Doce de que?
Cida
era minha vizinha em Botafogo e vivia se insinuando para o meu lado. Tinha
família enorme, uma infinidade de gente a se espalhar por três apartamentos no
prédio da Rua General Polidoro. Não sei quantos eram, mas encontrava com
frequência uma das irmãs dela que era secretária de advogado. Havia um irmão
mais velho chamado Nilo, mecânico, não esquentava emprego, vivia bêbado e, vez
por outra, era flagrado nas escadarias de serviço praticando indecências com
algum rapazinho da rua. Família sacrificada.
Cida
morava dois andares abaixo do meu, mas quando a situação financeira deles se
complicou mais, entregaram dois apartamentos e ela foi com todo mundo para o
último que restava e que ficava justamente no meu andar. A área de serviço
deles dava de cara para a minha, separados por um grande fosso.
Bastava
eu aparecer para lavar algo no tanque ou ir buscar algo na despensa e lá estava
Cida a me espiar. Logo mandava o seu “psiu”:
“Bom
dia, vizinhooooo!”
“Bom
dia.”
“Cadê
a cachorrinha? Ela está bem?”
“Está
ótima. Está dormindo agora.”
Só
esse papinho bastava para ela fazer um sinal com a mão e dizer:
“Espera
um pouco. Vou até ai.”
Em
poucos minutos a campainha tocava. Ela num penhoar transparente mostrando os
seios e a calcinha trazendo um prato de sobremesa abafado por outro.
Sabe
essas pessoas sem noção? Feia, ossuda, sempre relaxada, suja, desgrenhada,
desbocada, mas se sentindo uma Marilyn Monroe? Pois é. Essa era ela.
“Trouxe
um pouco de macarrão com carne e chuchu pra você. Está do c@#*&%$.”
Encabulado,
ainda ameacei recusar.
“Oh,
Aparecida... Puxa...”
“Pode
me chamar de Cida ou Cidinha. Eu prefiro.”
Essa
cena se repetiu algumas vezes. Vieram saladinhas de repolho, risotos de atum,
salpicão, pasteizinhos, coisas que, assim que eu fechava a porta, minha
cachorra se fartava de comer. O impasse seguinte era a devolução dos pratinhos.
Antes de entregá-los devidamente lavados, eu ficava na área de serviço tentando
captar algum indício de que ela talvez não estivesse em casa. Acreditando
nisso, ia depressa para lá. A irmã abria a porta e na mesma hora gritava:
“Cida!
O vizinho quer falar com você.”
Meu
desespero vinha à tona.
“Não,
não... Não precisa chamar. Só vim devolver os pratos.”
Em
vão. Cida vinha correndo, a cara amarrotada de tanto dormir. Abria um sorrisão
de assustar, perguntava se eu havia gostado e avisava da próxima iguaria a ser
enviada, uma tentativa de me conquistar com seus dotes culinários.
Foram
raros os momentos em que fui lá devolver a louça na sua ausência. Ela quase não
saia de casa, sempre deitada dormindo ou vendo novela.
Para
colocar um fim naquela situação, acabei fazendo o pedindo: para que não se
incomodasse, não me levasse a mal, eu agradecia a gentileza, mas não queria
mais que me oferecesse comida qualquer.
Ela
escutou, pareceu conformar-se. Mas um brilho nos seus olhos se fez.
“Você
gosta de doce?”
“Gosto.
Por que?”
“Então
eu vou te mandar um. Aqui em casa, fazemos sempre doce.”
“Puxa...
Logo agora que estou de regime.”
“Uma
provinha não vai te fazer engordar, cacete! E sempre é bom ter um docinho pra
oferecer às visitas. Vejo que tem sempre gente na sua casa.”
Ela
bisbilhotava minha vida.
Percebi
que não conseguiria evitar seus oferecimentos. Era só eu apontar na área de
serviço e já estava ela:
“Vizinhooooooo!
Olha o que tem hoje aqui!”
Uma
corrida ida e volta lá dentro para exibir um vidro tampado e cheio de alguma
coisa. E eu perguntando:
“O
que é?”
“É
doce.”
“Doce
de que?”
“Mamão.
Separei este pra você.”
E
lá vinha ela de calcinha e penhoar transparente, os seios pulando para fora,
toda languida bater na minha porta.
Dias
depois, a cena se repetiu. De longe, ela me mostrou um vidro de maionese
fechado. Eu quis saber:
“É
doce de que?”
“Casca
de tangerina. Fiz pra você.”
“Obrigado.”
Enquanto
a campainha não tocava, pensei em retribuir suas gentilezas e procurei alguma
coisa para lhe dar. Separei uns imãs de geladeira, trabalho bem bonito que fiz
para uma exposição da Fundação Oswaldo Cruz com imagens da expedição de Carlos
Chagas à Amazônia. Mal recebeu meu presente, exclamou:
“P*#@
que o pariu!!! Esses imãs são do c@&*$%#!”
“Que
bom que gostou.”
“Eu
adoro imãs. Coleciono tanta coisa. Tenho mania de guardar tudo de lembrança, até
bilhete de cinema.”
Após
uma compota de pêssego e dois vidros, um de abóbora com coco e outro de
laranja, Cida desapareceu. Semanas se passaram.
Estranhei
aquilo.
Um
dia, descendo no elevador, encontrei Nilo e perguntei por sua irmã. Ele me
informou que ela se internara para uma cirurgia séria, mas tudo correu às mil
maravilhas. Em breve, retornaria firme e forte.
De
fato, passados três dias, eu na cozinha fritando batatas quando a campainha
tocou. Ela no seu tradicional penhoar transparente, mas sem qualquer pote nas
mãos.
“Sentiu
minha falta?”
“Soube
que você se operou.”
“Pois
é... A porra de um câncer. Mas agora tá tudo joinha.”
“Que
bom.”
“Posso
usar seu telefone? Cortaram o nosso.”
“Claro.”
Pegou
o aparelho, fez a ligação e eu ali de olho na frigideira. Ela, agarrada ao fone,
começou a implorar para alguém que lhe fazia ameaças:
“Por
favor, Seu Nelson. Não despeja a gente não. Eu sei que já são três meses de
aluguel atrasado.”
Tentei
abstrair. Concentrei-me nas batatas espumando.
Ela desligou e veio até a cozinha sorridente.
“Estava
resolvendo um probleminha lá de casa. Desculpe usar seu telefone.”
“Quando
precisar, fique a vontade.”
“Falando
nisso, você quer ver como ficou a cirurgia?”
Nem
me deixou responder. Arriou a calcinha até os joelhos e disse:
“Não
olha pra minha x#$@*& não, tá? Olha pra cá.”
E
com o dedo indicador apontou para a cicatriz localizada bem ao lado da sua
intimidade. Não acreditei que aquilo estava acontecendo ali na minha cozinha,
eu agarrado à frigideira com aquela mulher horrorosa despida na minha frente.
Mirei os olhos rapidamente e voltei minha atenção para as batatas que já
escureciam.
Apenas
comentei:
“Que
coisa... Que situação...”
Para
meu alívio, ela se recompôs e avisou que precisava voltar para a cama. Ainda
estava convalescendo.
Dois
dias mais e eu fui até a área de serviço. De algum apartamento, o som irritante
de um rádio ecoando pelo fosso. E lá estava Cida do outro lado acenando para
mim. Em seguida, curvou-se sobre o tanque. Parecia vomitar. Perguntei:
“Tá
tudo bem?”
“O
queeeee?”
O
barulho de rádio era tanto que tive que aumentar o volume da voz:
“Tá
tudo bem com vocêêêê?”
“Melhorandooooo.”
Tornou
a se debruçar no tanque. Estava vomitando mesmo. Levantou a cabeça e fez um
gesto para que eu esperasse. Enxugou a boca e foi lá dentro. Voltou com um
vidro fechado na mão. Eu mandei a tradicional pergunta:
“É
doce de que?”
Ela
elevou o vidro para cima como um troféu toda orgulhosa, mas não compreendi suas
palavras. Um barulho ensurdecedor.
Tornei
a perguntar mais alto:
“É
doce de queeeee?”
Cida
esticou o pescoço para a frente e gritou:
“É
o tumooooooooorrr!!!”
Caiu
na gargalhada. Em seguida, tornou a vomitar.
Fiquei
pasmo. Ela guardara aquilo de lembrança.
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