Guardado no coração


Sabe aqueles dias em que você está deprimido, se sentindo a criatura mais infeliz do universo? Pois é...
Era uma terça-feira. Já passava do meio-dia e eu paralisado, os olhos congelados numa parede vazia do Centro Cultural Light.
Foi quando uma voz veio me tirar daquele transe:
“Vejo que você gostou da obra, porque resolveu fazer parte dela.”
Eu me dei conta de que estava dentro, quase pisando numa interferência artística, como costumam chamar. Eram uns objetos disformes de gesso colocados no chão, bem no canto de uma sala de exposições. Sorri constrangido para o rapaz que me alertara. Era magro, bem moreno de pele, cabelo preto liso, cara de indiano. Vestia-se modestamente: sandálias de couro, calça verde surrada, camisa branca, um colete caqui e uma enorme mochila nas costas, completamente o oposto de mim, metido num terno e gravata. Nessa época, eu trabalhava como gerente comercial em uma editora afiliada da FIRJAN.
“Eu me chamo Yohannah”, se apresentou estendendo sua mão pequena.
Aceitei o cumprimento, mas resolvi sair logo dali. Ele me questionou:
“Você viu bem esses objetos e o que eles representam?”
Olhei com displicência ao redor. Para mim, tudo ali não me dizia nada.
Ele então resolveu dar sua interpretação psicológica, acrescentando um contexto social, tudo em palavras rebuscadas.
“Se não é a ideia do autor, pra mim é o que vale. É o que sinto. E você?”
Tentando recuperar meu bom humor, disse meia dúzia de bobagens. No momento, só via um monte de cacarecos bons para serem mandados para o lixo.
“Muito bem. É o que você sente, é o que vale.”
E já se achando íntimo, me pegou pelo braço.
“Venha. Vamos até a outra sala. Tem uma exposição genial de quadros.”
Eram pinturas futuristas.
Yohannah tagarelava, dava seu parecer sobre cada uma das telas e eu a pensar na razão de estar ali com aquele cara, que considerei de início, um chato, um confiado, meio maluco. Não durou muito para ganhar minha confiança.
Era engraçado, inteligente, lunático, parecia ser do bem e falava com sotaque estrangeiro. Não perguntei sua origem.
Já não pensava mais na tristeza infinda que me dominara minutos atrás.
“Você ainda tem um tempinho de sobra?”, perguntou Yohannah.
“Tenho sim. Por que?”
“Queria andar pelo centro pra rever lugares que marcaram minha vida. Topa?”
Aceitei. Atravessamos a Marechal Floriano e nos metemos pelas ruas estreitas da SAARA. Entramos em sebos de livros, lojas de artesanatos e ele me apontou um sobrado caindo aos pedaços. Disse ter sido ali uma velha hospedaria e que morara num quartinho minúsculo e sem conforto. Contou-me suas noitadas com bêbados e prostitutas, um horrível incêndio num comércio de comida árabe e mais dois relatos curiosos. Eu ia ouvindo tudo, achando tudo pitoresco, divertido. Era um cara articulado, demonstrava ter vasto conhecimento e vivência de um monge.
Quis saber mais sobre sua vida. Ele disse ser formado em Filosofia, estudou Latim, Teologia, conhecia bem a Europa, viajara até o Nepal, Canadá e morou uns tempos nos Estados Unidos. Acabava de chegar do Chile e Peru.
Interrompeu seu roteiro de viagens para uma nova proposta:
“Agora eu vou te levar num lugar muito bacana.”
Entramos num prédio comercial da Avenida Rio Branco até chegarmos num centro exotérico de terapia oriental com especialistas em medicina ayurvédica, acupuntura e massagens terapêuticas. Uma senhora, que parecia conhecê-lo bem, me fez deitar num divã e eu fiquei ali por tempo indefinido relaxando, ouvindo sons de pássaros e mar. Aquele sossego, aquela paz... Muito bom tudo aquilo.
Meu novo amigo viera em momento oportuno. Como é curioso isso, pessoas que surgem meteoricamente na vida da gente e nos fazem bem.
Foi assim com uma mineirinha adorável, sorridente, de fala mansa que conheci na praia da Ferradura, durante um carnaval atormentado em Búzios. Empatia entre nós tamanha. Parecia que nos conhecíamos de sempre. Ela me contou tudo dela e eu tudo de mim. Um dia inteiro de conversas e, no final da tarde, ela avisou que partiria antes do anoitecer para Belo Horizonte. Despedida melancólica, troca de telefones.
Uma semana depois, resolvi ligar para minha nova amiga e descobri que ela falecera naquele nosso dia em terrível acidente de carro na estrada.
“Vamos acordar, meu amigo?”
Yohannah ainda tinha planos para a gente. Propôs irmos a um barzinho comemorar aquela nossa nova amizade. No Amarelinho, eu já me desvencilhara do terno e da gravata, puxara a camisa para fora da calça e arregaçara as mangas. Quando já ia pedir chope, ele disse que só beberia água. Resolvi então acompanhá-lo.
“Água é o meu balsamo.”
Naquele bar, foi a minha vez de falar, contar minhas aflições, minhas alegrias, meu dia-a-dia. Eu estava entusiasmado com o nosso encontro, principalmente depois de ter ouvido tantas coisas, relatos interessantes de uma pessoa surpreendente.
“Você me animou a planejar uma viagem bem legal.”
“Faça isso, Beto. Viajar é bom demais. Eu viajei muito. Hoje em dia, não faço planos.”
“Ora... Por que?”, estranhei.
E ele respondeu friamente:
“Já esgotei meu tempo por aqui. Estourei, entende?”
“Como assim?”
“Já ultrapassei um mês e duas semanas do meu prazo.”
E a revelação difícil de acreditar: Yohannah descobrira meses atrás ser portador de uma disfunção cardíaca, o coração aumentara muito de tamanho. E o médico calculara mais três meses de vida. Fiquei chocado com aquilo dito de forma tão serena. Ficamos em silêncio uns segundos. Que palavras encontraria para consolá-lo?
“E sua família? Você tem família?”
“Mãe e irmã. Não as vejo desde que fui morar nos Estados Unidos. Viajei logo depois da morte do meu pai.”
“Elas sabem do que se passa contigo?”
“Não contei. Não acho justo. Já sofreram demais por causa do meu pai. Apenas parei de escrever. Prefiro que pensem que eu sumi no mundo, como um filho sem juízo.”
Quis argumentar, mas o drama exposto me impediu.
“Então... seu coração é grande...”, gaguejei.
Para quebrar o clima, ele levantou o copo d’água e brindamos à vida. Em seguida, quis saber sobre minha família, meu sobrenome e o nome de cada um dos meus.
Enquanto eu falava, ele sacou de um cartão pautado em branco, desses cartões de fichário e fez anotações. Nele, assinalou a origem do Caratori e disse que o nome de minha mãe, Astréa, se tratava de uma constelação de dez estrelas na mitologia siméria-babilônica e título de Astarte, deusa da sedução, da ilusão ou magia.
Pedimos a conta. Era hora de irmos embora.
Ele me acompanhou até o prédio da Avenida Gomes Freire onde eu morava. Trocamos telefones e marcamos um novo encontro para sexta-feira. E nos abraçamos com força.
Deus dois tapas no meu rosto, apertou o indicador no meu peito bem na altura do meu coração. Estava comovido. Eu também.
Para encerrar nosso encontro, soltou uma gargalhada e brincou com sua situação:
“Meu coração aumentou pra poder caber um cara grande como você, Beto.”
Virou-se e atravessou correndo a Rua do Riachuelo até sumir.
No dia seguinte, Yohannah me ligou para saber se eu estava bem e lembrou:
“Olha... Daqui a dois dias vamos nos ver.”
“Eu sei”, respondi contente. “Na sexta. Vamos beber nossa água.”
Quando a sexta-feira chegou, nenhuma ligação dele. Liguei para seu telefone e nada.
O porteiro do prédio interfonou e eu desci até a portaria.
“Um rapaz moreno deixou esse pedaço de papel ontem aqui”, avisou.
E me entregou um envelope. Era o cartão com as anotações que Yohannah fizera e ficara em seu poder.
Por vários dias liguei para ele sem sucesso. Esperei algum retorno por semanas.
Meu amigo de um dia desapareceu para sempre.
Mas a lembrança daquele nosso alegre encontro e o cartãozinho continuam aqui guardados comigo.

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