Meu encontro com um rei, um velho palhaço e um garçom
Meu pai seguiu carreira
bancária num tempo em que dava prestígio se chegar ao cargo de gerente. E assim
foi. Ele passou por todas as etapas, de caixa para auditor até virar gerente de
agência no Meier. De vez em quando, eu e minha irmã íamos com nossa mãe
visitá-lo no trabalho e ficávamos ali acomodados num sofá dentro de um cantinho
especial acarpetado e com certas regalias do cargo: uma mesa bacana com o nome
dele na placa (adorava brincar com aquela placa), luminárias, plantas e quadros
enfeitando, cafezinho, água e refresco que a secretária oferecia a toda hora. E
nosso pai ali, sério, conversando com clientes.
Tudo ali respirava seriedade, o
barulho das máquinas, o falatório dos funcionários, a secretária de lá pra cá
com papéis. Mas o curioso era ver o povo que entrava e saía, gente engraçada,
outros nem tanto. Eu observava cada um e criava personagens. Alguns davam medo,
me faziam suspeitar que fossem assaltantes prestes a repetir aquelas cenas de tensão
que vemos nos filmes. Esse era o ambiente de trabalho do meu pai. O bom daquela
nova função é que ele tinha direito a boas férias e nós viajávamos todos os
anos no verão para Minas. Íamos para São Lourenço, Varginha, Cambuquira,
Caxambu, mas a nossa cidade predileta era Lambari. Naquela cidade, passávamos o dia todo no
parque andando de bicicleta, tomando banho na grande piscina, saíamos em
passeio de charrete. E sempre ficávamos no mesmo hotel, um hotel simples de
compridas janelas verdes. Foi ali que conheci um personagem curioso, marcante
na minha vida, um simpático e jovem garçom que, diariamente, vinha nos servir. A
gente se sentava e ele vinha trazendo tudo, pães, café, leite, frutas, sucos, geleias,
bolos... Por fim, depositava um prato com um queijo na forma de cone e dizia:
“Essa ricota é da casa.”
E, mal dava as costas para
voltar para o balcão, completava:
“Ricotinha faz um beeeeemmm...”
Era sempre isso. Era todo dia.
Um bordão que ele repetia. Achávamos muita graça naquilo. Ano a ano, voltávamos
à Lambari e vivíamos tudo igual. Na hora do café, ficávamos esperando o momento
dele colocar o queijo na mesa e dizer:
“Ricotinha faz um beeeeemmm...”
Os bordões marcam a gente, não
é? Principalmente quando somos crianças. Graças à maravilha tecnológica, andei
assistindo “Cassino do Chacrinha” num canal por assinatura. Ele emocionado
enchendo o Roberto Carlos de beijos.
O famoso Velho Guerreiro foi outro
personagem daquela minha época de garotice. Ele e seus bordões: “Terezinhaaaa!!!”,
“Vocês querem bacalhau?”
Em dias de festa lá em casa,
meu pai costumava imitá-lo, tornava-se engraçado, falava colocando o dedo no
nariz, diferente do gerente austero da agência bancária.
Uma vez, eu e minha família
estivemos num show do Chacrinha, onde ele apresentava vários artistas no
ginásio do Tijuca Tênis Clube. Ele chamou a Gretchen, o Gilliard, o Serguei de
batom na boca e tantos outros. Só não teve Roberto Carlos.
E quando ele dizia “Terezinhaaaa”
o ginásio em peso ameaçava desabar com a resposta em coro “Uhuuuuuu!!!”
Mas emoção mesmo foi a de ter
estado junto dele lá na agência bancária do meu pai. Bem ao lado, haviam
construído um supermercado da rede Casas da Banha e a festa da inauguração foi
um grande show na Rua Dias da Cruz com o Chacrinha, suas chacretes e... Roberto
Carlos. Vejam só.
E sabe aonde eles foram se
preparar, mudar de roupa? Na agência.
Aquele ambiente de seriedade
se transformara num grande camarim. E eu ali maravilhado vendo as poucas
chacretes se maquiando, o Chacrinha lá nos fundos e meu pai conversando com o
Roberto Carlos que ajeitava seu terno escuro (nessa época ele ainda não tinha a
mania de se vestir todo de branco). De vez em quando, olhava pra gente e sorria.
Nós ali, eu e minha irmã, no sofá da gerência impedidos de qualquer movimento.
Mas que criança resiste a um
velho palhaço?
Não me contive, saltei do sofá
e fui ver de perto o Chacrinha vestindo a casaca brilhante, colocando o disco
telefônico no peito, enquanto uma das chacretes ajeitava a cartola e seus
cabelos. Ele parado, quieto, falando baixinho.
Já pronto, afagou minha cabeça
e foi lá pra fora representar o seu papel.
Roberto Carlos ainda ficou
esperando a sua vez.
Colamos nossos rostos no vidro
da agência para ver a multidão se agitando por detrás do cordão de isolamento. O
Velho Guerreiro subiu com suas meninas num palco montado diante do novo
supermercado e disse seu bordão:
“Terezinha!!!”
E a resposta foi imediata:
“Uhuuuuuu!!!”
As chacretes fizeram sua
coreografia uma a uma. Depois ele falou tudo o que tinha que dizer sobre a rede
de supermercados até, finalmente, anunciar o rei.
E Roberto Carlos agradeceu ao
meu pai com um aperto de mão e deixou a nossa companhia. Lá na rua foi um
delírio total, uma loucura, uma gritaria de dar medo. Nessa época, ele ainda
tinha seu bordão marcante; “Uma brasa, mora!”
Um dia inesquecível.
Personagens e bordões da minha
infância.
Há alguns anos atrás, fiz uma
viagem de dez dias pelo interior de Minas, uma viagem de carro por trinta e
quatro cidades, alguns lugarejos que não constam no Guia Brasil, cachoeiras
principalmente. E voltei ao circuito das águas. Visitei São Lourenço, Caxambu, Varginha,
Cambuquira até chegar a Lambari. Revi o parque, o velho cassino e por fim, fui
me hospedar no velho hotel das nossas férias.
O tempo ali não passara. Tudo
continuava igual, as janelas verdes compridas, a recepção, o restaurante e seu
balcão de madeira.
Só não vi aquele nosso
simpático garçom.
Na hora do café da manhã,
tentei adivinhar qual seria a nossa mesa e me sentei. Um silêncio profundo. Ninguém
mais naquele refeitório até aparecer uma mocinha que pediu que eu esperasse um
pouco. Depois um senhor de cabelos bem brancos surgiu trazendo o pão, o café e
o leite. Retirou-se por uns instantes até voltar com o prato de queijo.
E uma emoção me pegou de
surpresa quando ele disse:
“Esse é da casa.”
E antes de retornar ao balcão concluiu:
“É ricota. E ricotinha faz um
beeeeem...”
Comentários
é, meu amigo, que saudades boas!
estivemos em São Lourenço, fevereiro deste ano. Talvez para o ano que vem, voltaremos lá.
bjs