Nos bailes da vida



Encontrei Mirna com o rosto quase colado na vidraça vendo os casais a bailar no salão do Centro de Dança Jayme Aroxa. Eu nunca a tinha visto na vida, mas, na maior intimidade, agarrei seu braço e ordenei:
“Vamos entrar agora. Vamos, vamos.”
Ela se assustou. Tentou falar, mas eu não deixei.
“É proibido ficar aqui fora. Venha.”
Entrei com ela no salão e me afastei. Circulei pelas laterais, cumprimentei pessoas sentadas nos bancos e procurei a professora Briane para comentar qualquer coisa.
A música tocando, os casais deslizando.
Num determinado momento, notei Mirna acuada num canto da parede.
Fui falar com ela, que tentou disfarçar os olhos inchados de quem chorara muito.
“Por que não está dançando? Onde está seu par?”
Encabulada, ela explicou:
“Não sou aluna. Entrei aqui por acaso e...”
Tornei a pegar seu braço.
“Nada é por acaso. Vamos dançar.”
“Não posso, não sei, não sou aluna”, relutou.
“Não se recusa convite de cavalheiro.”
Mirna se deixou levar. Fomos devagarzinho fazendo um passinho para cá, outro para lá, numa marcação básica em uma volta completa pelo salão. Senti que ela se animara.
Quando a música parou, agradeceu, disse seu nome e avisou que precisava ir.
Dois dias depois, Mirna apareceu na aula. Avisou que vinha apenas para assistir, ainda não se matriculara.
“Por que você não vai ao nosso bailinho, Mirna?”
“Bailinho?”
“É. Vai ter um amanhã no Sírio e Libanês.”
“Mas... Eu? Sozinha?”
“Estarei lá. Sou bolsista e tenho que ir.”
De fato, o baile no clube aconteceu, mas eu não fui.
Horas antes, bebi além da conta com um casal de amigos e passei muito mal. Conheci o fundo do poço, fiquei na sarjeta. Não tive condições físicas de dançar.
Uma pena ter perdido aquele baile. Sempre gostei de dançar.
Em passado remoto, eu frequentava muito a Domingueira Voadora com minha amiga Rosane. Era um baile aos domingos no Circo Voador da Lapa sempre animado pelo maestro Severino Araujo e sua Orquestra Tabajara. Nós nos espalhávamos pela pista, realizávamos passos desencontrados, inventávamos outros. Eu fazia muita macaquice, chegava até a me ajoelhar, cair no chão, sem me importar com os outros. Era bonito ver os casais elegantes evoluindo seus passos clássicos, mas eu ia lá para brincar, dar risadas e admirar os crooners cantando maravilhas como “Night and Day” (Cole Porter) e o melhor da nossa música popular como “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso). Ficava sonhando em ser crooner de baile. Ficávamos até o final.
Eu voltava exaurido para casa.
Certo dia, Rosane me visitou com a novidade: estava fazendo aulas de dança no Centro Jayme Aroxa em Botafogo e soube que iriam abrir vagas para homens.
Não me interessei. Por preconceito, achava aqueles passos muito combinadinhos. Na verdade, não me sentia capaz de aprender. Eu sempre fui muito estabanado.
“É bolsa, Beto. É de graça. Não custa tentar.”
Ela tinha razão. Por que não experimentar? Memorizei o horário da seleção e fui lá.
Eram dezoito candidatos. O próprio Jayme conversou com o grupo. Disse que a bolsa duraria seis meses e que a função do bolsista seria a de nunca faltar, não recusar parceiras, participar das reuniões, usar uniforme e ajudar nos bailes.
Conversando particularmente com ele, reforcei o propósito de não faltar, dançaria com quem estivesse disponível, iria aos eventos, mas não queria usar uniforme, nem participar de reuniões que aconteciam tarde da noite. Tampouco gostaria de servir como atendente de baile, indicar mesa, enrolar tapete, o que fosse.
Ele sorriu para mim. Aceitou minhas condições.
E foi assim o meu início. Quando dei por mim, já estava dançando bolero, samba, soltinho, salsa, forró, merengue, zouk... Descobri também que poderia aliar minha descontração, minha criatividade com a técnica ensinada, fugindo assim dos padrões robóticos do povo que ficava lá repetindo os movimentos e nas mesmas sequências.
Até então, eu me considerava sem jeito, estabanado. E, de repente, descobria que era capaz, vencia uma limitação, tudo por conta de uma oportunidade que surgira, caíra do céu, acontecera por acaso.
Nada é por acaso, não é mesmo?
Dos dezoito bolsistas, só eu e um jovem estudante de medicina, Marcelo, ficamos. Os seis meses expiraram, mas eu fui mantido. Viraram seis anos divertidos onde conheci muita gente, fiz amigos queridos: Ana Lúcia, Paulinha, Augusta, Mário e Celma, Telminha, a doida da Maria de Lourdes com suas saias esvoaçantes e a doce Isabel, minha saudosa fã de carteirinha. Com essa gente, participei de passeios e excursões.
Despertei paixões em mulheres e homens, mas contornei todos com elegância.
E foram bailes e bailes, alguns temáticos como o do Halloween do Sírio e Libanês, o de São João no Clube Asa, onde eu fiz o noivo cego. Aconteceram aqueles com show ao vivo como o do Jorge Aragão e o da Tania Alves na Casa de Espanha, cuja pista era um sabão (vi muito casal se esborrachar). As matinês do Clube Militar do Centro, a noitada do Clube da Aeronáutica com a maravilhosa Orquestra Tupi.
Em cada final de noite era comum irmos ao Restaurante Lamas para um revigorante caldinho. Outras vezes, pizza na Guanabara no Leblon.
Num certo momento, comecei a dar aulas de dança também. Ensinei particularmente, em condomínio, em clube, em academia. Numa ocasião, substitui um professor por dois meses num endereço no centro da cidade. Rua do Resende. Fui sem saber maiores detalhes do lugar. Chegando lá, me deparei com um clube gay. A turma que me esperava era composta, na sua quase totalidade, por homens, dentre eles, um travesti. Havia apenas uma única mulher. Na hora, fiquei sem saber como agir, uma vez que a dança de salão é bem definida por um cavalheiro que conduz e uma dama que é conduzida. Eles logo resolveram qualquer dúvida. Metade anunciou que gostava de conduzir. Outra metade gostava de ser levada. Alguns gostavam das duas coisas. O travesti e a mulher eram par fixo. Ele fazia o papel do cavalheiro.
Mas quando as cantorias começaram a pipocar mais, foi se tornando difícil conciliar as duas coisas. Surgiu uma temporada longa numa casa noturna da Lapa. Eu virara crooner de baile como vivia imaginando. Com o tempo, as noitadas cansativas dos shows me obrigavam a faltar ao Centro de Dança, até o dia em que não fui mais. Eu me desliguei por completo. Uma vez, um grupo de dançarinos de lá apareceu no Sacrilégio onde eu cantava sambas clássicos. E ficaram surpresos, abismados ao me verem ali no palco. Jamais imaginaram aquilo.
Anos depois, minha amiga Sheila me convidou para acompanhá-la ao Clube Marimbás em Copacabana. Festa de aniversário bacana, chique, muito salgadinho, muita comida, muita bebida. O garçom vinha e íamos aceitando tudo. Uma mistureba no estomago.
Já alegrinhos, fomos para a pista de dança. Tocavam sucessos dos anos 80. Relembrei os passos da minha época de dançarino. Sheila se deixou conduzir bem.
Num canto da pista, um grupo de animação arrumava num cabideiro enfeites, plumas, chapeuzinhos, máscaras. Fui lá depressa, meti uma peruca na cabeça e voltei saltando pro meio do salão. Uma garota da equipe foi atrás de mim para resgatar a cabeleira.  As fantasias não estavam ainda liberadas. Um fotógrafo tirou umas poses.
Nós estávamos bem animados e chamando bastante atenção. Sheila me avisou:
“Estão servindo o jantar. Preciso comer, senão vou cair dura aqui.”
Entramos na fila da comida, pratos nas mãos. Muita fartura. Foi quando alguém me tocou o ombro:
“Beto! Você aqui?”
Eu me virei, mas não reconheci de pronto a mulher elegante que vinha falar comigo.
“Como vai?”, saudei.
E ela:
“Muito legal te encontrar aqui por acaso!”
Nada acontece por acaso. Era Mirna, a encabulada do início desta narrativa.
“Quanto tempo!”
“Um dia eu ia te encontrar. Não faz ideia do quanto você foi importante pra mim.”
“Eu? Importante?”
“Lembra aquele dia em que a gente se conheceu?”
Impossível lembrar alguma coisa naquele momento. Mirna prosseguiu:
“Eu tinha perdido meu marido, estava desesperada, sofrendo muito, sem saber que rumo tomar na vida.”
“Puxa vida... Que situação.”
“Pois é... Uma amiga me obrigou a procurar um terapeuta. E naquele dia eu estava indo para a primeira sessão e errei o endereço.”
“Ah é?”
“Sim. Parei lá naquela aula de dança e você me obrigou a entrar. Você não sabe o quanto aquilo significou.”
“A dança faz mesmo milagres.”
“Você me falou de um baile. Resolvi ir e não te achei lá. Mas foi naquele baile que eu encontrei o amor da minha vida.”
“Verdade?”
“Sim. Quero te apresentar a ele.”
Mirna me levou até a mesa de um senhor simpático e finamente trajado. Percebi logo um par de muletas ao seu lado. Apertei sua mão. Eles me contaram do flerte, do começo do namoro, do casório logo depois. E do acidente horrível que ele sofreu de carro, afetando para sempre os movimentos das pernas. Só se firmava e andava apoiado nas muletas.
“Afinal... E a terapia? Você chegou a fazer?”, perguntei a ela.
“Nunca fui ao consultório do cara.”
Riu. Eu a beijei com alegria e os apresentei à minha amiga Sheila.
Muito legal aquele encontro. Realmente, nada é por acaso.
Antes de retornar à fila da comida, como de praxe, dei minha rateada regulamentar, completamente abstraído das condições físicas do marido dela. Disse:
“Daqui a pouco, quero ver vocês dois dando uma dançadinha lá no salão, viu?”
Sorrisos amarelos. Nenhum comentário.
Falta de atenção, no caso.

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