A diplomada


Eu voltava de Madureira no ônibus 636, após uma apresentação minha dentro da série de shows, que acontecem com entrada franca nas tardes do SESC de lá.
Passando pela Rua Dias da Cruz, dois jovens músicos embarcaram.
Um cavaquinista e um pandeirista.
Sentaram-se ao meu lado naqueles últimos lugares, onde o povo, constantemente, é jogado para o ar com as lombadas e buracos das ruas mal conservadas. Iniciamos uma conversa estimulada pela minha curiosidade. Eles vinham de um trabalho no Clube Mackenzie, um almoço com roda de chorinho. Comentaram coisas que ocorreram ali e se queixaram das alegrias e dificuldades daquele ofício.
Nosso papo foi interrompido com a entrada de uma mulher no primeiro ponto da Rua Hermengarda. Era mulata, magrinha e tinha o cabelo todo aprisionado por grampos enormes. Uns cinquenta e poucos anos talvez.
Apesar do calor que fazia, usava um sobretudo branco que, de tão longo, provocou um tropeço nos primeiros degraus. Teve dificuldade em se agarrar no corrimão porque suas mãos se ocupavam com duas bolsas cheias.  
Entregou o dinheiro ao trocador, que liberou sua passagem. E o motorista arrancou.
Com aquele movimento brusco, ela tentou se segurar, mas saiu descontrolada pelo corredor. Veio cair em cima de mim.
Em seguida, antes que pudesse se recompor, o ônibus deu uma freada violenta e ela foi impulsionada de volta até a roleta. Parecia cena de filme de comédia.
As bolsas eram dois pesos que a desequilibravam. Pousou uma delas no banco e estendeu a mão para receber o troco. Contou as moedas e reclamou:
“Está faltando cinco centavos.”
O trocador conferiu. Realmente faltava.
“Não tenho agora”, disse ele.
“Mas eu quero meus cinco centavos.”
O ônibus fez uma ultrapassagem para desequilibrá-la de novo.
Ela saiu bambeando pelo meio e vindo outra vez na minha direção. Fiquei ali defendido esperando o impacto, mas ela conseguiu se agarrar aos ferros.
Passageiros atentos. Havia muita gente. Quase todos os lugares tomados.
A mulata voltou para onde estava e repetiu sua exigência:
“Não quero saber. Quero meus cinco centavos. Tenho direito.”
Sua empáfia irritou o trocador.
“Eu sei que tem. Mas não pode esperar não, oh coisa?”
“Coisa? Você me chamou de coisa?”
O ônibus fez uma curva e a criatura quase caiu.
Uma senhora preocupada tocou seu braço para pedir:
“Senta, minha filha. Você vai se machucar.”
Ela agarrou a bolsa que repousava veio para a parte traseira, um banco bem a minha frente. Mas não se deu por vencida e gritou para seu oponente:
“Quem é você pra me chamar de coisa? Você é um abusado!”
Ele deu um risinho, virou-se para um rapaz próximo e debochou:
“E não é mesmo uma coisa? Uma coisa feia dessas...”
E ela:
“Eu exijo respeito, ouviu? Fique sabendo que não saio daqui sem meus cinco centavos. Vamos até pra delegacia, mas eu quero meus cinco centavos.”
Os músicos ao meu lado não bobearam.
Sacaram do cavaquinho e do violão e mandaram o primeiro samba-enredo da Portela, composição de Benedito Lacerda e Alvarenga que diz assim:
“Lá vem ela chorando
O que é que ela quer? 
Pancada não é, já sei 
Mulher da orgia quando começa a chorar
Quer dinheiro
Dinheiro não há, não há 
Carinho eu tenho demais pra vender e pra dar 
Pancada também não há de faltar 
Dinheiro isso não, isso não dou a mulher 
Faço descer a terra, o céu, as estrelas se ela quiser 
Mas dinheiro não há.”
Os presentes caíram na risada e a música tomou conta, sossegando por um tempinho os que brigavam. Mas a peleja não acabaria ali.
Uma boa música faz milagres, não é verdade?
Ultimamente, tenho visto um grupo de rapazes com cavaco, violino, pandeiro e violão no metrô. Eles entram pela estação Flamengo ou Botafogo e vão até Ipanema pelos vagões tocando chorinhos do Waldir Azevedo, sambas de Noel, canções de Luiz Gonzaga, Chico e Tom Jobim... Depois passam o chapéu.
Os passageiros, de pronto, resistem. Alguns fazem cara feia. Logo se deixam embalar. Os que vão concentrados nos seus celulares, fones nos ouvidos tocando gêneros bastante diferentes, ignoram aquele movimento vivo.
Mas no final, a rapaziada recolhe bons trocados e passam para o vagão seguinte.
Já provoquei cantorias com amigos no metrô. Lembro-me de uma vez voltando para casa com o regente de coros Mario Robert e a multi-instrumentista Ignez Perdigão. Ela sacou do cavaco e cantamos “Luz Negra” do Nelson Cavaquinho e Irahy Barros:
“Sempre só, eu vivo procurando alguém que sofra como eu também, mas não consigo achar ninguém...”
O povo ali escutando, mas sério, achando que pediríamos dinheiro. No final, alguns aplaudiram. Cantamos mais uma, “Corra e olhe o céu” do Cartola e Dalmo Castelo e fizemos nossa despedida avisando que só queríamos aplausos. E eles se espalharam efusivos por todo o vagão.
Tenho um amigo que se utiliza dos seus talentos musicais para defender o seu. Entra nos ônibus, diz coisas engraçadas, toca seu cavaquinho e sai vendendo mariolas.
Ficou conhecido como Fábio Bananada.
Pelos transportes coletivos, a gente pode conferir o perfil do nosso povo brasileiro. Gosto de observar os variados tipos, os inexpressivos, os curiosos, os folclóricos, todos em movimento, muitas vezes se espremendo. E assim vão tocando suas vidas.
Muitos fazem dali seu espaço de trabalho e usam a imaginação para venderem o que for: alicates, tesourinhas, lixas de unha, balas, paçocas, chocolates, barras de cereais, incensos, livros. Oferecem “hoje na promoção” num discurso robótico.
Existem os mais habilidosos, os convincentes. Outro dia, pelo Centro da cidade, um sujeito simpático demonstrava, de maneira divertida, a eficiência de um descascador de legumes. Vendeu tudo, graças ao seu carisma impressionante.
Há os que esmolam, apelando para o emocional: desemprego, filha necessitada de remédios, cegueira, mutilação, AIDS e outras doenças contagiosas.  
E há os que praticam intimidação braba. Eu ia num ônibus pela Rua Jardim Botânico, quando um homem sem camisa, todo sujo, cara de malvado entrou e foi logo dizendo:
“Não to a fim de roubar, porque sou honesto. Mas hoje, todo mundo vai colaborar.”
Disse isso olhando bem nos olhos de uma senhorinha que estremeceu.
E todo mundo abriu a carteira e colaborou.
O cara recolheu o dinheiro, foi saltando e avisando:
“Amanhã eu volto.”
Mas retornando ao caso da briga pelos cinco centavos.
Assim que os músicos ao meu lado terminaram de tocar, a mulata reascendeu a briga:
“E ai, seu trocador? Cadê meus cinco centavos?”
Um engraçadinho lá na frente fez voz de papagaio:
“Ai, meus cinco centavos! Ai, meus cinco centavos!”
Ela se enfureceu:
“To vendo que tem outro palhaço aqui.”
Nesse momento, o ônibus saltou uma lombada e todos nós voamos para o alto. Ela também. E tudo o que havia dentro de uma das bolsas se espalhou pelo chão.
Eram calcinhas. Muitas calcinhas.
Imediatamente, eu com outros passageiros ajudamos a catar.
“Ih... Olha só o que a coisa vende”, zombou o trocador.
“Coisa é a sua mãe”, rebateu ela, ainda recuperando as últimas.
Depois mandou:
“Ficou interessado em algumas?”
“Sou macho, fique sabendo.”
“Sei, sei. Duvido que tenha mulher. Ignorante desse jeito.”
“Tenho esposa, viu? E ela é muito satisfeita.”
“Então compra uma calcinha pra ela e me dá logo meus cinco centavos.”
O trocador virou-se novamente para seu cúmplice:
“Se eu compro, ela vai me dar o troco e não vai me dar o troco.”
Espocaram risos. A mulata ajeitou os grampos da cabeça. Não deixou barato.
“Você está se achando, não é? Deixa a gente passar por uma delegacia, você vai ver.”
“Ah... Não me enche. Vai vender suas calcinhas, vai. Coisa mais ignorante.”
“Atrevido! Eu, ignorante? Eu sou uma mulher formada, fique você sabendo.”
“Formada? Formada em que?”
Ela sacou de uma carteirinha, ziguezagueou até a roleta para esfregar no rosto dele.
“Tá aqui, ó. Sou formada. Sou massagista.”
A gargalhada do povo foi imediata. O trocador abriu a gaveta, retirou uma moedinha e deu na mão dela.
“Pronto. Seu troco, doutora massagista.”
Nessa altura, já estávamos na Rua Teodoro da Silva, Vila Isabel.
Ela voltou ao seu lugar, agarrou as duas sacolas, deu o sinal. O ônibus parou.
Porém, quando já ia descer, olhou a moeda e gritou:
“Pera lá. Você me deu dez centavos. Eu quero meus cinco centavos.”
Um tremendo murmúrio de indignação tomou conta geral. Vieram os apelos para que ela descesse, que fosse logo embora.
Sentindo a hostilidade, a mulata não teve outra escolha. Foi pisando os degraus de saída bem devagar praguejando contra Deus e o mundo.
No derradeiro degrau, a barra do sobretudo se enroscou e ela se estabacou de quatro na rua. As calcinhas se espalhando aos quatro ventos.
O ônibus parado. Todos preocupados, de olho no acidente.
Um jovem na calçada quis acudi-la, mas ela recusou ajuda. Reergueu-se, fez a mira e mandou a moeda na direção da janela do trocador, que gritou:
“Massagista de araque!”
Depois, deu a conclusão aos passageiros:
“Massagista... Essa coisa mal se aguenta nas pernas.”
E os músicos ao meu lado reiniciaram a cantoria com “Nega Danada” do Chatin:
“Todo lugar que ela mora, 
Mandam ela embora com razão
Todo o lugar que ela chega, 
A danada da nega arranja confusão
Que mulher, oh, que mulher, 
Só me dá preocupação...” 

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