Minha homenagem ao Pixinguinha. Amo esse texto.



 ‘Me emociono ao lembrar a infância pontilhada por música, carinho, amor’. 
Alfredo da Rocha Vianna Neto, único filho de Pixinguinha. 
(publicado no jornal O Globo em 07.04.96)

PIXINGUINHA 117 ANOS: 
Filho do músico conta como ganhou os pais com um sorriso.
          Os meninos da minha rua, em Olaria, vivam mexendo comigo: “Como é que, com um pai preto e uma mãe mulata, você saiu tão branco?” Eu ficava furioso. Queria briga, corria atrás deles, mas logo esquecia. Eu gostava tanto de meus pais que não me importavam as diferenças de cor. Mas é claro que havia uma história por trás. Meu pai Pixinguinha, e minha mãe, Beti, tinham se conhecido em 1927, em São Paulo. Ela, paraense, era atriz da Companhia Negra de Revistas, então conhecida pelo nome artístico de Jandira Aymoré (chamava-se, na verdade, Albertina Pereira Nunes, daí o Beti). Ele, carioca, tinha sido contratado para reger a orquestra durante o espetáculo “Tudo Preto”. Apaixonaram-se, casaram-se num cartório do Brás e voltaram para o Rio.
          Minha mãe, que abandonara a carreira, queria muito um filho. Meu pai, mais ainda. Em 1930, ficaram sabendo que ele era estéril. A solução era adotar uma criança. Procuraram por meses e meses em vários lugares, principalmente nas chamadas rodas, casas onde mães solteiras deixavam para adoção os filhos que não podiam criar. Mas nada. Por razão alguma, não encontravam a criança certa.
          Um dia, a mulher de tio Eugênio (irmão de Pixinguinha pelo lado branco da família) disse à minha mãe que sua lavadeira, Irene, tinha tantos filhos que já não sabia como criar os dois mais novos, Wilma (de quase 2 anos) e eu (de 6 meses). Queria dá-los para algum casal. Dias depois, lá foram Pixinguinha e Beti à casa de Irene. No caminho, Beti disse: “Olha, Alfredo, são duas crianças. Aquela que gostar da gente, aquela que nos sorrir, eu pego”. Wilma foi mostrada primeiro. Chorou, estranhou o casal. Já eu, no meu berço, sorri, ergui meus braços na direção deles. Virei seu filho.
          Pixinguinha saiu dali e foi me registrar em cartório. Fez questão de que eu constasse da certidão como “filho legítimo”. Foi assim para o resto da vida. Fico emocionado toda a vez me lembro de minha infância. Foram tempos maravilhosos, pontilhados de música, carinho, amor.
          No dia em que fiz nove anos, houve uma grande festa lá em casa. Diga-se que Pixinguinha sempre foi um homem festeiro. Nos nossos aniversários – dele, de minha mãe, meus – a casa se enchia de gente, na maioria músicos excelentes. Nos 23 de abril, então, a festa parecia não acabar. A dos 50 anos durou três dias. Mas, na dos meus nove anos, justamente na época em que os meninos mexiam comigo, a festa corria, e os dois me levaram para o quarto. Queriam me dizer algo. Sentaram-me entre eles e ficaram num jogo de empurra: “Conta você, Beti”. “Eu não, Alfredo, você!”. Aí, não sei o que me deu, olhei para um e para o outro, beijei-os e disse: “Já sei o que vocês querem me contar: que eu não sou seu filho legítimo. Mas, para mim, vocês são os meus pais.” Foi uma choradeira. Anos depois, ao fim de muita procura, minha mãe redescobriu Irene. Cega, surda, já idosa. Fez com que eu fosse conhecê-la. Quando comecei a trabalhar, foi idéia de Beti eu dar uma mesada a Irene.
          Meus pais formaram o casal mais feliz que conheci. Nunca brigaram. Nas bodas de prata, os dois diante do altar, o padre pediu desculpas pela organista que faltara. Pois meu pai foi lá pra cima e, enquanto eu o representava na troca de alianças, tocava o órgão. Em 1972, minha mãe foi internada. Estava com algo muito sério no aparelho digestivo. Operada, jamais sairia do hospital. Na mesma época, meu pai  sofreu seu quarto enfarte e foi internado no mesmo hospital. Pois todos os dias ele me mandava comprar rosas, vestia-se todo, levava as rosas para minha mãe, fingindo que estava ali de visita. Ela nunca soube deste quarto enfarte.

          Com a morte dela, meu pai baqueou. Só não se entregou de vez porque meu filho Eduardo estava pra nascer. Tinha ele apenas 17 dias quando fomos todos ao batizado do Rodrigo, filho do Euclides. Pixinguinha era o padrinho. Na igreja de Nossa Senhora da Paz, passou mal. Morreu praticamente nos meus braços, com um olhar que não posso descrever. Lembro-me bem: seu corpo estendido no banco da sacristia, muita gente entrando, chorando, sem saber o que fazer. O padre, impressionado, pôs a mão no meu ombro e disse: “Só o conhecia de nome, mas pelo que estou vendo, este homem, em vida, deve ter sido um santo”.

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