Porre homérico com Fidel Castro
Já era tarde da noite quando chegamos ao
último andar do prédio do Jornal O Dia, eu com minha namorada Ana Maria, o
compositor Homero Ferreira com sua esposa Cerly. A primeira pessoa que
avistamos num sofá em “L” comprido foi um cantor chamado Willysmar, camisão
aberto mostrando o peito e um medalhão, cabelo preto igual asa da graúna e
esticado num rabo de cavalo.
Faltavam poucos minutos para começar o programa
da madrugada do radialista Sérgio Henrique na FM O Dia e nós estávamos
escalados com outros convidados: o Willysmar, a cantora Waleska e um conjunto
chamado Os Devaneios.
Não havia o estúdio, a cabine com o
operador de som, a mesa com microfones ao redor, mas muita gente circulando por
um grande auditório, músicos se arrumando no palco, pessoas sentadas na
plateia. Na antessala do sofá, perto do elevador, um balcão de bebidas com dois
copeiros preparando drinques.
Um barman quis nos oferecer algo, mas
Cerly, esposa do Homero, reprovou:
“Não gosto disso. Falo sempre com o Homero
sobre essa coisa de se beber.”
Eu a provoquei:
“Pois eu acho que vou encher a cara pra
dar uma relaxada.”
Ela sabia que eu brincava, mas virou-se para
minha namorada e aconselhou:
“Bota juízo na cabeça dele, Aninha.”
Procuramos lugares lá pelo meio das
dezenas de filas de cadeiras.
Olhando aquele lugar amplo, muita gente lá
assistindo, suei frio.
Meu amigo percebeu que, de fato, eu estava
nervoso.
“Fica tranquilo, Betinho. Você vai
arrasar.”
Homero Ferreira, autor de belíssimas
composições românticas, se consagrou com a marchinha em parceria com seus
irmãos chamada “Me dá um dinheiro aí”.
A vinheta atacou para dar início ao
programa. Sergio Henrique leu a mensagem dos patrocinadores e anunciou as
atrações da noite. Vieram Os Devaneios em uma bela apresentação. Num certo
momento, Aninha quis ir ao toalete e eu a acompanhei.
Atravessamos um corredor lateral ao
auditório. No final as portas: masculino e feminino. Ela entrou e eu fiquei ali
parado aguardando.
Logo dois caras vieram na minha direção,
um senhor gordo de risada frouxa e um dos copeiros, que era um mulato bem
simpático. Falavam e gargalhavam.
Percebendo que eu os observava, o mulato explicou:
“Estou contando piadas de papagaio geniais.”
E mandou uma. Ri apenas para ser sociável,
mas não achei a menor graça. E o cara, na maior intimidade, se pendurou no meu
ombro.
“Você vai cantar hoje, não vai?”
“Vou sim.”
“Então precisa tomar um drinque pra
relaxar, aquecer a garganta.”
“Não quero não, obrigado.”
Willysmar e Ana saíram ao mesmo tempo dos
banheiros. Ele sorriu cumprimentando com breve gesto de cabeça e nós voltamos
aos nossos lugares.
Mais um tempo se passou, quando também me
deu vontade de ir ao banheiro.
Ainda no corredor os dois piadistas rindo
das suas próprias bobagens.
O gorducho com as bochechas vermelhas
apontou para o meu rosto e disse:
“Olha só como ele está sério! Tá nervoso,
rapaz?”
Sorri encabulado, mas o barman nem me
deixou responder:
“Vou preparar um drinque que é tiro e
queda.”
Tiro e queda? Tremi.
Entrei depressa no banheiro, fiz tudo o
que tinha de fazer e, ao sair, o mulato já vinha com um copo de vidro contendo
uma bebida escura da cor da coca-cola.
“É coca-cola mesmo. Mas com rum.”
Willysmar, surgido do nada, acrescentou:
“Isso é forte, viu?”
Sumiu em seguida. Pensei com meus botões:
“Caramba... Esse cara é uma aparição
constante.”
O barman insistiu:
“Bebe logo. Isso vai te dar coragem, ânimo
e alegria.”
Indeciso, dei uma bicada na bebida e os gaiatos
mandaram uma batelada de piadas, estórias de português, de loura, de dentista,
de corno... O tempo passando e eu dando goladas naquilo que já não me parecia
tão difícil de degustar.
Vieram galhofas com judeus, velhos,
bichas...
Como eu não retornava, Cerly tensa
pressionou:
“Vá ver o que aconteceu com o Beto, Aninha?
Por que ele não volta?”
“Está bem.”
Ela foi e não voltou. O relógio correndo.
Os Devaneios já terminavam e outro
convidado seria chamado.
“Vai lá, Homero. Esses meninos que não
voltam...”
Homero nos encontrou no corredor com aqueles
dois fanfarrões rindo, todos na maior intimidade.
“Tá tudo bem ai?”
“Tudo quase ótimo, Homero. Só falta você
me dar um dinheiro aí.”
E lhe estendi meu copo:
“Prova essa bebida.”
“O que é?”, perguntou olhando intrigado aquilo.
“Cuba libre. Segundo nosso amigo aqui, dá
coragem, ânimo e alegria.”
Para minha surpresa, ele aceitou. E repetiu
um segundo e um terceiro gole.
“Esse troço é bom, hem?”, elogiou. “Mas
pega pra danar.”
O barman, que adorava uma bagunça,
depressa buscou mais daquilo.
O gorducho perguntou se nós não sabíamos
contar piada.
Aproveitando a cuba libre, resolvi contar aquela
em que Fidel Castro reúne a população em praça pública para anunciar aos
berros:
“Povo cubano! Vamos declarar guerra aos
Estados Unidos!”
“Oh!”, gritaram todos.
“Eles nos caluniaram!”
“Oh!”
“Disseram que somos um bando de rumbeiros!
Que nós gostamos de rumba!”
“Ohhhhhhhh!!!”
“Nós gostamos de rumba?”
“Não!!!!”
“Nós somos rumbeiros?”
“Não!!!!”
“Nós gostamos de rumba?”
“Não!!!”
“Nós somos rumbeiros?”
“Não!!!”
Para a piada surtir efeito, na medida em
que se repetem as perguntas e as respostas, deve-se agitar braços e ombros num
movimento crescente e frenético de rumba.
Pode-se acrescentar, entre uma pergunta e
outra, um “Uh!”
Não lembro se agradei com a piada, porque
a tal bebida me deixara mais do que relaxado. Eu estava completamente zonzo. Minha
namorada Aninha irreconhecível. Não parecia aquela moça introvertida, quieta,
integrante de grupo jovem de igreja. Soltava palavrões, ria da própria sombra, ria
de se urinar.
Waleska cantava e o apresentador fez um
discreto gesto para Cerly, sozinha ali no meio da plateia, à beira de uma
síncope nervosa, sem saber do nosso paradeiro. O que fazer?
Não teve jeito. Foi ao nosso encalço. Ao
encontrar todo mundo naquela alegria, naquele descontrole, ficou possessa.
Disse que parecíamos um bando de adolescentes.
O retorno ao auditório foi bastante
complicado. O chão queria escapar dos meus pés e tudo balançava. Um cafezinho
talvez me salvasse daquilo. Procurei o barman e ele disse que café, só lá na
rua, no botequim em frente ao prédio.
Eu me joguei no sofá em forma de “L”. Tudo
rodava, rodava, rodava...
De repente, Willysmar estava ali ao meu
lado puxando papo, falando na maior simpatia do seu disco recente e perguntando
se eu gravara algum. Aninha junto.
“Vamos ao boteco que preciso de um café
forte”, disse a ela.
Descemos abraçados, nos escorando.
No bar, só tinha cachaceiro. O balconista
derramou o líquido marrom nos nossos copos.
Aquilo não parecia café, Era uma água suja.
Reconheci um rosto no meio do povo e
mostrei para Ana:
“Putz! Já tá o Willysmar ali, caramba! Já
virou perseguição.”
“Tem certeza que é o cara?”
“Claro. Olha só o cabelinho dele.”
“Acho que é peruca, Beto.”
“Será? Parece mais um gambá morto.”
A embriaguez costuma provocar alucinações.
Voltamos para o auditório.
Cerly irritadíssima com o que acontecia
conosco, principalmente, porque Homero também se alterara. Sergio Henrique o chamou
e ele custou a se levantar da cadeira.
Foi devagarzinho com o seu violão. Não
quis subir ao palco.
Surpreendentemente, mandou bem sua composição
preferida “Marcas do Passado”.
Depois liberou para que me chamassem.
Aí, o apresentador anunciou o cantor
Carlos Roberto. Eu estava quase desmaiado.
Cerly me cutucou:
“Vai lá, menino! É a sua vez!”
Era eu mesmo, o perfeito oposto do
"Rei" Roberto.
Levantei-me e caminhei pelo meio da
plateia trocando as pernas até agarrar o microfone. Agradeci a oportunidade por
estar ali e comecei a cantar “Essa tal de saudade” (Homero Ferreira).
E... Uma sensação de estranheza ao ouvir
minha voz...
A melodia ecoando pelo auditório, as frases
saindo dobradas. Percebi um timbre diferente. Seria o efeito da bebida? Olhei para
um lado, olhei para o outro, me virei, fixei minha atenção nas caixas de som
tentando entender. Muito esquisito aquilo.
Só na segunda música, Feitio de Oração
(Noel Rosa), é que descobri o segredo: Willysmar escondidinho, sentado no canto
do palco, microfone na mão, fazia segunda voz.
Terminei a cantoria e quis ir logo embora dali.
Eu me sentia péssimo, perdera o controle dos
movimentos, a cabeça rodava, os enjoos me vinham. Sou fraco para bebidas, não
tenho costume.
Nessa época, não havia Lei Seca, mas Cerly
tomou para si as chaves do carro.
Deixamos rapidamente o auditório. Eu ia
“costurando” como diz uma tia minha.
Nós quatro invadimos o elevador que desceu
reto. Já na rua, o carro nos esperava.
“Graças a Deus, estacionamos bem na
porta.”
“Só me falta agora o Willysmar com seu
gambá morto aparecer. Já tá sem graça isso.”
Apesar de toda a minha elegância, abri mão
da dignidade. Busquei o apoio de um poste e joguei fora um litro de coragem,
ânimo e alegria, além do jantar.
Ainda estava naquela posição de quem chama
urubu de meu louro quando minha visão turva identificou o barman mulato que,
sorrindo, fez sua última graça:
“E aí, Fidel Castro? Tá na maior rumba,
hem?”
Nota: Tudo o que contei aqui é verdade.
Só o nome Willysmar é que é inventado para
evitar confusão.
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