Terror e pizza no elevador


A torre do Castelinho do Flamengo estava lotada para uma tarde de domingo de muito calor. Ali, o compositor mangueirense Nelson Sargento se apresentava cantando suas composições magníficas e alternando com histórias curiosas que vivenciara. Na plateia, eu, a cantora Aurea Martins, uma amiga dela chamada Luiza e dois amigos de mesmo nome: Maurício.

Quando o show terminou, Aurea propôs que fossemos todos ao apartamento dela papear. Concordamos. Mas antes, resolvemos dar uma passadinha numa pizzaria ali perto, no Largo do Machado, e compramos a que havia de maior, uma portuguesa tamanho gigante.
O prédio dela, uma construção antiga dos anos quarenta ou cinquenta, possuía poucos andares e seu apartamento ficava no segundo andar. Logo, só precisaríamos subir apenas um lance de escadas. Mas, assim que entramos no saguão, nos metemos todos depressa para dentro do pequeno elevador parado naquele momento. Realmente era um micro elevador, porque nos apertamos. A pizza teve que ser elevada para o teto.
Minha amiga comentou:
“Esse elevador é muito velho e já enguiçou algumas vezes. Será que vai aguentar?”
Ninguém levou aquilo a sério. Seria muito azar se enguiçasse naquele dia conosco.
Fechamos a porta, apertamos o botão e a porta pantográfica foi devagar se fechando. Ele iniciou o movimento de subida, mas, de repente, paralisou um metro acima.
Luiza entrou em pânico:
“Meu Deus! Ela estava certa! Enguiçou! Enguiçou! Ai, Meu Deus! O que vamos fazer?”
“Primeiro vamos manter a calma”, disse. “Vou tentar abrir e fechar isso aqui.”
Quis tocar na porta pantográfica, mas ela não deixou. Agarrou com força meu braço, as unhas cravando.
“Não! Não mexe ai! Não mexe em nada!”
“Mas Luiza... Temos que tentar...”
“Não mexe! Não mexe! Você quer deixar a Aurea nervosa? Ela já tem claustro... claustro... Como é que se fala quando alguém tem medo de lugar fechado? Claustro...”
“Claustrofobia”, completei.
Olhamos imediatamente para a outra que parecia serena e até estampava um sorriso cínico. A única que se afligia ali era justamente quem falava. A gargalhada veio inevitável. Sugeri:
“E se a gente apertar o botão da emergência?”
“Não faça isso! Não! Ninguém mexe em nada!”
Um impasse se instalou. A desesperada impediria qualquer movimento. Tentei aproximar meu dedo do botão vermelho, mas ela tornou a cravar as unhas no meu pulso.
“Não toca ai! Não toca!”
“Deixa, Luiza”, quis negociar Aurea. “Deixa ele tentar.”
Aproveitando a distração dela, meti o dedo no botão e a campainha soou forte, ecoou pelo prédio. Certamente, alguém apareceria em breve.
Um dos Maurícios se queixou:
“Meu braço está doendo de segurar essa pizza pra cima.”
“E se a virássemos?”
“Podemos também dobrar. Vai ficar desmilinguida, mas...”
Tentamos. Fomos descendo a caixa, arriando. Porém, uma calda de gordura começou a pingar no assoalho e a respingar na gente. Voltamos com a pizza para o alto. O jeito seria fazermos um revezamento de braços. Um calor enorme se fazia naquele espaço apertado.
Repeti o toque da campainha algumas vezes.
Nada se ouvia naquele prédio. Parecia um prédio fantasma.
“Tá me dando uma vontade de fazer xixi...”, avisou Aurea.
Luiza se agachou um pouco e mirou o grito na direção da janelinha da porta que ficara na altura dos nossos joelhos:
“Alguém! Por favor! Estamos presos no elevador!”
A voz dela ecoando o “Ooooorrrr”
Nada mais se ouvia.
Nova tentativa:
“Alguém! Por favor! Estamos presos no elevador!”
Na terceira tentativa, já estávamos rindo.
“Alguém! Por favor! Estamos presos no elevador!”
Aquela repetição da frase rimando virara graça, mas surtira efeito. Vimos um chumaço de cabelos grisalhos aparecer na janelinha e a voz de um senhor se ouviu:
“Quem está ai?”
E Luiza repetiu seu bordão:
“Senhor! Por favor! Estamos presos no elevador!”
“Quantos estão ai dentro?”
“Somos cinco.”
“Quem são vocês? São moradores?”
“Aqui tem uma moradora com amigos.”
“Quem é a moradora?”
“Aurea.”
“Não conheço.”
“É a moradora do 203.”
“Não conheço. Esse cheiro é o que?”
“Uma pizza. Está servido?”
Sussurrei para meus amigos:
“Será que esse homem vai querer nossa ficha completa?”
E a voz do sujeito nos preocupou:
“Olha... Hoje é domingo. Não tem zelador no prédio. Vou procurar aí fora pra ver se alguém pode vir tirar vocês. Senão, só amanhã.”
E o chumaço de cabelos grisalhos sumiu.
“Vocês viram o rosto dele. Eu não vi.”
“Talvez seja um senhor baixinho, um anão.”
“Acho que era o primo It da Família Adams.”
E voltamos às risadas. Porém, uma aflição foi se instalando.
“Será que a gente vai ter que passar a noite aqui?”
“Nem me fale isso. Nesse aperto?”
“Que calor, Meu Deus! Estou me esvaindo.”
“E a vontade de fazer xixi?”
“Pelo menos, de fome a gente não morre. Temos a pizza.”
“Alguém quer?”, ofereceu um dos Maurícios. “Está cortada à francesa. E vai esfriar.”
“Acho difícil. Aqui está um forno.”
Arriamos a pizza com cuidado e cada qual foi se servindo de um pedaço. Mastigar aliviaria nossas tensões. Mais minutos se passaram.
“Cadê o primo It, gente?”
Luiza, com a boca cheia, voltou ao texto:
“Alguém! Por favor! Estamos presos no elevador!”
Nada.
“Alguém! Por favor! Estamos presos no elevador!”
Ela foi se abaixando para tentar ver através da janelinha. De repente, deu um salto para trás, assustada com o rosto que acabava de surgir, ocupando todo aquele enquadramento iluminado. Era uma mulher muito maquiada, olhar arregalado, um véu cobrindo os cabelos indicando que era uma cigana, muito comum de se ver naquele bairro. Ela tinha um aspecto sinistro, expressão de feiticeira de contos de fadas.
Perguntou num sotaque lusitano:
“O que está a acontecer aí dentro?”
“Estamos comendo uma portuguesa”, respondeu um dos Maurícios de galhofa.
Aurea falou:
“Ficamos presos, minha senhora. Precisamos que alguém nos tire daqui, por favor.”
“E ninguém mais cá esteve?”
“Um senhor veio e disse que ia buscar ajuda, mas até agora não voltou.”
“Fiquem tranquilos. Vou falar com o porteiro do prédio aqui do lado que é meu amigo.”
A mulher sumiu.
E mais um tempo se passou.
“Quanto tempo será que estamos aqui dentro?”
“Já deve ter pra mais de meia hora.”
“Pois é... E ninguém aparece. Primeiro veio o primo It. Depois a Morticia Adams. Quem vai nos tirar daqui?”
“Alguém quer mais pizza?”, tornou a oferecer um dos Maurícios.
E todos se serviram novamente.
“Não sei se é uma boa a gente comer isso aqui dentro.”
“Pois é... Já estou com vontade de fazer xixi... Se a gente ficar enchendo a barriga e se não sairmos daqui hoje...”
“Já estou com câimbra no braço de segurar essa caixa.”
Ouvimos passos descendo as escadas.
“Estão escutando? Vem vindo gente.”
Concentramos nossos olhos na janelinha abaixo.
Luiza gritou:
“Alguém! Por favor! Estamos presos no elevador!”
Ouvimos passadas lentas, chinelos se arrastando, até que dois rostos bem enrugados surgiram na janelinha, colados um no outro. Era um homem e uma mulher muito idosos.
Um dos Maurícios não segurou o deboche:
“Credo! Estamos num filme de horror!”
Caímos na risada.
Aurea repreendeu em sussurro:
“Cuidado. É o sindico com a esposa.”
Depois, ela se apresentou:
“Sou eu, Seu Francisco. A Aurea.”
“Ah... Sim”, respondeu o homem, que apertava os olhos tentando enxergar o interior do elevador. “A senhora fique tranquila. O moço que trabalha no prédio aqui ao lado já está vindo com a chave.”
Dito isso, logo um mulato magrinho chegou, meteu uma chave na porta e abriu. Saltamos um a um aquele vão. Nada de primo It e Morticia Adams.
Já os velhos a acompanhar tudo...
Ele de pijama de bolinhas. Ela de camisola. Os dois de pantufas.
A velha senhora não escondeu sua repugnância assim que viu sair de dentro do elevador a caixa de pizza pingando gordura. Apontou imediatamente na direção da lixeira:
“Deixem essa porcaria ali.”
“Mas... É a nossa pizza. Vamos comer.”
O velho nos analisou com olhar de assassino.
O casal parecia enojado. Nada mais disseram.
E iniciamos nossa subida tentando manter o silêncio, sufocando o riso naquele único lance de escadas que nos pareceu infindo.
Subimos bem devagar porque, na nossa frente, os dois lado a lado, um pé noutro pé, degrau por degrau, iam Boris Karloff e Bette Davis. 

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