Perigosa aventura aérea



Na volta da praia de Itaúna em Saquarema com amigos, avistei uma faixa de pano convidando para passeio de ultraleve por um precinho bem barato. No campo de aviação, dois aparelhos, dois pilotos. Um deles acabava de pousar.  Fomos até lá dar uma conferida. O passageiro, na verdade, era uma mulher, uma senhora bem idosa, imóvel, toda amarradinha nas correias de segurança. Sorria e tinha os braços meio para cima, as mãos cerradas com os dedos polegares naquele famoso gesto do “ok”.
“Essa velha já deve ter pra mais de oitenta anos”, comentou uma amiga.
“Pois é. Se ela teve coragem de ir nisso aí, nós podemos também. Vamos?”, desafiei.
Um rapaz veio falar conosco, se apresentou e garantiu:
“É seguro, não tem que ter medo, a viagem é curtinha e é o tempo todo de cinto.”
“Cinto”, questionei, apesar da vontade. “Se esse troço cair, de que adianta cinto?”
“Sinto muito, mas não vou não”, garantiu minha amiga com firmeza.
“Ah... Vamos, Patrícia?”, insisti. “Vamos?”
“Cruz credo! Tenho medo.”
“Olha”, disse o cara. “Se você se assustar, basta só tocar as minhas costas.”
Ela respirou fundo, pensou, pensou... Finalmente, concordou.
Sentou-se na cadeira detrás, colocou o capacete, foi devidamente amarrada com as faixas. O piloto assumiu seu lugar. Quando as hélices começaram a girar e a fazer um “vrummmm”, ela cutucou com força muitas vezes o ombro dele.
“Ei! Quero descer! Quero descer! Não vou! Não vou! Não vou!”
E não quis ir de jeito nenhum.
Entrei no lugar dela. Segurei os cabelos e fui enfiando-os para dentro do capacete. Naquela época, eu tinha cabelão e me bateu um receio de ser escalpelado por aquele ventilador gigante nas minhas costas. O cara novamente repetiu o texto:
“Fique tranquilo, é seguro, nada vai acontecer...”
“Já sei, já sei. Toca essa joça.”
Ele sentou-se, ligou o motor.
Ainda olhei para Patrícia, sorri e fiz uma graça, cutucando o sujeito. O ultraleve deu um impulso e subiu. Foi um movimento brusco, mas eu, sempre assimilando as coisas que me dizem, introjetei:
“É seguro, não estou com medo, nada vai acontecer.”
E fomos balançando, sobrevoando a cidade, as casas bem pequenininhas, jardins, gramados, piscinas... Tudo pequenininho. Fiquei maravilhado com o visual da praia de Itaúna indo longe, aquela extensão que passa por Ponta Negra e termina lá no final, no Pontal do Atalaia em Arraial do Cabo.
Começamos a contornar para a direita.
O piloto perguntou se estava tudo bem e avisou que passaríamos perto da igreja de Nossa Senhora de Nazareth, símbolo do lugar. Vi nossa sombra lá embaixo correndo pelos telhados, subindo pela relva do morro da igreja, passando sobre o cemitério e até entrando rapidamente numa catacumba aberta. E eu com meus botões:
“Não tenho medo, é seguro, ainda não é hora de morrer.”
Percebi o segundo ultraleve no nosso rastro, atrás da gente com outro passageiro.
Dali em diante, sobrevoamos a praia da Vila, também imensa. Seguindo aquelas areias, você passa por Jaconé, Ponta Negra, Maricá, Itaipuaçú...
Íamos bem, voávamos a favor do vento.
Mas quando o aparelho foi virando mais uma vez para a direita, já apontando o campo de aviação, começou a tremer muito, a saracotear fortemente.
O piloto iniciou movimentos agitados com os braços. Parecia um peão de boiadeiro que tenta dominar um animal bravio. Sacudíamos muito e eu pensando:
“É seguro, não estou com medo, não estou com medo, nada vai acontecer.”
Finalmente tocamos o chão, um pouso bruto, desses de se quebrar a coluna vertebral. 
“Ufa... Estou seguro, nada aconteceu”, respirei com alívio.
Porém, no que o aparelho desligou, o cara saltou ofegante, fez o sinal da cruz e disse:
“Ai... Graças a Deus.”
Ouvi aquilo e me veio um misto de terror com revolta.
“Como é que é?????!!!! Graças a Deus????!!!!
“Sim”, respondeu. “Foi o voo mais difícil que fiz na vida.”
Empalideci.
“Voo mais difícil? Mas... Você garantiu que era seguro, que não era pra ter medo.”
“Sim. Eu disse, mas não com um vento contra desses. Aqui venta demais.”
 Imediatamente me virei para ver a situação do outro ultraleve que vinha uns cem metros de altura e percebi que algo se desgrudara naquele instante dele e caia em linha reta.
“A roda!”, gritei desesperado. “A roda dele caiu! A roda dele caiu!”
Tinha sido a da direita.
Eles foram descendo, descendo, chegando... E todo mundo gritando:
“A roda! A roda caiu!”
Foi um pouso forçado. O aparelho rodou umas três, quatro vezes antes de parar.
Felizmente, ninguém se feriu.
A amiga Patrícia veio com sua censura:
“Viu só? Sabia que não era pra ir nesse troço. Uma doideira. Muito perigoso.”
Dei o braço a torcer.
“Você estava certa. Aquela senhora é corajosa de verdade.”
“Corajosa?”, ela retrucou. “Olha lá.”
E apontou na direção de um carro estacionado no outro lado da rua. Um homem carregava a anciã no colo, antes de acomodá-la no banco do carona. Ainda continuava imóvel, sempre sorrindo, as mãozinhas com os polegares para cima.
E Patrícia terminou por completar:
“A velha tem paralisia. Não se mexe. Como é que foram fazer isso com a coitada?”
Fiquei abismado. Sai dali nervoso, a ponto de ter um AVC. Nem me despedi do piloto, pela vontade de esganá-lo. Só fiz dois gestos para o alto com a mão, um “ok” e...
 O outro, melhor não descrever.
Um mês depois, li no jornal sobre o acidente no campo de aviação de Saquarema.
Um ultraleve caiu e o piloto morreu.

Comentários

Kadu Mauad disse…
Sinal da cruz três vêis!

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