.
Atravessei
o salão com meus sapatos barulhentos. Entretanto, mal havia retornado ao meu
lugar, o telefone tocou novamente. Era um barulho ensurdecedor, infernal.
Tocou,
tocou, tocou.
Voltei
irritado ao telefone pisando com força o assoalho.
Atendi.
Novamente
a voz dizendo coisas incompreensíveis. Difícil mesmo de entender.
“Bagatela?
Mas não tem nenhum Bagatela aqui, meu amigo!”
A
voz sumida do outro lado da linha insistia e eu me exaltando:
“Não.
Não tem Bagatela aqui.”
Foi
quando notei que havia um sujeito moreno recostado lá no cantinho do salão com
um fone de ouvido. Era um maqueiro.
Apontei
na direção dele.
“Ei!
Você ai!”
Ele
estava distraído com sua música, completamente ausente balançando a cabeça em
ritmo ignorado. Alguém despertou o rapaz do seu transe com um aceno. Afastou o
fone para ouvir minha pergunta.
“É
você o Bagatela?”
Ele
sorriu e respondeu:
“Deus
me livre se alguém me chama de Bagatela. Eu sou o Junior. Cleverson Junior.”
Desliguei
sem me despedir e voltei para o meu grupo.
E
de novo o telefone tocou.
Tocou,
tocou, tocou. Um inferno aquilo.
Eu
resolvi não me mexer mais. Só que ninguém se habilitava.
Uma
senhora cutucou o maqueiro.
“Vai
lá, meu filho. Atende ao telefone.”
O
rapaz de modos displicentes foi, atendeu, disse algumas palavras e, quando
desligou, repôs o fone no ouvido.
Expectativa
geral.
Antes
de retornar ao seu posto, olhou para mim e, completamente sem noção do volume
da sua voz por causa da música que ouvia, disse quase berrando:
“Oh,
meu irmão! Não era nada de Bagatela. Estavam perguntando se ERA DA CAPELA.”
Minha
cara de tacho foi se avermelhando como pimenta, querendo ir ao chão.
Morri
de vergonha.
Todos
me olhando, alguns tentando disfarçar o sorriso. E meus amigos começaram a rir,
a rir, a rir. E a risada foi se espalhando pela capela, ecoando, uma contaminação
que atingiu o outro grupo. As duas
famílias se rasgaram em gargalhadas estridentes. Se alguém chegasse ali,
acharia que era uma festa, uma grande comemoração.
Ainda
ouvi uma mulher dizer:
“Ai,
que estou quase me mijando.”
Foi
uma reação inexplicável, uma catarse provocada pelo Bagatela.
Só
os mortos não acharam a menor graça.
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