O taxista de Hamelin
Aproveitando o dia chuvoso, remexo guardados e me deparo com
o programa da peça “O Mágico do Som” (direção de Neide Lyra e músicas do
Kleiton Ramil), um encarte de quatorze páginas idealizado e confeccionado
inteiramente por este que vos escreve. O texto da peça é uma criação coletiva
inspirada no “Flautista de Hamelin” dos Irmãos Grimm. Olhando esse material,
imediatamente, sou remetido ao tempo longínquo lá da minha adolescência, uma
situação tensa que vivi junto com amigos.
Alguém tinha lido no jornal que A Flauta Mágica estava em
cartaz no Cinema Dois (Estúdio Gaumont) de Copacabana em sessão especial.
Apesar das trovoadas anunciando temporal, reunimos um grupo grande
e fomos ao Posto Seis para vermos aquele filme de Bergman baseado na famosa
ópera de Mozart (não confundir com “H.R. Pufnstuf”,
longa metragem que também foi seriado de TV).
A estória apresentada no filme é bem
diferente da do Flautista de Hamelin, porém, não
conseguimos assistir. Na hora de passarmos na roleta, Alayde, uma das meninas, a
mais novinha foi barrada. O funcionário do cinema alegou que, devido ao
adiantado da hora, ela não poderia entrar. Havia um limite de idade e já
passava de onze da noite.
Tentamos negociar
com ele, mas não teve jeito. Em vias
disso, ninguém quis entrar. Enquanto recuperávamos o dinheiro do ingresso, um
dilúvio desabou sobre a cidade.
Muita água.
“E agora? O que
vamos fazer?”
“Não sei.”
Todo mundo debaixo
de uma marquise na indecisão.
“Vamos procurar um
barzinho e esperar a chuva passar.”
“Que barzinho? Não
há barzinho legal por aqui, ainda mais num domingo a noite.”
“E essa chuva não
vai passar. Olha só a rua enchendo.”
“Melhor voltarmos
depressa pra casa.”
Quatro dos amigos
não demoraram muito a decidir. Despediram-se e atravessaram correndo a Rua Raul
Pompéia. Seguiram na direção de Ipanema.
Os que ficaram, iriam para a Zona Norte.
“Vamos ter que cair fora daqui se quisermos pegar ônibus.”
“Ir nesse aguaceiro?”
“Não vai ter jeito.”
Tomamos coragem, respiramos fundo e saímos em correria na
direção da Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Eramos seis (soa como título de
dramalhão da Tupi).
Eu, minha irmã Sonia, os irmãos Flavio e Bia, Alayde e Zé
Waltinho.
Seis correndo debaixo daquela água que batia com força nos nossos
corpos. Chegava a doer. Quando alcançamos a outra esquina, estávamos
completamente encharcados. Parecíamos seis ratos molhados. As meninas gritaram
de pavor. Havia mesmo uma rataria nervosa disparando, alguns nadando na rua que
enchia rapidamente, a água já subindo pelas nossas canelas. Cada ratazana de
assustar.
Entramos numa livraria e o funcionário, atento ao assoalho
que molhávamos, veio avisar que não poderíamos ficar ali. Estavam fechando.
Voltamos para a rua batendo queixo e dentes de frio. Um
grande rio agitado se fazia diante de nós.
“Meu Deus! Como vamos sair daqui?”
“Olha! Vem vindo um ônibus lá!”
Aflitos, nos metemos na água quase nos joelhos e acenamos
para o coletivo que se aproximava furioso. Não parou, mas nos cobriu com uma
onda gigantesca.
“Desgraçado!”
Voltamos quase nadando para a calçada e nos escoramos nas
pilastras de um prédio, atentos às possíveis aparições de roedores no pouco
espaço de calçada ainda não alagada. O tempo passando e mais nenhum ônibus
aparecia.
Eis que, subitamente, surgiu um táxi. Bia entrou na água de
novo e saltou, gritou, fez mil gestos. O carro reduziu a velocidade e parou bem
no meio da correnteza. O motorista fez um gesto para que ela viesse. Ficou ali
uma indecisão.
Ela olhou para a gente sem saber o que fazer. Era um táxi
pequeno e de duas portas. Não caberia todo mundo.
O homem se fez ouvir:
“Vamos! Venha!”
Bia voltou-se novamente para nós.
Impaciente, o homem gritou:
“Venha logo, cacete!”
E nós todos disparamos na direção do carro. Entramos ali, nos
espremendo, nos enfiando de qualquer jeito e o motorista, num bom sotaque
português:
“Vamos com calma, porra! Assim vocês vão estragar o meu
carro!”
Zé Waltinho ocupou o banco do carona com Bia no seu colo.
Quando conseguiram bater a porta, o português se deu conta e
fez a conta:
“Perai! Quantos vocês são?”
“Por favor, moço. Leva a gente.”
“Ah não! Vocês são seis! Não posso levar seis. Vão f#*%$ com
o meu carro!”
“Mas está chovendo muito, moço. Alivia aí.”
Ninguém estava disposto a desembarcar.
Carros iam passando bem rentes jogando água. Um perigo,
possibilidade de acidente. Irritado, empurrou as pernas que se amontoavam sobre
o câmbio e engatou com dificuldade a primeira. Aceitou a situação. E seguimos
retos pela Avenida Copacabana.
Não demorou muito para ele mandar seus resmungos:
“Sabia que não era pra sair hoje de casa. Podia estar agora
tranquilo no meu sofá.”
“O senhor mora aonde?”
“São Gonçalo. Aposto que nunca ouviram falar. Filhinhos de
papai não sabem nada.”
Bia insistiu em socializar:
“Seu trabalho é só de noite, ou também roda de dia?”
“Isso aqui não é trabalho, filhinha. É só passatempo. Levo a
vida na flauta igual vocês”, respondeu ironizando.
O sujeito era grosseiro. Não havia como travar um diálogo
amistoso.
Alguém do comando da frota avisou pelo rádio que seria
impossível ultrapassar Botafogo. Aquele bairro virara um grande mar.
“PQP! Maldita hora que resolvi atender ao pedido de uma dona
de Icaraí. O que é que uma pessoa vai querer fazer em Ipanema num domingo com
um tempo desses?”
Deu uma examinada na gente:
“Olha só o estado de vocês! Estão a molhar todo o meu
estofamento!”
Entrou na próxima rua à esquerda e voltamos pela Toneleros.
Ele tentaria o caminho da Lagoa. Assim que atravessamos o corte do Cantagalo,
engarrafamento. Um para e anda sem fim. E o portuga reclamando:
“Deixei a patroa sozinha em casa pra enfiar-me nesta
m#$*& com o carro cheio. Nem troquei os amortecedores, c#*&%@#!”
Ele abaixou-se a procura de algo no chão até encontrar uma
flanela imunda, que mandou para trás, em cima da gente.
“Passem isto no vidro, que não estou a enxergar porra
alguma.”
“Sim, senhor. Sim, senhor.”
Apesar da tensão, segurávamos o riso. Só queríamos chegar
sãos e salvos na Tijuca.
Enquanto o engarrafamento continuava naquele vai não vai,
esfregávamos o pano para desembaçar. Fazia um calor insuportável ali dentro. Um
bafo só.
“Dá pra abrir as janelas, moço? A chuva diminuiu.”
“Não. Ninguém vai abrir porra alguma.”
Bia não segurou a língua:
“O senhor é um grosso, sabia?”
Zé Waltinho tampou-lhe a boca.
“Sou grosso sim. E posso ser mais, se resolver botar vocês
todos daqui pra fora.”
Silêncio geral.
Muitos séculos se passaram até os carros começarem a andar.
Fomos lentos naquele fluxo até a entrada do Túnel Rebouças, cuja travessia foi
melhor ainda.
Porém, quando desembocamos no viaduto Paulo de Frontin, tudo
parou novamente.
“Meu Deus! Que martírio sem fim!”
E anda e para, anda e para, anda e para.
De repente, numa dessas paradas, um carro bateu com força na
nossa traseira.
E o português:
“PQP!!!!! C@$#%&*%$#@**& o partam!!!!!!”
Saltou enfurecido e foi lá atrás brigar.
“Gente... Que programa esse nosso de hoje, hem?”
Olhei o taxímetro. A corrida ia ficando cada vez mais cara.
“Será que a gente vai ter dinheiro pra pagar?”
“Não sei.”
Abrimos as carteiras para conferir o que tínhamos.
“Eu não tenho muito. E você?”
“Também não.”
“O mesmo eu.”
“Será que ele aceita cheque?”
“Vai ter que aceitar.”
“Mas quem aqui tem cheque?”
“Não tenho.”
“Também não.”
“Eu tenho, mas tá em casa.”
“E agora?”
“Não sei.”
Alguém fez a súplica:
“Gente, por Deus! Vamos abrir as janelas que estou
sufocando.”
Rodaram-se as manivelas e os vidros das duas portas se
recolheram para o ar fresco entrar. O engarrafamento ainda paralisado e o
português brigando lá atrás com o outro motorista.
Fiquei matutando sobre o problema do pagamento. Como eu e
minha irmã seríamos os últimos a saltar, pediríamos ao homem que esperasse na
porta do prédio. Eu subiria e voltaria com um cheque preenchido.
Foi quando percebi aterrorizado o que vinha bem na nossa
direção, na pista contrária vazia: um caminhão em alta velocidade beirando a
divisória e mandando para cima uma onda espetacular em formato de tubo.
Não tivemos tempo de suspender as janelas e a tsunami entrou
com vontade para dentro do taxi inundando tudo. Um litro certo se acomodou no
assento afundado do motorista. Naquele momento, o português voltava correndo,
porque os carros já se preparavam para andar. No que ele pousou o traseiro no
banco, o grito:
“M*&¨%$#@!! PQP!! C@*&$%¨&!! Quem foi o filho da
p&*#@ que abriu a janela?”
Foi um Deus nos acuda. O homem estava possuído pelo demônio.
Gastou todo o seu vocabulário de palavrões e nós ali tremendo de medo. A fila
de automóveis foi se movimentando. Íamos numa velocidade aproximada de trinta
quilômetros. Assim que descemos o viaduto, outro desafio assustador: a Praça da
Bandeira era um oceano.
Alguns se arriscavam, se metiam ali como se fossem lanchas.
Um a um.
O nosso taxista estressado ficou a olhar aquilo, pensando no
que fazer. Com o ódio que sentia da gente, talvez tencionasse nos levar para a
morte, nos afogar naquela água suja. Finalmente, meteu o pé no acelerador e
encarou.
Nós nos agarramos de medo. Nada mais se via das janelas, só a
água marrom levantando e o barulho dela por debaixo do assoalho do carro que,
um pouco antes de vencer o desafio, ameaçou afogar. Mas a Graça Divina nos abençoou.
Dali em diante, a Avenida Maracanã estava vazia.
Um alívio. A velocidade do taxi aumentava. Aquela saga
acabaria.
“Ufa! Já estamos quase lá.”
Antes do cruzamento com a Rua São Francisco Xavier, pedimos
que ele parasse.
Zé Waltinho entregou uma quantia qualquer para Bia e saltou.
O português se encrespou de novo:
“Ué! Só ele que vai saltar?”
“Nós moramos mais na frente, moço.”
Com estupidez, ele deu um sopapo no câmbio e continuamos.
Na esquina da Rua José Higino, nova parada. Só Alayde foi. E
o homem numa irritação, doido para se livrar da gente.
“Vai ser assim é? Um rato pingado de cada vez?”
Ninguém respondeu e o taxi voltou a andar.
Quase chegando à Rua Uruguai, apontamos para o prédio onde
morava Bia e Flavio. Os dois entregaram o dinheiro coletado e desembarcaram.
Só eu e minha irmã sobramos. O português virou-se e
perguntou:
“Afinal, vocês vão ficar aonde?”
“No Grajaú.”
Os olhos dele quase saltaram das órbitas de tanto ódio.
“Grajaú? Eu vou ter que levar vocês ao Grajaú! PQP!!!!”
Pensei em saltar ali mesmo, mas não houve tempo. Ele arrancou
com o carro.
Fizemos o retorno, pegamos a Gonzaga Bastos, Rua Maxwell e, após
atravessarmos a Praça Verdun, ouvimos um estouro. Imediatamente, o carro foi
bamboleando, sacudindo até parar numa curva. O taxista saltou espumando:
“Só me faltava mais essa, c&*%$#@!!!”
Furara um pneu.
Desembarquei disposto a ajudá-lo e mais uma surpresa: o
estepe estava vazio.
O lusitano gritou muito, deu socos na lataria, declarou que
não haveria mais como nos levar adiante. Alguém lhe rogara uma praga.
“Paguem o devido e vão-te embora daqui! Vão-te!”
Olhei para minha irmã. Não havia muito que fazer.
Gaguejando, contei que não possuíamos toda a quantia da
corrida e que ele teria de nos levar em casa, onde eu lhe daria um cheque.
Ficamos esperando a explosão, que não aconteceu. Não reclamou.
O que mais ele queria naquela hora era se livrar da gente. Eramos
maldição.
Disse sem pestanejar para darmos o que tínhamos e cairmos
fora dali. E, como dois ratinhos molhados de fábula sem a menor graça, chegamos
sãos e salvos em casa.
A propósito, o Flautista de Hamelin é um conto folclórico medieval
que narra a aflição de uma cidade infestada por ratos até o surgimento de um
homem que, usando uma flauta mágica, hipnotiza os roedores e os conduz até o
rio para morrerem afogados.
Porém, não recebendo a recompensa prometida, o “caçador” toca
novamente sua flauta e atrai todas as crianças de Hamelin. Na estória reescrita
pelos Irmãos Grimm, elas são aprisionadas numa caverna. Mas na versão original,
acabam tendo o mesmo destino dos ratos: afogam-se todas num grande rio.
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