Um palpite infeliz
Certa
vez, convidaram-me a participar de um show com outros artistas numa casa
noturna na Zona Sul do Rio.
Aceitei.
Porém, desconhecia ou não me recordava da razão do evento.
Ao
chegar ao lugar bastante badalado, fui recebido pelo organizador, um produtor
musical que chamarei de Tarcísio. Bastante caloroso, me deu um abraço e disse:
“Que
bom que você aceitou vir à minha festa. Tenho certeza de que escolheu um lindo
repertório para mim. Fique à vontade.”
Olhei
em volta. Salão lotado de gente, gente em pé, gente sentada, muito falatório
abafando a música ambiente.
Indicaram-me
uma mesa de canto, onde um consagrado compositor da Mangueira acabava de
receber do garçom um copo de bebida:
“Veja
só... Uísque. Fazia tempos que não bebia esse troço.”
E
pediu que o rapaz pusesse uma rodela de limão no copo. Ele me informou que,
naquela noite, salgadinhos e bebidas correriam por conta do tal produtor
Tarcísio.
“Mas
afinal”, perguntei. “Qual a razão desse show aqui?”
“Sinceramente...
Não sei.”
O
garçom trouxe a mesma bebida para mim e fiquei ali com meu companheiro de mesa
bebericando, cumprimentando os que se chegavam, contando lorotas, rindo.
Estávamos bastante animados.
Logo,
deram início ao show. Uma cantora amiga minha faria as honras de apresentar
seus colegas e também cantar. E assim aconteceu.
Cada
artista que subia no palco, falava, dizia coisas, saldava o dono do evento e
cantava duas músicas.
E
eu lá com o amigo compositor bebendo, falando bobagens, não prestando atenção
em nada. Até que ele comentou:
“Esse
povo gosta de falar, hem? Não basta só subir e cantar?”
Concordei
com ele:
“Pois
é... Não sei o que tanto falam.”
“Comigo
não tem blá-blá-blá. Darei meu recado e tchau.”
“Pensando
bem... Acho que vou dizer alguma coisa, contar uma piada, sei lá.”
E
o mangueirense me deu a sugestão, que só mais tarde constataria ter sido um
palpite infeliz:
“Você
vai cantar o que? Fale sobre um compositor, o autor de uma das músicas.”
Aquilo
foi uma luz. Eu me dei conta de que estávamos no dia 10 de dezembro, véspera da
data de nascimento do Poeta da Vila, que nascera na madrugada do dia 11.
“Maravilha!
Vou homenagear o Noel!”
Um
bom tempo se passou até me chamarem. Já era o início da madrugada.
Subi
ao palco bastante animado. Dali de cima, pude avistar uma mesa comprida com o
povo brindando, o produtor do show na cabeceira todo sorridente. Era um sujeito,
como direi, completamente desapetrechado de qualquer “predicativo”
estético. Ao contrário: era bem feio de rosto, magrelo, comprido igual um
caniço, mas vaidoso que só, cheio de pose, cheio de caras e bocas.
Pois
bem... Comecei minha apresentação dando “boa noite” e cantando “Doce de Coco”
do Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho.
Aplausos.
Antes
de cantar a segunda, resolvi falar:
“Bom...
Agora a próxima música será a minha homenagem. Minha homenagem especial.”
Mesmo
sob a luz do refletor, percebi o Tarcísio se levantando com a taça na mão, todo
envaidecido, sorriso cheio de dentes. Prossegui:
“Quero
reverenciar um aniversariante desta noite, um homem que, apesar de franzino, magro,
feio, esquisito...”
Tarcisio
desfez rapidamente o sorriso. As pessoas na mesa dele murmuraram. Clima de
indignação. E eu na minha fala:
“Era
esquisito demais, o que não o impediu de realizar suas safadezas...”
O
cara pousou a taça na mesa e gesticulou na minha direção, como que possesso.
Parecia ofendido.
Continuei:
“É
morto, mas é imortal. Nasceu nesta noite e...”
A
cantora apresentadora parecia aflita. Grudou a boca no meu ouvido e sussurrou:
“Tá
maluco? O que você está fazendo?”
“Como
assim?”
“Tá
ofendendo o homem.”
“Eu?
Ofendendo? Estou falando do Noel. Hoje é aniversário dele.”
“E
aniversário do Tarcísio também.”
Ouvi
aquilo e desejei que um feixe de luz de Jornada nas Estrelas me
teletransportasse dali imediatamente. Teria que consertar a situação.
Voltei
ao microfone para acrescentar:
“Estou
falando de Noel, gente. Nasceu na madrugada deste dia e se imortalizou com sua
obra magnífica.”
Tarcísio
tornou a pegar a taça, pareceu se acalmar um pouco, mas sua fisionomia ainda
era de aborrecimento, principalmente porque risinhos se espalhavam pelo salão.
Finalizei:
“Quanto
a você, Tarcísio... Está aí, vivinho, vivinho, esbelto, charmoso. Parabéns,
viu?”
Saiu
pior que a encomenda.
Cantei
“Feitio de Oração” (Noel Rosa) de olhos fechados.
Vieram
os aplausos. Desci do palco, beijei minha amiga, abracei o mangueirense e sai
de lá bem depressa. Sem querer, arranjei naquela noite um desafeto.
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