A menina valente, o polvo e o assassino da praia
Quando
meu pai comprou um terreno em Angra dos Reis, eu e meus irmãos ainda éramos
crianças e, até então, vivíamos como “pudins de apartamento”, de casa para a
escola, da escola para o clube, do clube para casa.
Aquela
aquisição prometia novidades, aventuras nunca dantes experimentadas.
Nossa
propriedade possuía três pequenos casebres cercados árvores frutíferas e uma densa
mata descendo íngreme até as areias fofas e branquinhas da praia da Figueira.
A
expansão imobiliária ainda não havia chegado com força por lá.
Nossa
vizinhança diferenciava radicalmente uma da outra. À direita, uma pequena
aldeia de pescadores com seus barcos coloridos, arrastões, tarrafas. À
esquerda, um casarão de portas e janelas sempre fechadas bem no centro de um
grande gramado com vários canteiros de plantas espinhosas. Havia também um
cais. Imaginei ser ali uma mansão assombrada.
Nossos
três casebres eram distribuídos da seguinte maneira: o primeiro, logo ali na
areia. Serviria para hospedar nossos amigos. O segundo, escondido entre árvores
e em melhor condição, mais acima. Esse foi o escolhido para nos instalarmos. Dali,
bela vista para a baía de Angra.
O
terceiro, bem ao lado, alinhado ao nosso, encontrava-se em triste estado, o
reboco caindo, os tijolos a mostra. Esse barraco virou depósito de materiais,
pás, enxadas, tranqueiras e cenário de estórias de terror que eu inventava para
contar.
Lembro-me
da euforia da primeira noite, a casa iluminada por lampiões a gás, a sombra do
arrastão que descia pela viga central que nem teia de aranha a se agarrar naquelas
paredes baixas, os ruídos dos bichos lá fora, o som das marés. Não se via nada
lá embaixo. De vez em quando, alguma conversa ou o motor de barco ao longe em
sua pesca noturna e umas luzinhas piscando. Eram vagalumes.
Antes
de deitarmos, olhamos o céu salpicado de estrelas e vimos algumas cadentes
riscando em segundos.
“Rápido!
Tem que fazer um pedido!”
Uma
experiência nova e maravilhosa.
Acordamos
bem cedo. Um morador dali veio nos trazer fruta-pão, sua maneira de dar boas
vindas. Experimentei comer aquilo com manteiga na hora do café.
Em
seguida, praia, sol, brincadeiras de mergulhar, catação de conchas, banho de
água doce na pipa instalada por meu pai junto da gigantesca árvore da dita
fruta.
Quando
a fome apertou, a comida preparada num fogãozinho jacaré já nos esperava. Nosso
primeiro almoço ali ao som do Tim Maia que cantava do toca-fitas a pilhas:
“Vou
ver Cristina, vou ver Cristina...”
Os
amigos de natação do Tijuca não tardaram a aparecer com seus pais para um final
de semana. Aquele habitat selvagem para nós, também era para eles.
Foi
uma grande farra. Os adultos combinaram passeio pelas praias próximas e saímos
em dois barcos. O homem que conduzia o nosso aproveitou para fazer graça:
“Cuidado,
meninos. Essas águas estão cheinhas de jacarés.”
Aquilo
deu margem a muita gozação.
Ao
retornarmos, a surpresa: um enorme iate parado no cais da mansão.
As
janelas da casa continuavam fechadas, mas havia gente. Quem estaria ali? Seriam
vampiros? Mortos-vivos?
Contamos
as escotilhas. Nove da cada lado.
Durante
o tempo em que vivemos em Angra, encontramos muitas vezes aquele iate ancorado,
mas jamais o surpreendemos chegando ou saindo, nem nunca avistamos qualquer ser
vivente transitando por ali. Um mistério.
Outra
novidade foi a garrafa de vidro que encontrei na areia enquanto catávamos
conchas. Estava cheia d’água e havia um polvo dentro. Ele se mexia. Estava
vivo.
Corri
para mostrar aos meus amigos e aos nossos pais, que observaram, acharam graça,
e nada mais disseram.
Decidi
que ele seria nosso bicho de estimação, mas seria preciso tirá-lo dali de
dentro. Virei a garrafa ao contrário para esvaziá-la e o bicho se agitou todo,
foi se esticando, se esticando e saindo pelo gargalo. Apavorado, deixei cair no
chão. Meus amigos tentaram pegá-lo, mas ninguém tinha coragem. Alguém mais
ignorante acabou espetando o pobre com um pedaço de galho.
Constatada
a morte do polvinho, organizamos a cerimônia de velório e enterro.
Lembro
bem disso. As meninas cataram flores miúdas, inventamos uma sepultura, rezamos
e simulamos choro.
À
noite, nossos pais assaram batatas e carnes numa fogueira e rolou cantoria.
Um
final de semana bem divertido.
Nos
seguintes, sem a companhia dos amigos do Rio, ficávamos quietos tomando nosso
banho de mar, observando as crianças que brincavam distantes da gente, filhos
dos pescadores. Do outro lado, a mansão fechada. Inventei uma estória para meus
irmãos:
“Os
moradores da casa estão mortos lá dentro. Foi o caseiro quem matou.”
Eles
não gostaram daquilo. Eu continuei:
“Sei
o nome do assassino. É Gilberto Mariano.”
Minha
irmã riu da invenção do nome composto. De súbito, gritei e apontei para uma das
janelas:
“Vocês
viram? Alguém apareceu atrás da cortina!”
“Não
tem ninguém lá.”
“Tem
sim, eu vi.”
“Quem?
O Gilberto Mariano?”
“Não.
Ali só tem alma penada. Estão agora olhando pra gente.”
“Ah
tá... E o assassino?”
“Quer
saber aonde ele se esconde?”
“Quero.”
E
bem devagar, fui virando o dedo indicador na direção do barraco arruinado, o
que servia de depósito para nossas ferramentas. Falei com a voz funesta:
“Ele
está lá. Sai todas as noites pra pegar mais vítimas e cortar suas cabeças.”
Duas
meninas de vestidinhos simples e um garoto magrinho foram se aproximando,
nadando cada vez mais perto de nós. Ficamos incomodados com a chegada daqueles
intrusos. Tive que avisá-los:
“Hei.
Aqui é a nossa praia.”
A
garota mais velha riu:
“A
praia é de todo mundo.”
“Não
é não. Meu pai comprou.”
Indiquei
a ela todo o nosso terreno, a árvore de fruta-pão, a amendoeira junto à nossa
primeira casa.
“A
praia é mais minha que sua”, respondeu. “Eu já moro aqui faz um tempão.”
Sai
da água e, com um galho comprido, risquei duas retas das árvores até o mar para
demarcar nossos limites.
“Ninguém
pode passar aqui. Ninguém. Só a gente.”
“Quero
ver quem vai me impedir”, desafiou a insolente.
E
foi saindo da água, pisando a areia a debochar de mim, um menino tão tolo.
Corri para afugentá-la. Ela recuou, se jogou na água, mergulhou fundo.
Emergiu
e, novamente, veio vindo, provocando, tocando nosso território com seus pés. Eu
avançava, ela recuava. E tudo se repetia.
Passados
alguns minutos, já virara brincadeira. Já estávamos amigos.
Ela
se chamava Natalina e era filha do pescador que falara sobre jacarés.
“Seu
pai é bobo, não é? Pensa que eu acredito?”
“Mas
tem jacaré sim. Já vi muitos. Eu não tenho medo.”
“Duvido.”
Natalina
e seus irmãos viraram nossas companhias constantes. Cedinho vinham nos chamar.
Enquanto brincávamos, contávamos sobre nossa vida no Rio, nossos brinquedos, os
amigos, os filmes que vimos no cinema, coisas que desconheciam. Natalina não
tinha muito que contar, apenas coisinhas simples que vivia naquela praia,
ajudava a mãe nas funções da casa e limpava os peixes trazidos pelo pai.
Sempre
frisava que não se assustava. Não acreditava em mula sem cabeça, não temia
escuro, nem qualquer animal. Pegava caranguejo, perereca, qualquer bicho com a
mão. Natalina era corajosa. Não tinha medo de nada.
“Até
cobra já matei.”
“Você
é mentirosa, hem, Natalina?”
Uma
vez, fizemos uma competição para ver que é que conseguia catar mais estrelas do
mar. Enfileiramos uma dezena delas coloridas na areia.
“Olha
só como elas se mexem.”
Ela
ia virando cada uma, para me mostrar pequenos dentinhos que se mexiam por
debaixo. Quase sempre, antes de nos despedirmos, íamos até a sepultura do
polvinho e ficávamos ali uns segundos rezando por ele. Depois disso, cada um
seguia para sua casa. Algumas vezes Natalina aparecia tarde da noite para nos
visitar. Noite fechada.
Meus
pais se impressionavam daquela menina vagar na escuridão com tanta facilidade e
sem os pais dela se incomodarem.
“Dorme
hoje com a gente, Natalina. Quero te contar sobre o Gilberto Mariano.”
Ela
aceitou, mas minha mãe não permitiu. Nossa amiga fez cara de conformação e foi.
Em
algumas dessas visitas, ela fingia que ia embora, mas ficava junto da janela do
nosso quarto conversando baixinho com a gente até meus pais perceberem.
“Vá
pra sua casa, Natalina.”
Outras
vezes, ela vinha. Depois, ia mesmo.
Mas
eu, encapetado, provocava algum barulho e falava sussurrando:
“Ouviram
isso?”
Meus
irmãos se assustavam muito fácil.
“Será
a Natalina?”
“Não”,
respondia eu em tom cavernoso. “É o Gilberto Mariano rondando a casa.”
Minha
irmã entrava em pânico e chamava logo minha mãe:
“Mãeeee!
Olha o Bebeto falando em Gilberto Mariano!”
E
vinha a reprimenda:
“Fica
quieto, Carlos Roberto. E tratem logo de dormir!”
Eu
esperava uns minutos e, quando tudo se acalmava, novamente fazia algum
movimento, me mexia, fazia a cama ranger para sussurrar:
“Meu
Deus... O assassino está aqui. É o Gilberto Mariano.”
“Para
com isso, Bebeto! Oh, mãeeeee!”
Era
muito divertido.
Dias
depois, quem se assustou fui eu. Fui com meu pai e outros num passeio de barco com
pesca submarina, cujo piloto era o pai da nossa amiga.
Fomos
longe. Levamos um bom tempo até pararmos bem próximos de uns rochedos.
Sol
forte, vento, as águas agitadas. Levávamos conosco equipamento de mergulho, pés
de pato, máscaras, esnórquios. Seria minha primeira vez numa aventura daquelas.
“Tá
animado, garoto?”, perguntou o pescador.
Fiz
com a cabeça que sim. Coloquei a máscara e calcei os pés de pato. Meu pai e
dois outros homens também se equiparam. Um deles levava arpão.
Quando
já ia mergulhando, o cara repetiu a brincadeira:
“Cuidado,
viu? Aqui tá cheio de jacarés.”
Ri
da bobagem e me meti dentro d’água. O que eu vi a partir de então foi
indescritível. Aquele mundo colorido, peixes que eu só imaginava em aquários. E
tudo ali era aumentado. Vi acarás e uma arraia lá embaixo passando. Um peixe
enorme a nos observar da sua toca cercado de filhotes. Plantas, algas, estrelas
do mar e, de repente, me deparei com um lagarto enorme verde e amarelo pousado
de barriga para cima numa pedra. Parecia estar morto. Não tinha certeza
daquilo. Só me vinha na cabeça a estória dos jacarés. Na dúvida, dei meia volta
e nadei feito um louco até o barco. Meu
pai, quando percebeu meu sumiço, se desesperou. Foi trazido de volta passando
mal, chamando meu nome. Eu tremia de medo.
No
fundo, no fundo, cai na brincadeira do pescador.
Com
a proximidade do final das férias, convencemos nossos pais e os pais de
Natalina a levá-la conosco para passar uns dias no Rio. E assim aconteceu.
Ela
viajou ansiosa. Nunca tinha estado numa cidade grande. Seus olhos brilharam com
tantos prédios, aquele tumulto de automóveis, as pessoas apressadas pelas ruas.
Mas quando entrou no nosso apartamento, não se sentiu nada a vontade. Aquela
residência era muito estranha e ela nunca havia entrado num edifício. Ficou um
bom tempo na janela da sala a olhar lá para baixo. Eu me aproximei para dizer:
“Está
vendo aquele prédio ali na frente? Tem sempre alguém pelado.”
Natalina
não achou a menor graça.
Mostramos
nossos quartos, nossas roupas, nossos brinquedos, mas seu interesse caiu nas
nossas medalhas de natação. Quis saber mais sobre elas.
“A
gente compete. Se a gente vence, a gente ganha medalha.”
“E
depois? Faz o que com elas?”
“Nada.
A gente só mostra.”
No
segundo dia no Rio, Natalina murchara. A garota serelepe e corajosa que
conhecemos desaparecera. Na tentativa de reanimá-la, nós a levamos até a pracinha
do Grajaú e depois a passear de carro por Copacabana, Ipanema, Leblon, todas
tomadas de gente, muito tumulto, sujeira. Olhou com melancolia aquele mundo tão
diferente do seu, daquela sua vidinha tranquila de caiçara de beira de praia.
De volta ao apartamento, ela se banhou, mudou de roupa e foi fazer seu plantão
na janela da sala. Não ficou muito tempo ali. Varou pela sala a gritar, gritar
muito. A razão daquilo: uma barata voadora que consegui facilmente capturar. E,
numa brincadeira de mau gosto, fui atrás de Natalina carregando o inseto pelas
antenas se debatendo. Nossa amiga correu para o banheiro e eu a encurralei com
a barata a poucos centímetros do seu rosto. Afinal, ela era ou não era
corajosa? Revelada a sua fraqueza. Temia baratas.
Gritou,
gritou, gritou, chorou muito.
Fiquei
culpado. Mandei a barata pelo vaso sanitário e pedi desculpas.
Ela
não queria saber. Gritava histérica.
“Eu
quero ir embora! Quero voltar pra minha casa! Quero minha mãe!”
No
dia seguinte, meus pais a levaram de volta ao seu mundo paradisíaco.
Demorou
um pouco até retomarmos nossa amizade. Nas férias seguintes, recuperamos as
mesmas bagunças na praia, as competições, as rezas no túmulo do polvinho. Contei
para Natalina sobre o criminoso Gilberto Mariano que assassinara os moradores
do casarão. Ela riu. Sabia que era mentira.
“Conheço
todo mundo da casa. Tem um homem com o cabelo preto e branco.”
E
eu vindo com mais invenções sobre o dono do iate:
“Também
conheço o cara. Ele se chama Onassis.”
“Onassis?
Que nome esquisito. Não é nada disso.”
Jogávamos
água uns nos outros e as brincadeiras recomeçavam.
Aquele
tempo em Angra dos Reis foi curto.
Nosso
pai precisou vender o terreno. Foi tristeza profunda.
Nunca
mais voltamos lá.
Muitos
anos depois, participei de uma excursão pela Baía de Angra e vi ao longe nossa
praia. Estava muito diferente, ocupada por mansões. Já não havia mais a pequena
aldeia de pescadores. O que teria acontecido com Natalina?
E,
pacientemente, recuperei centenas de slides daquele tempo. Digitalizei cada
foto e salvei no computador. Lá está nossa praia da Figueira com nossos
companheiros, nosso terreno, a árvore de fruta-pão, o polvinho e a nossa
corajosa amiga.
Muita
saudade daquele tempo de vagalumes e estórias de se inventar.
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