O calote

Eu fui o último da família a conhecer a casa que meu pai comprara num condomínio em São Pedro d’Aldeia, mas fui o primeiro a usá-la. Custei a ir. Quando isso aconteceu, levei três amigos queridos para passarmos o feriado da semana santa: Flavio Edler, Luiz Feijão e Zé Waltinho. Na época, eu tinha um Fiat amarelinho e foi nele que viajamos.
Chegando lá, a constatação: a casa ainda sem mobília, sem cama, sem fogão, nem geladeira... Nada. Acampamos na sala mesmo com os colchonetes que levamos e saímos para conhecer tudo por ali. Na praia, fizemos amizade com umas meninas, uma delas, Janeth, que tocava um bom violão. Naquela época, eu ensinava o Luiz Feijão a dirigir e, com a fissura que o acometia, não tardou a pedir-me para praticarmos pelas ruas do condomínio. Circulamos por todas elas e também pelo balneário que fica ao lado. Já era início de noite quando entramos pela garagem adentro. Luiz radiante com sua habilidade. Reunidos na sala, o dilema: o que e onde comer? A fome se anunciava. Havia um mercadinho xexelento perto. Era só. Flavio sugeriu que fossemos atrás de uma boa pizza. Ideia aprovada, todos se banharam e vestiram seus shorts e camisetas. Só Luiz que se arrumou como se fosse para uma balada. Calça, camisa, tênis de grife e uma sacola estilosa, onde depositamos nossas carteiras. Novamente o pedido dele para que eu o deixasse retirar o carro da garagem. Concordei. Radiante, pousou a sacola na cadeira da varanda e fez a manobra com tranquilidade.
Assumi o volante e ganhamos a estrada. Quilômetros depois, estacionávamos diante de enorme pizzaria em Iguaba. Ocupamos uma das muitas mesas vazias da calçada. Três adiante, duas mulheres.
- Aquela ali não é a Lecy?
- Que Lecy?
- Lecy Brandão, a sambista.
- Será? Não parece.
- É ela sim.
Pelo cardápio, escolhemos a gigante portuguesa e chopes. O garçom surgiu, mas foi direto atender as duas. Foi e voltou várias vezes, ignorando nossos chamados.
- Tá vendo só? É a Lecy. Olha a atenção que o cara dá. Queria ser Roberto Carlos.
- E eu, o Jamelão.
Finalmente o garçom veio na maior má vontade e anotou tudo. E levou eternidade para nos trazer as bebidas. A impaciência começou a se fazer presente.
- Não entendo tanta demora. Esse lugar está praticamente deserto.
Um século se passou até a malfadada pizza chegar toda cortadinha à francesa e fria.
Famintos, caímos de boca. Foi aí que o Zé Waltinho nos chamou a atenção:
- Ih... Olha só a encrenca que tá chegando.
Vindo em nossa direção, um homem esfarrapado, imundo, a trançar pernas e falando sozinho. Estava numa manguaça daquelas.
- Ignore – disse Flavio - É só não dar papo.
O sujeito parou junto da nossa mesa exalando fedor horrível e falou quase gritando:
- Tudo tirando onda de bacana. É... Mas não me engano com vocês não.
Nós nos entreolhamos e enfiamos a cara na pizza. O manguaceiro continuou:
- Essa parada tá gostosa? Dá um pouco aí pra mim, sangue bom.
Mantivemos o silêncio. Ele se aproximou mais, quase tocando o ombro do Zé Waltinho e espalhou seu hálito de cachorro:
- Conheço bem o tipo de vocês. Aposto que são tudo uns caloteiros filhos da p...
Luiz Feijão não aguentou:
- Cai fora daqui, pudim de cachaça! Não enche o saco!
- Respondão, hein? Cheio de marra. Mas já saquei. Vieram aqui dar um calote gostoso.
Contivemos nosso amigo, que já se enfurecia, corava de raiva. Foi então que o bebum percebeu as duas lá na frente e resolveu liberar nosso anjo da guarda. Foi se afastando da gente, tropeçou, quase caiu. Chegou perto da mesa delas e gritou:
- Ih! É a Lecy! É você Lecy? Sou doido por você, Lecy!
As duas se constrangeram. O garçom veio imediatamente e o enxotou.
Não demorou nem um minuto para ele voltar e repetir sua inconveniência:
- Sou teu fã, Lecy! Eu te amo, Lecy! Adoro a sua música, Lecy!
As duas acenaram e o garçom tornou a vir e a afugentar o intruso.
Nessa altura do campeonato, nossa pizza já tinha sido devorada e a vontade de tomarmos mais chope se esvaiu porque o homem que “nos atendia” não dava o ar da graça, sequer olhava para nós, privilegiando apenas nossas vizinhas. Sugeri:
- Vamos pedir a conta? Quero sair daqui. To irritado com esse atendimento péssimo e ainda tendo que aturar esse miserável que nos chamou de caloteiros. Francamente...
Acenamos muito na direção do caixa sem sucesso. Zé Waltinho assobiou forte e o atendente azedo fez sinal para que esperássemos. Flavio abriu o cardápio e calculou o quanto pagaríamos. Mas, na hora de pegarmos nossas carteiras...
- Cadê a sacola, Luiz?
- Ih... A sacola! – exclamou ele – Caramba!
Ele a esquecera na cadeira da varanda lá de casa quando foi tirar o carro da garagem.
- Meu Deus! E agora?
- Só se formos até lá buscar. Ficam dois aqui.
- Mas estamos muito longe. Que situação...
- To nervoso – disse Zé Waltinho – Preciso ir ao banheiro.
Ele se levantou, meteu as mãos nos bolsos. Só moedas. Depois, sumiu lá para dentro.
- Explicaremos ao gerente – falei – A gente volta amanhã e paga.
- Vamos sortear quem é que vai dizer isso ao mal encarado – matutou Flavio.
- Sei de um jeito melhor – disse Luiz.
- Que jeito?
- Me empresta a chave do carro.
- A chave?
- Sim. Me empresta.
Entreguei-lhe o molho e ele atravessou a estrada, onde eu estacionara o Fiat.
Novamente o bêbado voltou para incomodar as duas mulheres.
- Pô, Lecy! Eu te amo, Lecy! Eu te amo! Não me despreza! Não faz isso comigo, Lecy!
Dessa vez, o garçom veio com mais um para agarrar o sujeito. Eles ali, ocupados com o inconveniente, sequer perceberam o Fiat amarelinho vindo, se aproximando da nossa mesa. Luiz acenou. Eu e Flavio não pensamos duas vezes. Saltamos das cadeiras e entramos depressa nele. Zé Waltinho, que vinha lá do banheiro, ao ver nossa artimanha, atravessou o salão da pizzaria na carreira e, feito um doido, mergulhou através da janela do carona, as pernas balançando ao alto, metade dele para fora, o carro arrancando, cantando pneu.
Enquanto isso, o cachaceiro era arrastado para longe pelos dois funcionários.
Bastante transtornado, ele se debatia e gritava a plenos pulmões:

- É assim que você me trata, Lecy? Pô! Sacanagem! Só porque é famosa? Nunca fui com a tua cara, sabia? Eu te odeio, Lecy! Eu te odeio!

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