Papai Noel camicase e a cantoria na sauna.




Durante o meu tempo como integrante do Coral da Riotur, vivenciei situações curiosas em nossas recitas, algumas muito boas, divertidas. Eu e meus colegas também experimentamos o insucesso, o constrangimento, a irritação após uma cantoria ruim. Isso faz parte, mas não merece consideração.
Prefiro contar dois episódios, dois eventos natalinos que fomos convocados.
O primeiro, num clube situado no Alto da Boa Vista, festa de final de ano da Riotur. Chegamos lá, cada um em seus carros. Nosso grupo se reuniu num jardim abaixo do pátio onde acontecia a festa com som alto, muita gente, fila para churrasco.
Uma das coralistas mal-humorada ajeitou uma pochete enorme que trazia atravessada na barriga e reclamou do barulho.
“Já não gosto de música, e agora sou obrigada a ouvir pagode?”
Fiquei perplexo com o comentário. Não gosta de música? Enfim... Tem louco pra tudo.
Mario Robert, nosso regente, demonstrou impaciência. Queria encontrar um lugar qualquer, um cantinho que fosse para fazer o aquecimento do coro. Andava de lá pra cá, de cá pra lá. Procurou funcionários do clube, subiu e desceu escada.
A assistente de regência Ignez veio resolver o problema:
“Tem um lugar vazio aqui pra gente vocalizar.”
E apontou para uma porta de alumínio com janelinha de vidro. Era uma sauna.
Quase todo mundo achou graça.
“Sauna?”
“Cantar na sauna?”
“Está desligada”, acalmou Ignez.
Mario aceitou a sugestão:
“Pode ser. Não custa tentar. Precisamos fazer vocalise de qualquer maneira.”
A coralista mal-humorada mudou a pochete de posição na barriga e reclamou:
“Sou claustrofóbica e detesto sauna.”
Apesar das reclamações, todo mundo entrou ali naquele ambiente ladrilhado, úmido e abafado. Nós nos ajeitamos nos degraus e começamos os exercícios. Cinco, dez, quinze minutos de aquecimento. Era, literalmente, um aquecimento. O suor escorrendo dos rostos, as roupas se encharcando, gente se abanando. Até que não deu mais pra resistir. Todo mundo correu para fora. O calor ali dentro estava insuportável. Ficamos tempo demais naquilo.
“Está bem”, concordou Mario. “Vamos lá pra cima.”
Mas ao chegarmos ao pátio da festa, vimos que seria impossível entoarmos nossas canções natalinas. A galera bastante animada de bebida dançava, gargalhava, gritava ao som do pagode. Eu e meus colegas mais sensatos, depressa agarramos pratos e nos metemos na fila do churrasco. Para nossa alegria, não cantamos.
Mas em outro episódio, a coisa foi bem diferente. Mario nos comunicou de uma apresentação em Motas, uma localidade rural entre Teresópolis e Friburgo, se não me engano. Cantaríamos durante a chegada do Papai Noel para as crianças do lugar. Teríamos mordomias: ônibus para nosso transporte, lanche e almoço.
Sete da manhã de um domingo. Nós plantados diante da escola de circo na Praça da Bandeira esperando o ônibus, que chegou com quase uma hora de atraso. Descobrimos não sermos os únicos privilegiados com aquele transporte. Dentro, uma trupe circense e um grupo de pagode. A viagem até lá transcorreu tranquila, silenciosa.
Já na serra, num certo trecho, o ônibus deixou a rodovia e se meteu por uma estrada lamacenta e bastante esburacada. Nós balançamos muito.
Atravessamos pelo meio de grandes plantações de hortaliças, pequenas roças com suas casinhas até pararmos diante de um grupo escolar com um campo de futebol.
Tudo enlameado da chuva que caía de vez em quando. O tempo estava bem instável.
Uma senhora se plantou na porta do ônibus e, para cada um que saltava, ela entregava uma caixinha de toddynho, um pacote de biscoito goiabinha e uma laranja.
Mario indicou uma casa lá no alto do morro. Era para onde deveríamos ir para nos aquecermos e esperar a hora do evento.
Era um subidão.
Respiramos fundo e seguimos corajosos. De vez em quando um escorregão aqui, outro ali. Muita lama. No início da escalada, cruzamos por outra senhora numa barraquinha dessas de festa junina a mexer com colher de pau uma água escura.
Resolvi bisbilhotar:
“O que temos ai?”
“O almoço de vocês”, respondeu ela. “É chuchu e cenoura daqui mesmo.”
“Nosso almoço?”
Eu me surpreendi. Não havia uma carnezinha sequer naquele caldo. Criamos muita expectativa e era aquilo que nos cabia. Intui que aquele não seria um bom dia.
Alcançamos a casa com os bofes pra fora. Uma bela casa de pedra, móveis rústicos, lareira. Eu me joguei numa cadeira da varanda e pedi água para uma mocinha.
O presidente da Riotur, dono da residência, veio nos saudar.
Já refeitos, fizemos os exercícios de vocalise e ensaiamos.
Ensaiamos, ensaiamos, ensaiamos.
Lá de cima, podíamos ver um tablado pintado de branco montado no campo de futebol, palco do nosso show. O tempo foi passando, passando, passando.
A fome já dava seus sinais. Desanimei só de pensar naquela sopa, uma água de aparência suja que nos aguardava. Pedi pão pra empregada da casa. Meus colegas entraram nessa também.
Enquanto mastigávamos, vimos grupos de crianças lá embaixo se perfilando e ocupando aquele gramado molhado. A trupe de circo fazia evoluções e o som dos pagodeiros saía de dentro da escolinha.
Mario avisou que era hora de descermos.
Atravessamos o campo de futebol na ponta dos pés e saltando em certos pontos para não nos sujarmos. Muita água, muita lama. Subimos no palco e os naipes se ajeitaram. Era um palco alto, porém, pequeno. Mal cabíamos todos nele. Quase caíamos.
Mario teria de reger fora dele, embaixo.
“Assim que o Papai Noel aparecer, a gente canta.”
Ficamos paradinhos esperando um bom tempo. A criançada estava inquieta, ansiosa, se aglomerando na nossa frente.
Eis que alguém apontou para adiante e avistamos uma charrete descendo a ladeira num embalo fora do normal. O condutor, de roupa vermelha, gorro e barba branca, acenava e gritava algo, que não me soava muito com o famoso Hou! Hou! Hou!
Ele não tinha aquele porte conhecido do bom velhinho. Ao invés de gorducho, era mirrado e pouco à vontade naquela função.
Nosso regente virou-se para o coro e fez seu gesto de comando.
E começamos a cantar:
“Blém, blém, blém, blém... Toca o sino blém, blém-blém, anunciando que Cristo nasceu em Belém, Belém, que nasceu em Belém...”
A charrete varou o campo de futebol numa velocidade impressionante e foi direto pra cima da garotada que se desbaratou. Uma correria, pânico total.
O que estava acontecendo com o Papai Noel? Endoidecera?
E nós lá cantando:
“Blém, blém, blém...”
Percebemos que a barba branca dele queria se desgrudar, ele acenando, mas era um aceno de desespero.
Só então é que entendemos o que ele dizia:
“Socorro! Socorro! Não sei parar isso!”
O cavalo enfurecido fez a charrete dar uma volta completa pelo campo de futebol, espalhando lama pra todo lado, criançada correndo em todas as direções, todas sujas. As professorinhas desesperadas.
Mario virava a cabeça para trás o tempo todo assustado, mas não parava de reger.
Nós, obedientes, continuávamos:
“Blém, blém, blém... Toca o sino blém, blém-blém...”
Quando o cavalo já ia dar o segundo giro pelo gramado, a roda da charrete afundou. Uma coralista saltou do palco e agarrou as rédeas do animal. Conseguiu acalmá-lo.
Quem não se acalmava era o Papai Noel. Revoltado, arrancou a barba, saltou depressa e saiu praguejando, metendo o pé naquele lamaçal.
Não ia ganhar nada mesmo por aquele papelão.
Ganhou uma laranja na cabeça atirada por uma criança sapeca.
Foi tudo muito rápido.
Nosso “Blém-blém-blém” é que demorou um pouquinho pra acabar.

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