Bichos fora do lugar



A praia do Diabo, durante um bom período, ficou liberada para o banho e lazer dos animais domésticos. Com muita frequência, eu montava na minha bicicleta e ia com Uly, minha cachorra dobermann, até essa praia “dos cachorros”, saindo de Botafogo, passando pelo Shopping Riosul, o túnel para Copacabana, toda a ciclovia do calçadão da Avenida Atlântica até chegar naquele comecinho de Ipanema. Uly correndo sempre rente a mim. Chegando lá, brincadeiras na areia com bolinha e um mergulho no mar.
Se as ondas estivessem altas, Uly não entrava. Ficava na beira latindo muito, nervosa comigo. E quando eu voltava, a inevitável mordida de repreensão. Naquele espaço havia todo tipo de cachorro, dos menores aos enormes: pinschers, cockers, labradores e um pastor alemão temido por todos. Era feroz, mas vivia solto e avançava em todo mundo. Seu dono, um pitboy arrogante, nem se incomodava com aquilo, sempre concentrado nas raquetadas do jogo de frescobol. Testemunhei brigas dos revoltados com o cara na presença até de policiais. Eu procurava ficar distante de qualquer confusão, levando Uly sempre para a ponta oposta da praia.
Fiz algumas amizades ali – bicho socializa, não é? - e presenciei coisas engraçadas, como uma senhorinha empurrando carrinho de bebê com três poodles de roupinhas, sapatinhos e gorrinhos de criança. Muito comum também ver pessoas conversando com seu animal, como a mulher que recolheu toalha e todos os seus pertences e saiu da praia indignada com algo, bronqueando com seu beagle:
“Hoje você abusou, Marquinhos. Não devia ter feito o que fez. Mamãe está muito magoada com você. Muito, muito.”
Ela quase chorava e o cachorro Marquinhos ia indiferente aquilo.
Sempre antes de ir embora, eu costumava dar uma volta com Uly pela pedra do Arpoador. Descia por um caminho íngreme, onde se forma uma piscina, bom da gente se banhar em dias de mar calmo. Numa dessas vezes, aconteceu uma coisa incrível. Uma baleia surgiu, veio vindo, vindo e passou bem rente a pedra onde eu e Uly descansávamos. Inacreditável. Encontro incomum. Eu, minha cachorra e a baleia lado a lado. Daria para saltarmos sobre aquelas costas cheias de cracas grudadas. Passou devagar, depois foi se afastando novamente livre. Pensei nos animais que são criados aprisionados. Não gosto de aquários, tampouco gaiolas.
Tenho uma amiga que cria um papagaio solto no apartamento. O bicho nutre verdadeira paixão e detesta quem dela se aproxime. Ataca.
Em viagem à Cumuruxatiba, conheci um comerciante de frutas e verduras que mantém um papagaio solto, circulando pela loja. O curioso é que o bicho detesta mulheres e adora ser acarinhado por homens. Naquela mesma localidade, conheci uma senhora que vive em casebre e cria galinhas, cabritos, gatos e cachorros todos soltos.
Num domingo de carnaval, encontrei uma amiga na Praça São Salvador toda feliz com sua calopsita no ombro. Achei aquilo uma graça e comentei com uma tia.
Dias depois, essa tia veio me visitar trazendo uma gaiola grande com quatro agapornes. Disse ser presente de uma amiga. Ela, sem coragem de recusar, e sabendo que eu gostara do pássaro da amiga, resolveu dá-los para mim.
“Isso aí não é calopsita.”
“Ah... Pra mim é tudo a mesma coisa.”
Os bichos gritavam tanto, tanto, tanto... E a sujeirama que faziam?
Aceitei o inesperado presente, mas não aguentei dois dias.
Chamei Gerson, o zelador do meu prédio, e pedi que arrumasse quem quisesse. Depois me lembrei de ligar para o zoológico para doá-los. Tentativas infrutíferas.
Gerson levou os bichos embora.
No dia seguinte, acordei bem cedo com os agapornes gritando.
Achei que era pesadelo. Não era. Olhei pela janela da cozinha que dá para o térreo do edifício ao lado, a casa do porteiro habitado por gatos, cães, tartarugas e passarinhos.
E lá estava a gaiola com os agapornes gritando, seus gritos ecoando pelo pátio, subindo pelas paredes. Um inferno.
Bronqueei com Gerson. Ele garantiu resolver a questão. Horas mais tarde, ele me informou que os bichinhos estavam de partida para Visconde de Mauá, onde seriam soltos em um viveiro. Fiquei feliz com a notícia. Destino bom teriam.
Na outra manhã, acordei com o retornado silêncio. Nada mais de agapornes. Fui até a janela da cozinha conferir. Não estavam mais. Continuavam lá os cachorros, os gatos, a tartaruga, os passarinhos e... três estátuas negras. Esfreguei os olhos sonolentos na tentativa de entender aquilo até cair na real estupefato:
“Pinguins! Pinguins!”
Chamei depressa o Gerson e o levei até a janela.
“Veja ali. Pinguins. O que isso significa?”
Ele coçou a cabeça e sorriu encabulado.
“Ah... O Seu Severino pegou ontem em Copacabana e resolveu criar.”
“Meu Deus! Esses bichos vão morrer! Não pode. Esse cara é maluco, é?”
“Eu falei pra ele, mas ele diz que não tem problema. Comprou uma saca de sardinha e fica jogando água neles o tempo todo.”
Minha revolta foi imensa.
“Vou denunciar esse cara. Vou ligar pro IBAMA, pra algum órgão responsável.”
Fiz muitas ligações sem sucesso. Entre as tentativas, corria até a janela para verificar a situação dos pinguins. Na medida em que o sol batia e ocupava aquele pátio árido, os bichinhos recuavam para a sombra, enquanto evacuavam jatos brancos pelo chão. Os cachorros e gatos dormindo indiferentes a eles.
Finalmente, consegui falar com a Sociedade Protetora dos Animais. Anotaram o endereço, mas disseram não haver gente disponível para a visita imediata.
Resultado: dias após, quando um fiscal deles apareceu, os três pinguins já estavam devidamente mortos e enterrados nos fundos do prédio.
Como existe gente estúpida nesse mundo, meu Deus.
Os pobres bichinhos do mar tiveram triste destino. Sorte teve a baleia daquele dia. Lembro-me dela passando juntinho e depois se afastando. Já ao longe, mergulhou mais fundo e a nadadeira enorme surgiu num aceno.
Uma maravilha aquilo, ela usufruindo a plenitude da sua liberdade.

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