Flanando por Santa Teresa
Relendo sobre a morte do artista plástico Jorge Selaron,
inevitavelmente, me teletransporto para meu tempo de morador de Santa Teresa. O
chileno, cujo sobrenome era Morales, veio para cá em 90 e escolheu aquele
bairro para morar e deixar sua obra impregnada, eternizada ali, como a famosa
escadaria de azulejos que nos leva até o convento. Fecho os olhos e me vejo
novamente lá, em uma das minhas quase diárias caminhadas noturnas com minha
cockerzinha preta, subindo a Joaquim Murtinho, as luzes da cidade lá embaixo, o
relógio da Central, o Cristo Redentor... No Largo do Curvelo, ultrapassamos o
bonde, ainda apinhado de gente e conduzido pelo motorneiro Nelson. Alguns
conhecidos me cumprimentam. No lado oposto da rua, minha vizinha Goretti vai
arrastada pelo labrador Fred. Acho graça, mas me dou conta que Milla faz o
mesmo comigo.
Dos sobrados, escuto o som dos televisores, quase
todos sintonizados no mesmo jornalismo. De brincadeira, imagino quais as
notícias minhas eu poderia divulgar em rede nacional. Talvez a elaboração
cansativa de um show meu no SESC, mas aquilo seria bem desinteressante. Poderia
contar da conversa animada com o cantor Jorge Vercillo, ou descrever as
discussões das reuniões do condomínio, quase sempre provocadas por um casal de
encrenqueiros, moradores do apartamento acima do meu. Ao passar diante da loja
de artesanatos, lembrei-me que, ali, acontecera a venda meteórica de uma
casinha-luminária minha, a que eu considerei a mais horrível já produzida.
Porém, o incrível, a entusiasmada compradora encomendou-me outra exatamente
igual.
Outras lojinhas e bares, a Padaria das Famílias no
Largo dos Guimarães. Milla me puxa vigorosa. Encontro uma fulana que não lembro
o nome, esbanjando entusiasmo assustador. Ela me revela que, após muitas
batalhas sentimentais, estava separada do marido e encontrara a liberdade num
minúsculo conjugado da Rua do Riachuelo.
A partir da rampa em zigue-zague que dá acesso a Rua
Triunfo, minha cachorrinha vai solta, fuçando, cheirando tudo, balançando as
orelhas. Aceno para o segurança dentro da cabine, sempre distraído com seu
radinho de pilhas.
De um casarão alto, cachorros nervosos
quebram o sossego da rua, incomodados com nossa presença. Milla os ignora e
segue em frente. Vai de cá para lá sondando as fendas dos paralelepípedos. O
céu está estrelado e paira melancolia.
Fico a pensar que a nossa vida é passageira e pode ser
tão simples de ser vivida, com seus muitos recomeços e possibilidades.
Seguimos
até certo ponto da rua até eu sinalizar para Milla. Ela é esperta e vem
obediente receber a peiteira de volta. Sabe que é hora de voltar. Na descida, ouço
sons de capoeira vindos do pátio de um colégio. No Curvelo, é o dedilhar de um
piano que se sobressai aos televisores, a vinheta de encerramento do Jornal
Nacional avisando que está na hora da novela.
Escuto o bonde. Ainda é o motorneiro Nelson, mas não
há passageiros.
Com a proximidade do prédio, Milla me puxa mais. Atravesso
o pátio rebocado e não evito que o portão bata com força.
Os sons do bairro e as cores do Selaron. Registros daqueles
muitos passeios.
Passeios que ainda não se acabaram.
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