Literalmente na lama
Domingo
de sol, eu com minha família no Governador Iate Clube na Ilha onde possuíamos
uma lancha para nossos passeios de finais de semana.
Meus
pais haviam marcado com um casal um almoço de negócios lá. Minha avó paterna foi
também, porque ficaria encarregada de tomar conta da gente enquanto o encontro
acontecia. Meu pai combinou:
“Mamãe.
Só me apareça com as crianças no restaurante quando der meio-dia.”
Meus
pais sumiram pelo interior do clube. Eu com minha irmã, meu irmão ainda bem
pequeno e minha avó ficamos de cá pra lá, de lá pra cá, tentando achar o que
fazer, passando hora. Nós, acostumados apenas com roupas de banho e chinelos, para
fazermos bonito junto ao casal ilustre, pela primeira vez circulávamos naquele
lugar embecados com bermudas novas, camisas e sapatos com meias. Minha avó, uma senhora humilde que não se
importava com etiquetas, usava um vestido de florzinhas azuis bem simples, o
melhor que ela tinha. Mas se sacrificava com sapatos que lhe apertavam os pés.
Nas mãos, uma sacola courvin de alça longa, onde ela levava sabe-se lá o que.
Entramos
por dentro de um hangar e nos metemos pelo meio dos barcos e lanchas. Mostramos
para ela a nossa, que eu comparava com a do Batman. Depois fomos espiar as
outras, tudo o que havia ali disponível. Em certo momento, subimos num belo
iate todo branco. Minha avó se preocupou com nossa travessura e para que não
nos sujássemos. Ela estava doida para entrar também. Metemos nossos rostos nas
escotilhas e acenamos para ela que não resistiu e foi. Invadimos a cabine, fuçamos
objetos e até deitamos num estofado. Descemos rindo. Nossa avó topava tudo.
“Cuidado.
Não vão se sujar.”
As
horas passavam lentas.
Seguimos
para o cais e ficamos a olhar um guindaste lá longe no litoral, um navio
atracado em manutenção, aquela água escura com cheiro de óleo forte.
Muito
calor. Nós ali doidos por um mergulho.
Quis
sentar no estrado, mas fui impedido:
“Vai
sujar a calça nova, menino.”
Finalmente
o relógio indicou que faltavam poucos minutos para o meio-dia.
“Já
podemos ir para o restaurante.”
O
restaurante era uma construção de dois andares com uma varanda comprida na
frente. Estava longe. Do cais, para se chegar até lá, teríamos que percorrer um
caminho de calçamento longo beirando a praia. Depois, num ângulo de noventa
graus à esquerda, mais um tanto a percorrer. De onde estávamos, traçando uma
linha reta até ele, um grande descampado.
“E
se a gente for por ali, vó?”
“Mas
deve estar tudo cheio de lama.”
De
fato, no dia anterior, chovera muito, um temporal terrível. Minha avó apertou
os olhos para conferir o cenário. Tudo aparentemente seco. O sol forte que
fazia secava o chão, que apresentava muitas rachaduras.
“Já
secou tudo, vó. Vamos.”
“Será?”
“Se
a gente for por lá, vamos andar muito.”
“Tudo
bem. Mas se tiver lama, a gente volta.”
E
fomos indo devagar, ela na frente.
Numa
certa altura, seu pé esquerdo afundou um pouco. Ela parou.
“Ih...
Acho que não vai dar não.”
“Pisa
mais pra cá”, reclamei indicando para que mudasse de direção.
Ela
deu um passo mais aberto para a direita e o sapato atolou mais. Resolveu
voltar. Mas ao dar o terceiro passo com a esquerda em semicírculo, a canela
entrou toda na terra fazendo com que se desequilibrasse. E tibum na lama.
Corri
para ajudá-la, escorreguei e cai.
Apenas
a superfície estava realmente seca. O resto era pura areia movediça. Minha avó
pediu que segurássemos suas mãos para que se levantasse. Minha irmã veio e escorregou
também.
“Meus
sapatos! Cadê meus sapatos?”
Nós
três ficamos ali a remexer aquela lama. Tinham afundado. Encontrei um. Minha
irmã o outro.
“Meu
Deus! Minha bolsa também sumiu!”
Desesperada,
ela foi enfiando os braços até o ombro naquele lamaçal. Nós igualmente dando
braçadas. Meu irmão, que até o momento encontrara a salvação numa pedra, não poderia
ficar fora daquela brincadeira, e mergulhou inteirinho.
Finalmente,
ela resgatou a sacola de courvin que voltava cheinha.
Nessa
altura do campeonato, estávamos completamente sujos até a alma. Minha avó tinha
lama até nos cabelos. Percebi duas mulheres ao longe gargalhando da gente.
Nós
parecíamos aquele pessoal que se cobre de lama num tradicional bloco
carnavalesco de Paraty.
Não
valia mais a pena voltar. O jeito era seguirmos daquele jeito sempre adiante.
Lembrei
que perto do restaurante havia um vestiário para nos lavarmos. Minha avó,
sapatos nas mãos, conseguiu se levantar e caminhou decidida sacudindo o vestido,
de onde pedaços de barro iam caindo do seu interior.
Mas
ao chegarmos à porta do tal vestiário, a surpresa: trancado.
E
agora?
Nem
tudo estava perdido. Havia uma torneirinha na parte de trás. Para lá fomos.
Enquanto
isso, na varanda do restaurante, meus pais perceberam rumores e risos do povo
que almoçava. O casal ilustre, diante da vista do clube, também começou a rir.
Os
dois comentaram:
“Vocês
não vão acreditar no que está acontecendo bem na nossa frente. Precisam ver. É
uma velha mendiga com crianças imundas tomando banho ali embaixo.”
Meu
pai virou-se e se deparou conosco e minha avó com uma latinha enferrujada derramando
água para dentro do decote, enquanto esfregava os peitos.
Seus
olhos azuis quiseram saltar das órbitas. Não conseguiu sufocar o grito:
“Mamãããããããeee!!!!!”
O
resto, nem vale a pena contar, porque foram tantos gritos, tanto escândalo.
Lembro-me
da gente caminhando, todos imundos para o carro, cheios de culpa querendo
chorar. Mas depois, essa aventura nos rendeu muitas risadas.
Ficou
marcada na nossa história.
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