A viagem suspeita
O feriado do dia primeiro de maio se aproximava. Em
pleno expediente da firma, liguei o radinho, alento naquele dia chuvoso e frio,
e ouvi anunciarem diversos shows comemorativos pela cidade. No outro canto da
sala, na mesa oposta, minha colega de trabalho quis saber:
- É na sexta da semana que vem. Você tem algo planejado?
- Ainda não. Queria viajar. E você? Vá ver o show da
Bethânia. Está lindo.
- Não dá. Comigo é complicado. Sempre muita coisa para
resolver em casa.
Marize não era de programas. Levava vida pacata,
rotineira, da casa para o trabalho, do trabalho para a casa. Nos finais de
semana, afazeres do lar e o namoro avarandado com o noivo. No domingo, igreja.
Igreja batista. Nada acontecia de diferente no seu dia-a-dia. Nenhum passeio,
cinema ou viagem. Nada.
Ao contrário dela, a cada segunda-feira, eu vinha com
novidades: uma peça de teatro, algum show, festa, praia, caminhada com amigos
por trilha. Ela escutava com os olhos brilhando, desejosa de participar daquilo.
Porém, desagradava-se do teor ideológico de certos eventos por mim
frequentados. Ainda vivíamos num regime de exceção e palavras de ordem como “Abaixo
a ditadura” ou “O povo unido jamais será vencido”, provocavam-lhe arrepios. Certa
vez, contei da euforia misturada com apreensão que senti com amigos durante um
show no Maracanãzinho, evento organizado por movimentos de esquerda. Apreensão
pelos rumores de que os militares entrariam no estádio a qualquer momento para
achacar todo mundo. Euforia por ver Milton Nascimento e Mercedes Sosa cantando
juntos, ela poderosa, batendo seu tambor. O show transcorreu sem problemas e eu
voltei para casa em estado de graça. Marize escutou aquilo com os olhos arregalados.
- Minhas almas! Que perigo! Deve ter sido bom, mas eu
jamais iria num troço desses.
Noutra ocasião, contei detalhes de uma Mostra de
Folclore Brasileiro, onde assisti encenações de grupos de teatro, dentre eles,
a companhia de Luiz Mendonça com Tania Alves se destacando, todos com
aprofundamento nas questões sociais. Também descrevi o musical “Liberdade,
liberdade” do Millôr Fernandes e Flavio Rangel, uma coletânea de textos de
protesto.
Levei para o escritório dois folhetos e declamei “Trem
da madrugada”, do excelente cordelista Azulão e “O encontro de Jararaca e
Ratinho no céu”, do jornalista Eldemar de Souza. Esses eram tranquilos, mas
havia dias em que eu chegava ao escritório completamente possuído pelo que
ouvira nos debates do Teatro Casa Grande, onde o povo se espremia no auditório
e até nas escadarias para absorver palavras de pensadores como Antonio Houaiss,
Callado e Darcy Ribeiro.
Marize escutava tudo com as mãos nas bochechas. Intervalo
na contabilidade para o cafezinho, a barra de chokito e um aconselhamento em
tom de brincadeira:
- Evite esses programas de comunistas, rapaz. Olha
lá... Não quero ter que levar maçãs pra você no presídio.
Nós nos dávamos bem, apesar das diferenças no pensar.
Impossível não gostar dela. Era querida por todos na empresa, responsável,
prestativa, amável com os colegas, cautelosa nos comentários. Não se envolvia
em fofocas.
Resolvi não mais lhe contar detalhes desses meus
entretenimentos, o cunho político inflamado de muitos. Tudo virou risos e flores.
Naquele dia chuvoso e frio, escutei o locutor da rádio
relembrar o show de anos atrás no Riocentro, onde uma bomba explodira no colo
de um militar dentro de um puma.
- Já imaginou se os terroristas detonam a merda no
palco? – meditou ela.
- Seria uma tragédia. E muitas das nossas maiores
estrelas lá cantando.
A reportagem acabou e a voz de Simone entrou cantando “Tô
que tô” (Kleiton e Kledir).
Desde que ocupei a sala da contabilidade, implantei
aquele radinho e a Donna Summer do toca-fitas velho teve que se revezar com os
nossos cantores de MPB.
Diminui o volume para atender a ligação de um amigo com
um convite. Falei:
- Uma viagem? Quando? No feriadão?Que legal! Pra onde?
Como é? Eu topo. To nessa.
Marize ouvindo curiosíssima. Quando desliguei, ela
perguntou:
- Vai viajar pra onde?
- São Paulo.
- Puxa... Logo São Paulo? O que vai ter lá?
- Ah... Um evento pra comemorar o dia do trabalhador.
- Hummmmm! Já vi que é coisa de política. Confusão na
certa. Olha a bomba, hein?
- Não é não – menti – É só uma festa que vai rolar o
dia inteiro com muitos shows, barraquinhas, brincadeiras... Um ônibus sai do
Rio sexta à noite e volta na madrugada de sábado para domingo.
Marize aumentou o volume do rádio e não quis saber mais
nada.
Quando entramos na semana seguinte, ela chegou cabisbaixa
ao escritório. Supus tratar-se de algum aborrecimento em casa ou com o noivo,
mas não seria indiscreto.
Passada meia hora, finalmente, queixou-se:
- Tenho levado uma vida tão sem graça, sabe? Queria
agitar, viver coisas novas, preciso de aventuras. Essa viagem que você vai fazer
no feriado...
- O que tem?
- Como é que se faz pra participar?
- Nada de mais. Apenas colocar a mochila nas costas e
entrar no ônibus.
- Mas deve ter uma taxa de embarque. Quanto é?
- Não sei o valor ainda, mas será baratinho. Uma
bobagem. Só pagar na hora.
- Ótimo. Então, está decidido. Vou viajar com você.
Tudo bem?
- Jura? – surpreendi-me.
- Juro. Estou cansada da mesmice. Quero fazer coisas
diferentes.
- Oba!
Minha animação não era de todo fingida porque, apesar
da certeza de que ela não iria, que aquilo não passava de onda, fiquei feliz pela
manifestação de querer mudar. Por isso, para não quebrar aquele encantamento,
mantive em segredo os detalhes da tal viagem que, certamente, seriam
considerados sórdidos.
Porém, dez da noite do feriado de sexta-feira, para
minha surpresa, lá estava Marize, toda bem trajada, casaco de lã, fina mala de
couro, no ponto determinado da Praça XV, pronta para embarcar naquela aventura
desconhecida. Ao vê-la ali daquele jeito, um arrependimento momentâneo me
bateu. Depois, refleti bem. Seria bom que fosse mesmo e visse que não havia
bichos papões.
Ficamos sabendo que o ônibus só sairia lá pelas onze e
meia. Outros três já haviam partido
lotados. Escolhemos dois lugares no meio. Fiquei com a janela. Retirei da
mochila um adaptador para dois fones de ouvido. Viajaríamos ouvindo músicas especialmente
selecionadas para a ocasião.
Marize reconheceu lá fora o amigo que me convidara
para aquilo e perguntou:
- Não é aquele que vive metido com política?
- Ele? Não. Não é não – menti.
Em seguida, outra pergunta:
- Por que razão essas pessoas embarcam com bandeiras
vermelhas?
- Vivemos período de insatisfação – disse cínico –
Manifestante tem em toda a parte.
Alguém entrou distribuindo folhetos cujo título era “A
revolução é agora”. Ela deu uma passada de olhos naquele papel e o enfiou na
lixeirinha.
- Gente mais sem noção.
A coisa ficou mais esquisita quando um casal jovem sentou-se
no lado oposto ao nosso e acendeu um baseado. Antes da primeira pitada, ofereceram
à minha companheira, que recusou terminantemente e sussurrou:
- Mais gente sem noção. Trouxeram maconha. Estou
achando essa excursão esquisita.
Já passava da meia-noite quando um senhor entrou, parou
lá na frente, desejou boa viagem, agradeceu a presença de todos e citou o
jornal Luta Operária. Voltou lá para fora para papear. Nada do ônibus querer
sair.
- Luta Operária? – Marize quis saber – Que estória é
essa de Luta Operária?
- Ah... Estamos no primeiro de maio. É só o que vamos
ouvir – respondi transpirando.
- Isso se não tiver bomba. Ai, Meu Deus!
- Que bomba, que nada.
- Se você garante... Essa festa lá em São Paulo...
- Olha... Eu não sei bem como vai ser. Disseram que
será num estádio, ginásio, sei lá.
- Pelo menos, a Fafá de Belém vai cantar?
- Provavelmente. Essa aí está em todas.
Senti que ela começava a se inteirar da realidade. Nisso,
o senhor que acabara de falar, retornou com um comunicado alarmante:
- Companheiros! Acabamos de saber por gente nossa que
os três ônibus foram interceptados em São Paulo pelas forças da repressão. Estão
todos detidos num quartel do exército. Isso não pode acontecer! É uma
arbitrariedade da ditadura! Mas nós iremos de qualquer maneira, porque a luta
continua!
Tive a impressão de ter ouvido minha amiga soltar um “Meu
São Jorge”. Ela levantou-se da cadeira num sobressalto, retirou a mala do
bagageiro e saiu depressa do ônibus. Na rua, disparou a correr. Fui atrás dela
ajeitando a mochila nas costas.
- Marize! Marize! Espere! Não precisa sair assim desse
jeito!
- O que? E ficar para ser presa como maconheira e
comunista? – gritou se esbaforindo.
Acenou desesperada para um taxi que passava e se
enfiou nele. Episódio inesquecível, que se transformou em risada depois. Mas
ela jurou não mais querer programa comigo.
Ainda trabalhamos um tempo juntos. Depois, a vida nos
levou por caminhos diferentes. Soube que ela se casara e era responsável pela
contabilidade de uma clínica.
Muitos anos depois, eu fazia show no Cotton Club em
Copa, quando fui surpreendido com a sua chegada. Mais madura, bonita, bem
maquiada, cabelos castanhos com luzes e sem marido. Foi uma alegria nosso
reencontro. Ela contou-me que, depois que se separou, assistia a tudo o que era
show. Só ficara faltando o meu.
Para tranquilizá-la, avisei:
- Olha... Você pode até achar o show uma bomba, mas bomba de
explodir, juro que você não vai achar.
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