Recebido com honras por um presidente
Nada
como um terno e gravata para impor respeitabilidade. O sujeito pode ser o maior
canalha da História, mas quando veste um terno e gravata...
Eis
aí os crimes de colarinho branco.
Trabalhei
desse jeito, todo embecado, por um tempo numa editora no centro da cidade. Lá
eu era gerente comercial e cuidava da divulgação e venda de espaços
publicitários num catálogo da FIRJAN - Federação das Indústrias do Estado do
Rio de Janeiro. Eu comandava equipe, distribuía tarefas, fazia relatórios,
agendava visitas pelo telefone e saía em campo daquele jeito, terno escuro, uma
gravata diferente a cada dia, óculos espelhado no rosto, mala de couro...
Parecia
mesmo um executivo enfatiotado, mas era apenas um simples vendedor de anúncios.
Fiquei orgulhoso de mim quando, na primeira semana de trabalho, fechei contrato
com um consultório médico. Um tijolinho apenas. Outros vieram depois. Consegui
fechar anúncios de meia página também, alguns de clientes da Costa Verde.
Graças a isso, faturei gratuidades para me hospedar em pousadas de Paraty.
Vivi
assim por um bom tempo. Agendamentos e visitações.
Mas
após dura jornada de trabalho, mesmo exausto das muitas horas daqui para lá, os
sapatos queimando os pés, tirava aquela armadura toda para mergulhar nos trajes
de dançarino. E ia bailar no Centro de Dança Jayme Aroxa.
Não
sei como arranjava disposição.
No
dia seguinte, novamente naquele disfarce. Ficava irreconhecível.
Uma
prova disso é que, certa vez, eu caminhava pela Rua Evaristo da Veiga quando
avistei adiante um aluno de dança de salão. Um cara sério, educado, correto, casado,
respeitador, que formava com a mulher o típico casal apaixonado, desses
invejado por todos. Quis testá-lo para
ver se me reconheceria. Quando já estávamos bem próximos um do outro, ele me
olhou de alto a baixo, mordeu os lábios e disse baixinho para eu ouvir:
“Gato
gostoso.”
Paralisei.
“O
que disse?”
“Gato
gostoso”, confirmou.
E
com o olhar sem vergonha, tornou a morder os lábios.
Na
mesma hora, retirei os óculos espelhados e vi o sujeito se avermelhar. Ele tentou dizer mais alguma coisa. A voz não
saiu. Travou. Atravessou a rua pro outro lado correndo e nunca mais olhou pra
mim nas aulas de dança.
Essas
situações acontecem.
Outras
mais embaraçosas ocorreram nesta minha saga de engravatado. Certa vez, agendei
uma visita com antecipação de um mês a uma empresa de equipamentos náuticos
para salvamento na Rua do Acre. Cheguei lá antes das seis. Um sobrado de
fachada arruinada, uma porta entreaberta com um sujeito mal encarado. Fui logo
dizendo que tinha um encontro com o dono da empresa. Ele me olhou desconfiado,
fez uma análise da minha estampa e perguntou:
“É
fiscal?”
“Não.
Agendei entrevista com ele.”
“Entrevista?”
“Sim.
Negócios.”
Mandou
que eu subisse uma escadaria de degraus tortos e esperasse lá em cima.
Eu
assim o fiz.
Mas
ao chegar numa sala de recepção, a surpresa: em bancos compridos de madeira,
cinco garotas só de calcinha, cabelos molhados que algumas delas enxugavam com
toalhas, gargalhavam. Pararam assim que em viram.
Estranhei
aquilo. Até pensei na possibilidade daquilo ser uma simulação para testar equipamentos
para afogados, sei lá. Logo descobri que ali afogavam realmente, mas sim outra
coisa. Era um bordel com suas garotas.
A
empresa que eu procurava se mudara daquele sobrado duas semanas antes.
Minha
visita mais marcante, a mais inesquecível foi uma que fiz a uma empresa de
tubulações na Rua Senador Dantas. Também agendara com antecedência.
Logo
que cheguei, fui recebido calorosamente pelo presidente, um senhor gorducho com
bigode enorme e bem arrumado.
Ele
me abraçou com força, deu muitos tapas nas minhas costas.
Estranhei
aquela recepção.
“Que
felicidade! Que felicidade! Estava ansioso pela sua chegada, meu rapaz.”
Felicidade?
Ansioso? Muito esquisito.
Ele
pousou o braço no meu ombro, como faz um amigo querido e disse:
“Não
vamos falar de nada sério agora. Quero que conheça toda a minha firma.”
E
me levou por todas as salas e apresentou-me aos seus funcionários.
Todos
sorridentes, muito afetuosos.
Eu
nunca tinha tido uma visita tão simpática antes.
E,
novamente, meu mais novo amigo:
“Que
tal um uisquinho?”
Fiquei
embaraçado na hora, mas não se deve contrariar um cliente. Aceitei.
Entramos
na sala da presidência. Tudo muito chique, atapetado, plantas, quadros e um bar
com bebidas bem ao lado da mesa dele. Preparou a bebida e me entregou o copo
geladinho. Admirei as telas nas paredes. Ele contou-me que viajava com
frequência ao exterior para comprar coisas em leilões. Depois mostrou os
porta-retratos com sua mulher, filhos, noras, netos... Toda a família. Revelou
que não era fiel, que dava suas puladas de cerca, mas que esse detalhe da vida
dele deveria continuar em sigilo.
Uma
distinta secretária entrou.
“Senhor...
A sala de reuniões já está pronta.”
“Ótimo.
Venha, meu rapaz. Lá estaremos mais bem acomodados.”
Passamos
para um salão contíguo ocupado completamente por uma mesa gigantesca e muitas
cadeiras de encostos altos. Ele me fez sentar na que ficava na cabeceira, aquela
que seria, naturalmente, a dele.
Muito
esquisito aquilo. Mas é preciso satisfazer a vontade do cliente.
Coloquei
minha mala no colo para retirar o catálogo, mas o presidente me impediu:
“Não,
não, meu jovem. Prefiro tratar de tudo com toda a minha equipe junto.”
Toda
a equipe junto? Aquilo estava muito esquisito.
“Vou
trazer mais um uisquinho.”
Foi
e voltou. Nessa altura do campeonato, a bebida fazendo efeito, me estirei todo
naquela cadeira macia. Eu me sentia um rei, um chefe de estado.
Ele
voltou com mais bebida e o staff foi aos poucos entrando e ocupando seus
lugares. Cada um me foi apresentado: o diretor de marketing, o tesoureiro, o
chefe de DP, o diretor disso, o diretor daquilo...
Todos
sorridentes, todos hospitaleiros.
E
eu já tonto, tonto do uísque.
“Posso
começar então?”, propus.
“Não
temos pressa, meu rapaz. Fique a vontade. Aqui hoje é você quem manda.”
Eu?
Mandando? Muito estranho. Mas como o cliente é quem tem sempre razão...
Resolvi
contar umas piadas. Nem sei quais foram, nem se tinham qualquer graça. Mas
todos riram. Riram muito. Riram muito mais quando eu sapequei uns safanões no
braço do presidente. Ele ria de se escangalhar, chegou a engasgar de tanta
alegria.
Finalmente,
deu o sinal:
“Vamos
agora ao que interessa. Você não sabe como estou ansioso.”
Eu
já não achava nada estranho. Pousei a mala no colo novamente, retirei o
catálogo e as tabelas de preço de anúncios e comecei:
“Bom...
Aqui eu tenho os tamanhos e os valores, desde o tijolinho até a maior, a de
página inteira, que é a que acho ser a ideal para divulgar sua empresa...”
“Como
é que é?”, perguntou ele. “Você não é o jornalista que veio me entrevistar?”
“Eu?
Jornalista?”
“Sim.
O que vai fazer a matéria sobre minha vida e minha empresa.”
“Não.
Não vim pra isso não.”
Vi
a fisionomia do até então meu chapa mudar, tornar-se séria, desapontada.
“Mas...
Quem é você afinal?”
Gaguejei:
“Eu
agendei com sua secretária... Eu vendo anúncios...”
Nessa
altura do campeonato, o bigode do homem tremelicava. Olhei para toda aquela
gente ali, congelada. Silêncio reinante. Percebi que apenas um deles segurava o
riso.
Abri
o catálogo, cravei os olhos na tabela e disparei na leitura do valor de cada
inserção, enquanto planejava a melhor forma de evaporar-me dali.
Fechei
de repente o livro e saltei da cadeira:
“Ai...
Como eu sou desastrado! Não era para lhe atender hoje. Hoje é outro cliente, um
concorrente seu, também empresa de tubulações. Volto semana que vem.”
Sai
dali correndo. Eu tinha entrado por um cano.
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