Um estranho aviso

O rádio sobre a mesa de escritório anunciava a estreia do balé Quebra-nozes no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Sentada diante dele, Regina, sempre a borboletear a esferográfica, diminuiu o volume do aparelho, desviou os olhos de uns papéis para mim que estava bem ali na sua frente e mandou o comentário:
- Você acredita que nunca vi um balé na vida?
- Acredito.
- Topa ver esse aí comigo?
- Sim. Topo sim.
Regina levantou-se bruscamente e saiu da sala carregando uma papelada. Ouvi sua voz a ecoar ordens pelas paredes altas do velho sobrado que havia bem no início da Rua do Lavradio, quase esquina com a Mem de Sá. Era uma gráfica especializada em banners, mas que também fazia impressões em todo tipo de material além do plástico: ferro, vidro, madeira...
Conheci Regina graças aos meus trabalhos de criação como free-lancer. Recorri àquela gráfica para executá-los e acabei por estreitar amizade com ela, que comandava a empresa com energia, autoridade, mas mantinha ótima relação com os empregados.
Mulher prática, não era de meias palavras, dizia tudo ali na lata, detestava gente sentimental ou enroladora. Muitas vezes se fazia dura, mas gostava de ter sempre uma rosa vermelha numa jarrinha comprida ao lado do rádio. Uma vez, ela retirou de dentro de uma gaveta as fotos do casal de filhos pequenos e do marido. Sugeri que as colocasse em porta-retratos e pusesse ali na estante.
- Você jura? E eu vou mostrar minha família assim pra qualquer um que baixar aqui? De maneira alguma.
E enfiou as fotos de volta naquela gaveta abarrotada de papéis.
Eu a achava divertida. Pouco parava sentada em seu escritório. Levantava infinitas vezes carregando notas fiscais de lá para cá, a caneta igual um pirilampo na mão direita e cantarolando o que vinha do rádio ligado o expediente todo. Ia lá dentro, dava ordens, pedia pressa e voltava.
Regina me quebrou muitos galhos, sugeriu mudanças em meus trabalhos, indicou-me locais de bons serviços e preços em conta.  
Numa ensolarada sexta-feira, fui até a Rua do Lavradio, ansioso para ver o resultado de uma impressão em acrílico que eu encomendara, um trabalho meu para um programa de TV. Encontrei Regina diferente da que eu costumava ver, sempre agitada, cantarolando, balançando a caneta. Daquela vez, parecia tomada por uma tristeza profunda que o som do rádio não era capaz de aplacar. Assim que eu entrei no seu escritório, ela me disse num tom seco:
- Suas placas só vão ficar prontas na segunda-feira. Pode ser?
Estranhei seu comportamento e ousei perguntar:
- Aconteceu alguma coisa? Você está bem?
Ela ficou uns segundos calada, tentou ajeitar a rosa que murchava na jarrinha. Acabou jogando-a no lixo.
- Você está muito ocupado hoje?
- Não. Por que?
- Aceita almoçar comigo?
Aceitei. Sai de lá para dar umas voltas pelo centro da cidade. Ao meio-dia, encontrei com minha amiga no Bar Brasil. Assim que pedimos a comida, Regina foi logo falando:
- Beto. Estou com uma sensação tão esquisita, um aperto no peito.
- Não é melhor você ir a um médico?
- Não se trata disso. Estou sentindo uma coisa que nunca senti antes, uma angústia... É como se fosse um aviso.
- Aviso?
- É. Um aviso. Acho que vou morrer, Beto.
- Cruzes, Regina!
Dei pancadinhas na mesa.
- Sério. Não sei te explicar. Mas algo me diz que não vou viver mais.
Fiquei perplexo com aquilo. Nunca a vira daquele jeito. Estava realmente abalada. Durante nosso almoço, contei casos engraçados, tentei alegrá-la de todo jeito, mas foi em vão. Só na despedida, diante da minha exigência, é que ela sorriu.
- Trate de tirar esse pensamento maluco da sua cabeça, ouviu? Isso é uma ordem.
- Você é um amigo especial, sabia?
Ela me beijou e voltou para o sobrado.
Passado o final de semana, retornei na segunda-feira de tarde à gráfica para buscar as placas acrílicas levando uma rosa para minha amiga. Subi as escadas. Profundo silêncio. Aparentemente ninguém. Entrei no escritório dela e depositei a rosa na jarrinha. O rádio desligado. Ouvi passos no tablado do corredor. Um funcionário apareceu e me deu a terrível notícia. No domingo à noite, Regina voltava com a família de uma festa infantil na Ilha do Governador. Na Avenida Brasil, o carro se desgovernou e bateu num poste na lateral da pista. O marido e as crianças nada sofreram. Regina não sobreviveu.
Em meu estado de choque, não percebi o sumiço do funcionário, que foi lá dentro e voltou com a minha encomenda.
- Olha aqui suas placas.
Junto com elas havia um envelope.
- É a nota fiscal?
- Não. Dona Regina disse pra não cobrar.
Abri para ver. Era um presente dela para mim: o ingresso para assistir o Quebra-nozes no Municipal para aquela mesma noite.
Segurei o choro na frente do homem. Só o fiz na rua.
Fui ao Municipal.
E acompanhei tudo com muita emoção, imaginando que, talvez, Regina pudesse estar ali ao meu lado assistindo ao espetáculo que ela nunca havia visto na vida.


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