Arroz pilaf e muita polêmica
Minha expectativa era de que seria um réveillon bem
divertido, mas, misturar gente diferente nem sempre é um bom negócio. Era a
passagem de 1993 para 1994. O destino: a casa de praia da minha família num
condomínio em São Pedro d’Aldeia. A ideia era ficarmos uma semana. O grupo: eu,
Mauricio Karam, as fisioterapeutas Tania, com o filho Lucas, e Fátima Rosalina,
com o marido Carlos, as amigas Moniquinha, Juju, Priscila e Vavá e uma
francesinha que aprendia português na Aliança Francesa chamada Karine. Karine
levou seu irmão adolescente Nicolas. Também Bernard, um francês simpático e
maduro na idade, com uma acompanhante. Esses dois, já seguiam para lá de
ônibus. Para completar o grupo, minha cadela Uly.
A caravana de carros deixou o Rio de Janeiro na manhã
de quinta-feira (30) e já, durante a viagem, percebi que teríamos problemas,
porque os irmãos franceses começaram a reclamar da presença da minha cachorra,
obrigados a dividirem o assento de trás com ela. Não gostavam de bichos e
Karine repetia num português horroroso que ela era suja, fedia e que lambia a
gente.
Uma injustiça, porque Uly, além de limpinha, era um
encanto. Claro que tinha lá suas esquisitices: ficava possessiva com objetos,
cismava com alguém e rosnava. Mordia às vezes, coisa comum em qualquer
cachorro, ainda mais sendo uma dobermann.
Já instalados na casa, a turma se organizando para as
compras, e a descoberta de outra mala sem alça: Márcia, a acompanhante do
francês Bernard. Logo de início, avisou que não comeria nada do que
pretendíamos e criticou a lista feita pelas meninas. Disse ser vegetariana ou
vegana, sei lá. Recusou-se a entrar no racha.
Foi sozinha ao mercado e voltou trazendo apenas um saco de arroz
integral.
A turma se reuniu toda na sala para um papo animado. Como
já era hábito naquela casa, preparei minha tradicional gororoba de macarrão com
salsicha. Óbvio que a mulher enjoada recusou. Curtiu seu jejum dando pitacos,
se enfiando nas conversas só para polemizar. Podia ser o assunto que fosse, era
totalmente do contra. De vez em quando, ia para seu quarto – ela e Bernard se
instalaram numa suíte que ficava fora da casa, nos fundos - e voltava mordendo
uma maçã ou uma banana-passa para continuar sua incansável oposição. Mentirosa
até a raiz dos cabelos. Ganhou a antipatia geral.
Mesmo sentimento da turma para com a dupla de irmãos
franceses que se isolaram no canto da varanda, ainda contrariados com Uly e
desagradados com cama, chuveiro, o vento de fora, o calor de dentro. Uns
chatos. Só se comunicavam com Bernard. Esse sim era um sujeito boa onda, afável,
não se abalava com nada. Às vezes, dava a impressão de estar idiotizado. Nunca
entendemos a razão de ter levado aquele encosto com ele. A relação entre os
dois era fria. Não pareciam companheiros.
Eu a apelidei de Márcia “Dubadubá”. Aquilo era uma
expressão de xingamento usada por um personagem da novela da TV Globo “Fera
Ferida”.
No dia seguinte, as meninas optaram por comida mais
sofisticada para depois da praia: pernil assado, salada de maionese e farofa. Colaborei
preparando o arroz.
Aí veio nova polêmica. Dubadubá me viu lavando os
grãos e separando alho e cebola. Veio me dizer que não era assim que se fazia.
- Não se lava nem tempera isso, menino. Isso aí que
você está fazendo, no máximo, é arroz “pilaf”. Eu não como.
- Você não vai comer – respondi ríspido - Seu arroz
integral está ali te esperando.
Apontei para o pacote intacto no canto da pia. Aquela
mulher era uma embusteira. Descobri que, durante a noite, fuçara a geladeira e filara
secretamente minha macarronada. Estava ali só para criar caso. Devia ter
orgasmos nisso.
- Nem me atrevo – desdenhou – E Bernard também não
come isso desse jeito.
- Ah... Mas ele vai comer – desafiei – Ou então fará contigo
esse seu jejum de araque.
O grupo seguiu para a praia, inclusive o simpático Bernard.
O papo predominante foi sobre técnicas de fisioterapia, afinal, havia
profissionais da área entusiasmadas. Falou-se muito sobre “Antiginástica”. Só Dubadubá
ficou em casa. Alegou ter a pele sensível. Sozinha, com certeza inspecionou
minuciosamente os cômodos da casa.
Karine e seu irmão se instalaram na areia, mas longe
da gente. Os dois, brancos igual papel, rapidamente viraram um par de pimentões.
Aí você já imagina o clima esquisito e os comentários que rolaram pelo
estranhamento, o afastamento daqueles entojados dos demais. E toda a vez que o
francesinho Nicolas ia dar seu mergulho demorado naquela praia de lagoa sem
ondas, Karine ficava tensa e clamava pelo seu retorno, chamando-o a plenos
pulmões. A questão é que, em francês, quase sempre não se pronuncia o “s” do
final das palavras. Logo, escutávamos:
- Nicoláááá! Nicoláááá!
Sai com Mauricio, Fátima Rosalina e o marido Carlos
numa caminhada através das salinas. Quando retornamos, as amigas Priscila,
Moniquinha e Juju já tinham iniciado um deboche para irritar os irmãos e
gritavam:
- Nicolééééé! Nicoléééé!
Faziam de forma exagerada e colocando as línguas para
fora. Tania com o filho Lucas e Vavá riam a valer. A implicância se estendeu pelo
almoço, com os chatinhos de caras amarradas, comendo retirados na varanda. Márcia
Dubadubá os apoiou. Ficou um tempo lá fora com eles. Depois retornou à sala
para agourar Bernard e o povo que comia. Tentou resgatar a polêmica do arroz
“pilaf” e até demonstrou seus conhecimentos ao citar as origens do preparo lá
nas Arábias. Insistiu que o certo era comer o arroz sem lavar nem temperar. Era
dona da verdade. Ninguém lhe deu cartaz.
As garotas, com a boca cheia de farofa, só queriam
saber de implicar com os gringos.
- Nicolééééé! Nicoléééé!
A noite do réveillon transcorreu sem confrontos. Preparamos
jarras de sangria e linda ceia, cujo acompanhamento foi o meu arroz. Tudo na
paz. Mas no dia seguinte, o clima hostil prevalecendo, os chamamentos
“Nicoléééé! Nicoléééé!”, acrescidos de duas lambidas de Uly, fizeram com que os
dois irmãos franceses arrumassem suas tralhas e saíssem sem despedida. Eu,
Mauricio e as meninas, na molecagem, os seguimos de longe nos certificarmos de
que iriam mesmo. Atravessaram o portão do condomínio e a estrada. Acenaram para
o primeiro ônibus que passava. E embarcaram num destino ignorado, cheios de
ódio por causa dos gritos que ainda tiveram que escutar:
- Nicolééééé! Nicoléééé!
Menos duas malas sem alça.
No final da tarde, o carro com Fátima Rosalina,
Carlos, Tania e o filho Lucas também partiu. Faltava nos livrarmos da desagradável
“Dubadubá” que não dava sinais de querer evaporar, cantar para subir. Seguramos nossa onda por causa do Bernard, um
cara legal. Não valia a pena nos atritarmos com ele por causa daquele “canho do
pé preto”. Contornaríamos a situação. Deixamos os dois quietos na casa e saímos
num passeio por Arraial do Cabo, que terminou numa birosca da praia do Sudoeste
em São Pedro d’Aldeia, com um prato enorme de camarões. Uly se fartou com as
cabeças.
No domingo, dois de janeiro, saímos bem cedo sem
avisarmos ao casal e tomamos o rumo de Cabo Frio. Enquanto mergulhávamos na
praia Brava, matutamos um plano para nos livrarmos da malfadada criatura. De
volta ao condomínio, encontramos Bernard lendo tranquilamente um livro enquanto
Dubadubá passava seus vestidos amarfanhados com o ferro elétrico da casa,
aparelho que ficava muito bem guardado nos fundos do armário dos meus pais.
Aquilo era mais uma demonstração do seu mau comportamento. Extrapolara no abuso.
Falei para os dois:
- Pessoal! Vamos ter que ir embora imediatamente.
Márcia olhou-me desconfiada. Sentiu que aquilo era
invenção. Antes, ensaiou um arrependimento por uso sem consentimento do ferro e
o devolveu. Porém, quis saber:
- Embora? Embora por que? Achei que ficaríamos a
semana toda aqui.
- Meus pais acabaram de ligar. Virão hoje mesmo. Chegam
daqui a pouco.
- Não tenho problemas em ficar com seus pais – disse
com ponta de deboche.
- Acontece que você não conhece meu pai. A convivência
não será agradável.
- Posso muito bem conhecê-lo. Tenho o dom da conquista.
Ele vai gostar de mim.
Aquilo só podia ser provocação. Segurei o riso e
determinei:
- De qualquer maneira, nós todos vamos embora já.
Precisamos nos apressar.
- Não quero ir. Vão vocês – insistiu a cara de pau –
Deixem a chave. Recebo seus pais.
- Não seja folgada, Márcia – repreendeu o até então
passivo Bernard – Vamos fazer o que ele quer e arrumar nossas malas.
A provocadora expressou um muxoxo. Pareceu
conformar-se e perguntou:
- Então, iremos de carro com vocês, não é?
- Não vai dar, querida. O carro já está cheio. Muita
bagagem, a cachorra...
Ela cerrou mais a cara. Estava claro que não queríamos
levá-la e sim despachar o ebó.
Deixei a dupla confabulando na suíte lá atrás e demos
início à nossa encenação.
Pegamos nossas bagagens fingindo que partiríamos mesmo.
Desliguei o gás e fechei a casa toda. Ficamos lá fora no portão uma eternidade
esperando os dois darem o ar da graça. Por fim, vieram. Bernard com sua
mochila, Márcia carregada de sacolas e uma tromba imensa. Uly quase a mordeu
por ficar possessiva com uma piranha de cabelo que ela deixou cair no piso da
varanda. Tudo o que caísse no chão virava propriedade da Uly. Contornamos a
situação e o prendedor foi recuperado.
Demos um abraço forte no Bernard e um “tchauzinho”
para a fulana.
Entramos nos dois carros bem na hora em que uma chuva grossa
caiu. Lamentamos só pelo Bernard. Os dois ali na rua completamente ensopados.
Ganhamos a estrada, mas embicando para dentro do
balneário que fica bem ao lado do condomínio. Ali, apesar do mau tempo, valia a
pena um mergulho na água quente da lagoa para fazermos hora. Eu, Mauricio,
Priscila, Vavá, Moniquinha, Juju e Uly, que se fartou de nadar naquele piscinão.
Uma delícia. A água quente, a chuva forte e fria. No rádio do carro, o João
Gilberto cantando: “Você tem que dar, tem que dar o que prometeu, meu bem...”
Quando retornamos, noite fechada, o segurança da
portaria informou que o tal casal esperara uma eternidade na chuva por um
ônibus. Todos vinham lotados pelo final do réveillon. O clima entre eles estava
péssimo. Discutiam.
Entramos felizes na casa. Finalmente nos livráramos do
espírito obsessor.
Descarregamos tudo, abri as janelas e liguei o gás.
Na cozinha, percebi ainda intacto sobre a pia, o saco
de arroz integral da dita cuja.
Quando abri a geladeira, a descoberta. A malfeitora
havia feito verdadeira coleta em seu interior. Surrupiou parte do assado, da
maionese e da farofa. E, para minha surpresa, Dubadubá também levou aquilo que
ela tanto desfizera: meu arroz “pilaf”.
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