Confusões em carnaval das Arábias



Foi o ano do maior atraso dos desfiles, quando eu sai pela primeira vez pela Caprichosos de Pilares. Nesse carnaval, eu me meti por acaso em duas roubadas seguidas, dois acampamentos inusitados com pessoas de características e comportamentos diametralmente opostos.
Eu namorava Ana Maria, uma menina muito religiosa, frequentadora de grupo jovem da Igreja Sagrados Corações. Em dias de folia, ela costumava fazer retiro espiritual.
Naquele ano, viajou com os amigos para acampar nos fundos da casa de uma colega num condomínio em Rio das Ostras.
Ela foi e eu fiquei para cair na folia com duas amigas, Rosane e Anadir. Saímos nos blocos, fomos à praia, tomamos banho de piscina e, finalmente, a estreia na Sapucaí. Nossa fantasia era um árabe estilizado com um lenço fino laranja para a cabeça, uma túnica com figuras brilhosas coladas, sandálias prateadas com tiras que iam se enroscando até perto do joelho e uma pistola e bomba de gasolina purpurinadas, representando a crise do petróleo.  Adorei a roupa, porque eu sempre quis me vestir de árabe, mesmo que todo apapagaiado.
Domingo de Carnaval. A previsão era de entrarmos duas da manhã, mas muita confusão aconteceu com escolas que antecederam: brigas e carros alegóricos quebrados. Atravessamos a noite na concentração.
Quando finalmente a Caprichosos entrou na avenida, o sol estava a pino, quarenta e dois graus, duas da tarde. Apesar da longa espera, nosso entusiasmo era imenso.
Enlouquecidos, pulamos e cantamos muito:
“Tem bumbum de fora pra chuchu, qualquer dia todo mundo nu...”
As arquibancadas, os camarotes, todo o público em delírio. Foi eleita a escola do povo.
Antes de alcançarmos a metade da avenida, uma das minhas sandálias de tiras arrebentou e ficou para trás. O chão tostava. Fiz uma bolha enorme na sola do pé.
Calor infernal, gente desmaiando, bombeiros passando pelas alas jogando água e gelo.
Minha amiga Anadir, que atravessou toda a pista beirando os camarotes, jogava beijos, abria os braços e choviam garrafas de refrigerante em cima dela. Rosane fez o mesmo. Em agradecimento, as duas iam distribuindo pedaços da fantasia para os que pediam. Chegaram ao final só de biquíni.
Depois que tudo acabou, foi um martírio a volta para casa. Eu mal conseguia pisar com aquele pé descalço. O chão fervendo, muito lixo, muito caco de vidro. Catei uma sacola plástica e o envolvi.
Enfim no meu quarto, o descanso. Deitei-me com o pé cheio de creme para cima.
Foi quando uma amiga de faculdade me ligou com o inesperado convite:
“Beto. Vou acampar com uma turma em Geribá, Búzios. Um amigo meu tem carro e está saindo de Teresópolis pra lá. Você não quer ir também?”
Adorei a ideia. Horas depois, eu já estava de prontidão na esquina das ruas Conde de Bonfim com Dona Delfina. Não levava quase nada na mochila, só o essencial: sunga, camiseta, escova, pasta de dente e a fantasia de árabe.
Finalmente o fusquinha branco chegou. Se o motorista não tivesse se apresentado como Afonso, eu diria que era Jesus Cristo pela longa barba e cabeleira. Falava nervosamente, gaguejava, era cheio de tiques.
Um receio me bateu. Procurei abstrair.
Seguimos estrada. Durante a viagem, fiquei sabendo detalhes do pessoal que iríamos encontrar. Trabalhavam numa produtora. Ele me contou de seus contatos com artistas, gente de música, compositores na sua maioria. Num certo momento, Afonso apontou para uma TV de vinte polegadas no banco de trás:
“Tenho que deixar isso na casa dos meus pais em Iguaba Grande.”
Já anoitecia quando o fusquinha se enfiou bravamente por uma estrada de terra bem esburacada até uma casa branca simples de jardim alto.
Ele pediu que eu esperasse e entrou com a televisão. Um bom tempo se passou e nada do cara. Fiquei a examinar meu pé que ardia, distraído com o som do carro, até que o cabeludo apareceu lá na porta da casa.
“Hei! Chega aí! Tá a fim de um lance?”
Disse aquilo e sumiu novamente lá para dentro.
Um lance? O que seria? Saltei desconfiado. Abri o portão subi os poucos degraus do jardim e entrei pela sala.
“Afonso! Cadê você?”
“Aqui na cozinha.”
Quando cheguei junto da porta, vi o cara aquecendo um prato de colorex no bico do fogão. No interior do prato, quatro carreiras de um pó branco. Gelei.
“O que é isso?”
“É pra deixar a gente ligado no carnaval.”
Entrei em pânico. A primeira coisa que me veio na cabeça foi a morte de certa cantora que eu amava muito. Pensei comigo:
“Só me faltava essa... Nem conheci o sucesso e vou morrer como ela.”
Fui até o jardim. Estava longe de tudo. Como sairia daquela situação?
Voltei para dentro e disse a ele:
“Olha, cara... Não vou entrar nessa não. Tenho medo, não quero.”
“O que é que há, irmãozinho? Prova. Você vai se amarrar.”
“Não, quero. Não tem jeito. Não vou encarar essa não.”
Voltei para o fusca e esperei.
Mais um tempo depois, e Afonso assumiu seu lugar ao volante. Misteriosamente, não gaguejava mais. Mas disparava a falar qual metralhadora.
Seguimos pela estrada para Búzios, ele me contando dos efeitos daquilo e de quando começara a se drogar. Eu ouvia e assuntava como alguém que pesquisa a matéria.
E o cara falando. Falava, falava, falava muito. Falava de tudo.
Já passava da meia-noite quando chegamos à praia de Geribá onde centenas de barracas se amontoavam. Seria impossível encontrar algum conhecido ali. Afonso foi pelo meio delas chamando o nome dos amigos. Ninguém se manifestou.
Nessa altura do campeonato, eu já me arrependia de estar ali. Sonhava com minha caminha quente.
Afonso desistiu de procurar. Voltou para o carro e o fusca pegou o rumo da Rua das Pedras. Preferi ficar quieto naquele assento bambo. Meu pé queimado latejava.
E o cabeludão ali do meu lado falando, falando, falando... Adormeci.
Acordei com o sol batendo no meu rosto. Olhei para o assento ao lado. Vazio.
Onde estaria Jesus?
Não demorou muito e ele veio vindo, mastigando sabe-se lá o que.
“Já sei onde a galera está. Vamos nessa.”
Retornamos à Geribá. Em meio a tantas, chegamos até duas barracas azuis: uma grande para cinco pessoas e outra bem menor para casal.
Até hoje não sei quantos se abrigaram ali, mas certamente estavam acima da capacidade ideal. A primeira criatura que vi sair da barraca maior foi uma loura com os cabelos desmantelados, os seios saltando da camiseta, rosto amassado pelo sono. Fez uma breve saudação para mim e reclamou de fome.
“Porra... Neguinho só trouxe uma goiabada. É mole?”
De fato, não havia nada de comestível por ali. Só fumo, pó, loló, lança perfume...
Da barraca menor, uma voz de mulher se fez mais alto:
“Droga, cara! Você me mijou toda! Olha isso aqui!”
A indignada saiu de dentro sacudindo a roupa com enorme marca molhada. O companheiro em questão, um sujeito com cara de índio surgiu logo, se espreguiçou, coçou a cabeça e sorriu para a gente. E a morena esbravejando:
“Todo dia é isso, cacete! Você me mija toda.”
O cara devia ter incontinência urinária.
“Onde estão os outros?”, perguntou Afonso à loura.
“Ah... Devem estar lá pela praia.”
Deixei minha mochila na barraca maior, coloquei a sunga e fui conhecer o resto da turma. Todos simpáticos, apesar da ressaca predominante. Eram sete, oito...
Realmente não lembro quantos eram.
Logo me enturmei com uma mineira de Belo Horizonte. Conversamos muito o dia inteiro até a hora dela partir de volta para Minas.
A noite chegou. Vesti a túnica do árabe e sai pela praia andando com dificuldade, mancando, estourado de cansaço.
Num barzinho, reconheci a morena mijada e indignada da manhã. Bebia sozinha e chorava. Quis saber o que havia acontecido e ela me revelou que o companheiro mijão terminara tudo com ela e já se engraçava para o lado da loura da outra barraca.
Apontou na direção esquerda da praia:
“Olha ele lá com a piranha.”
“Puxa... Que situação...”
Convidou-me para uma cerveja e desfiou suas lamúrias, seus olhos fixos no líquido amarelo do copo a espumar.
De repente, levantou e disse:
“Vou atrás daquele escroto. Vou meter porrada nele e na oxigenada.”
E sumiu no escuro da praia.
Fiquei um tempo ali ouvindo os sons de carnaval. O que fazer?
Entrei numa pousada próxima e me detive diante de uma televisão para ver o segundo dia de desfiles das escolas na Sapucaí. Mas meu pé doía.
Achei melhor voltar ao acampamento e dormir. No caminho, reconheci o mijão sentado sozinho na areia. Fui passando por ele e não resisti ao comentário:
“Cuidado, amigão. A tua morena tá chateada contigo. Tá a fim de te pegar.”
Ele se levantou, pôs a mão no meu ombro. Senti um futum horrível. Disse:
“E eu a fim de pegar você”, falou na maior insolência. “Você é bem bonitinho.”
Soltou uma gargalhada.
“É ruim, hem? Não vai pegar mesmo.”
Nem esperei dizer qualquer bobagem. Desvencilhei-me do porcalhão e apressei o passo capengando até não ouvir mais sua voz. Sujeito horroroso. Devia ser adepto do “golden shower”. E aquelas mulheres gostavam dele. Dá pra entender?
No acampamento, não havia ninguém na barraca maior. Desmaiei. Por volta das quatro e meia da madrugada, acordei sufocado e com câimbra no braço. Foi quando constatei que havia um monte de gente jogada por cima de mim, dormindo, roncando. Uma situação.
Empurrei uma perna para um lado, uma barriga, um braço para o outro... Parecia cena de holocausto com corpos empilhados em gueto. Tateei até encontrar minha mochila. Eu me arrastei para fora, apalpei-me todo e verifiquei meus pertences. Tudo incólume.
“Vou me mandar daqui.”
Com dificuldade, cheguei até a rodoviária. O único ônibus que havia estava de partida para Rio das Ostras. Lembrei-me de Aninha e sua turma da igreja. Eu tinha o endereço.
“É pra lá que vou. Farei uma surpresa.”
Embarquei às sete e meia, após comer um bom sanduíche numa padaria.
O que eu não sabia, é que as coisas estavam bastante esquisitas na Costa Azul.
A casa onde o grupo acampava era da família de uma colega da igreja, mas quem mandava em tudo era a avó da garota, uma senhora bastante enfezada, que não aprovara em nada a ida daquela gente para lá. Restringira o uso deles ao quintal e a um banheirinho de fundos. Não permitiu que usassem a cozinha ou qualquer das dependências da casa.
Eu estava indo sem saber de nada disso.
O ônibus me levou direitinho ao condomínio. Caminhei por uma rua larga, comprida, de poucas construções. Assim que localizei o endereço, resolvi acrescentar um detalhe a mais na minha surpresa. Tirei a fantasia de árabe de dentro da mochila e me vesti todo com ela. Bati palmas no portão.
A porta se abriu e a senhora com a cara mais zangada do mundo apareceu. Sua expressão piorou ao me ver daquele jeito. Perguntou:
“Tá querendo o que aqui?”
“Sou namorado da Ana Maria. Ela e o pessoal da igreja estão hospedados aí, não é?”
“Hospedados não. Eles se abarracaram aqui. Mas não será por muito tempo.”
Suas palavras soaram com ódio.
“Posso falar com ela?”
“Estão lá na praia. Só seguir reto.”
Agradeci com um sorriso amarelo e segui caminho. Ainda a ouvi dizer:
“Só me faltava essa. Um gaiato fantasiado.”
Na praia, a turma da igreja se espalhara em cangas, todos ali deitados, entristecidos. Um dos rapazes da igreja apontou na direção de uma duna:
“Olha só! O que é aquilo?”
“Um árabe”, disse outro.
Eu surgia como uma miragem.
Ana me reconheceu logo e veio me beijar. Eu me surpreendi com a presença do meu irmão. Ele estava ali também por convite de um amigo, o neto da velhota.
Contaram-me que o clima na casa estava pesado. A senhora não dava uma folga para eles. Até para cozinhar tiveram que improvisar uma fogueira e comiam coisas cruas.
Planejavam ir embora naquela tarde.
Achei que poderia mudar a situação. Voltei com eles e, ao atravessarmos pela passagem lateral da casa, observei um pedreiro na cozinha colando a cuba da pia.
Parei na porta para puxar papo.
“Vida boa, hem? Trabalho até no carnaval...”
O cara não gostou. Não respondeu.
A velhota apareceu como um cão farejador.
“Você tá querendo alguma coisa? Não tem nada aqui pra vocês.”
“Eu estou querendo sim. É que... Eu queria dar uma palavrinha com a senhora.”
“Não tenho tempo pra palavrinhas. Tenho muito que fazer.”
“Sabe o que é? É que... Assim que vi a senhora...”
Acrescentei um tom emotivo à voz e continuei:
“Tão parecida com minha avozinha que já se foi...”
Vi a expressão dela mudar.
“Eu? Parecida com sua avó?”
“Sim. Impressionantemente idêntica.”
Ela riu de deboche.
“Todo velho se parece, meu caro.”
“Não concordo. Ela tinha um jeito diferente. Era forte, decidida como a senhora.”
Senti que havia chance dela amolecer.
“Bom... Alguém tem que botar ordem nas coisas por aqui não é? Veja só minha neta... Inventou de trazer essa moçada toda para cá.”
“Sim. Moçada boa da igreja. Podiam estar agora metidos em farra de carnaval.”
“Pois sim... Conheço bem minha neta. Se não abro o olho...”
 “Mas vó é vó, não é? A senhora não é tão dura assim. Seus olhos dizem coisas.”
“Você tem um papinho mole, não é? O que tem meus olhos? Remela?”, debochou.
“Vejo doçura e também tristeza.”
Exagerei na dose e um arrependimento bateu. Esperei a mulher me xingar.
O resultado foi surpreendente. Ela se desarmou.
“Sou desse jeito desde que meu marido se foi.”
“Seu marido é falecido.”
“Sim. Já faz muito tempo.”
Aquilo foi um pé para se entregar. Começou falando pouco. Eu ali todo interessado levando a mulher no bico. Comparou sua vida de jovem com as liberdades daquela geração. Falou de pai, mãe, de filhos. Já sorria para mim. Eu caíra nas graças dela. Enquanto isso, a cuba da pia terminava de ser ajustada.
O homem recolheu seus instrumentos. Aproveitei que iam acertar as contas e corri para Ana, meu irmão e o grupo.
“Deixem comigo. Hoje vocês terão almoço digno.”
Retornei à porta da cozinha. O pedreiro já tinha ido. Ela veio de novo:
“O que você está querendo afinal, árabe de araque?”
“Continuar nossa conversa.”
“Não posso ficar aqui de trelelê não. Tenho que fazer almoço.”
Aproximou-se para observar meus trajes.
“Essa fantasia é daonde?”
“Desfilei na Caprichosos de Pilares.”
“Você é animado, hem? Eu detesto carnaval.”
“Sou animado sim. É do meu sangue italiano.”
“Ah... Família de italianos?”
“Sim. Daqueles que adoram uma boa massa. Sei fazer um macarrão divino. Se a senhora deixar, posso preparar o almoço.”
A avó realmente caíra na minha rede. Tanto que, minutos depois eu já comandava as panelas com ela ali do meu lado fiscalizando. Quando tudo se aprontou, veio o milagre. A doce avozinha foi até a porta dos fundos e convidou todos para dentro.
Foi um almoço animado na sala.
Contei piadas, puxei músicas antigas. Muito riso, muita alegria. Todos felizes, todos satisfeitos. Fizemos a velhota cantar.
Aí, ela perguntou:
“Quero ver quem é que vai dar um jeito nessa louça toda.”
“Deixa comigo. Eu cozinhei e faço questão de lavar.”
Mesa esvaziada, preferi ficar só na cozinha e evitar qualquer aborrecimento de gente naquele espaço. Eu ia lavando o que havia, talheres, pratos, tigelas, colocando tudo no secador. Lavava até o que não precisava. Mas na hora de esfregar a panela maior do macarrão, eu a apoiei dentro da cuba. E... Catabum!
Todos correram até a cozinha e viram a cena desastrosa: a cuba se descolou da pia e caiu, espalhando louça, uma gordureira, uma sujeira generalizada pelo chão.
A velha senhora colocou as mãos na testa e gritou:
“Eu sabia! Eu sabia que não devia ter botado essa gente toda dentro da minha casa!”
E eu:
“Mas, vó...”
“Vó é o cacete! Fora todo mundo! Fora da minha casa!”
Não havia mais como salivar a velhota.
Saímos de lá na carreira para montarmos acampamento na praia da Tartaruga.

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