Beto e sua banda, o grande equívoco

Esse causo aconteceu bem no comecinho da minha história como cantor, quando eu ainda era bem inexperiente. Certo dia, recebi a ligação de um sujeito se apresentando como Luizinho de Muriaé (MG) e dono de uma nova casa noturna. Foi logo avisando que a indicação fora das meninas Castro Mayrink, minhas queridas amigas e irmãs Nanda e Kinha. Luizinho precisava com urgência de artistas de fora da cidade como atração da recém-inaugurada casa. Contei a ele que eu já me apresentara num barzinho, o Primeiro Passo, que foi, por muitos anos, o mais badalado de lá.
- É isso – afirmou ele – É esse o esquema que eu quero. O que você costuma cantar?
Falei então do meu repertório de músicas românticas próprio para barzinhos, e ele do outro lado em silêncio. Mas, não sei explicar, tive a sensação de que o cara se abstraíra de repente, não muito ligado no meu relato. Eu o escutei comentar algo com alguém que devia estar ao seu lado. Depois respondeu qualquer coisa a outro. Barulho de pratos, louça, um falatório ao longe. Citei alguns compositores de que gosto muito como Chico, Tom, Noel, Ary...
- Ary... – soltou ele displicente – O que mais?
- Ah... Canto Caetano, Milton...
- Milton... E o que mais?
- Gil, Tim Maia...
- Tim... Sei... O que mais?
O ponteiro da minha paciência ameaçava as alturas. Perguntei:
- Escuta, meu amigo... Aí é mesmo um bar? Um barzinho?
- É... – gaguejou – É... tipo um bar.
Achei a resposta suspeita. Quis saber mais:
- E tem um cantinho pra músico se ajeitar?
- Ah... Isso tem – mudando para tom mais animado – Tem um palco ótimo e um equipamento de som espetacular.
Acertamos o cachê e a data da apresentação. Seriam dois dias, a começar pelo feriado de 15 de novembro, sexta e sábado.  Duas noites inteiras de cantoria no tal barzinho.
Assim que souberam do meu acerto, as irmãs Kinha e Nanda ficaram numa felicidade só. Eu me hospedaria na casa delas e ainda participaria do churrasco no sábado pelo aniversário de Tupiara, o patriarca da família Castro Mayrink.
Nessa época, eu andava frequentando o restaurante do Hotel Othon no centro do Rio, onde o grande violonista Zé Paulo tocava todas as quartas-feiras. Eu ia sempre dar uma canja. Pensando em fazer bonito, impressionar nos dois dias de apresentação e no churrasco na cidade mineira, eu o convidei para me acompanhar. Ele topou.
Também se juntou nessa viagem um amigo que vinha dividindo o palco comigo, nossos primeiros shows, o Ricardo Sardinha, jovem músico, que aprendera a tocar violão, e depois piano sozinho, fuçando revistas de bancas de jornal.
Pegamos a estrada na maior animação.
Mal descemos na rodoviária, escutamos um carro de som passando e avisando sobre a grande atração na cidade. Não deu para entender o que se dizia.
Fomos direto para a casa dos Castro Mayrink para nos instalarmos e comermos uma boa comidinha mineira. Foi uma alegria rever as meninas Nanda e Kinha, o irmão Serginho, a Tia Maria Lúcia e o divertido aniversariante Tupiara, que foi logo exigindo que, durante o churrasco de sábado, eu cantasse “As rosas não falam” e “O mundo é um moinho” do Cartola. Enquanto nos ajeitávamos no quarto, ouvimos novamente o carro de som passar na rua. Finalmente, pudemos ouvir bem o que anunciavam: “Hoje, no Sabor da Terra a grande atração: Beto e sua banda”.
- Que curioso – comentei – Vai ter show de um Beto e sua banda. Só falta ser a gente.
- Se fossemos nós, seria “Beto e sua bunda” – brincou Ricardo Sardinha.
Achamos graça. Almoçamos e descansamos um pouco. Depois nos preparamos para irmos ao tal barzinho para a passagem de som. De posse do endereço, saímos para a rua e, ao cruzarmos por uma banca de jornal, li a manchete do Correio Muriaense anunciando “Beto e sua banda no Sabor da Terra”.
Seguimos por uma avenida e, uma faixa atravessando de ponta a ponta também avisava: “Hoje, Beto e sua banda no Sabor da Terra”. Outras faixas se seguiram. E o carro de som circulando pelas ruas a todo volume: “Hoje! Beto e sua banda! Beto e sua banda no Sabor da Terra! Não perca essa grande atração! Venha se divertir, venha dançar com Beto e sua banda! Beto e sua banda! É hoje, minha gente”.
Fiquei matutando. Em momento algum, meu contratante falara o nome do seu estabelecimento e não deixou muito claro se era realmente um barzinho. E eu sequer perguntei qualquer coisa às meninas. De súbito, uma estranha sensação me veio, um sentimento esquisito. Fiz uma prece para que tudo desse certo naquela noite.
Ao chegarmos ao endereço, olhei de um lado para o outro e nada de avistar qualquer bar aconchegante. Naquela rua, só havia mesmo uma muralha a se perder de vista feita de estacas de madeira na vertical, igual estojo de lápis. Parecia um forte apache. Acima do portão fechado, uma placa confirmava: “Sabor da Terra”.
Gelei.
Empurrei o portão. Era um lugar imenso. Imenso, imenso, imenso, espantoso. Um gramadão com pequenas mudas de árvores plantadas. De tão grande, serviria sem problemas como arena para rodeios. Lá nos fundos, nosso destino: uma gigante choupana com centena de mesas e cadeiras. Um palco alto e espaçoso numa das extremidades. Eu e meus companheiros nos sentimos os irmãos Villas-Bôas adentrando território indígena.
Um índio, digo, um funcionário veio e depois foi lá dentro chamar o patrão. Um cara gordinho, branco, olhos claros surgiu e cumprimentou-me. Era o Luizinho.
Olhou meus dois amigos com estranheza.
- Então essa é a sua banda? – perguntou já em tom de desprezo.
- Sim – respondi constrangido, apesar de não ter motivo – Viemos passar o som.
- Ótimo. Fiquem a vontade. O rapaz da aparelhagem está ali.
O equipamento era realmente muito bom. Fizemos os ajustes, enquanto eu refletia sobre aquela contratação. Supus que o Luizinho não estivesse disposto a revelar a dimensão do espaço por recear o preço do meu serviço. Uma esperteza. Mas investira bem na divulgação, colocando faixas, carro de som e até anúncio em jornal para a grande atração do feriado: “Beto e sua banda”. Promessa de um grande baile.
Fiquei do alto daquele palco olhando toda a imensidão do lugar e gelando cada vez mais. Se fosse hoje em dia, eu tiraria de letra. Mas, naquela época...
Mandei a pergunta que não queria calar:
- E nossa refeição? Ao que temos direito?
- Pra vocês? Comida e bebida liberada.
- Maravilha.
Às nove da noite, estávamos a postos. A casa cheia, mesas quase todas ocupadas. Às 21h15, Zé Paulo subiu sozinho e iniciou uns solos espetaculares de bossa nova. No terceiro número, o Luizinho veio aflito e sussurrou-me:
- A que horas vocês vão começar?
- Começar o que?
- A música.
- Mas... Isso que o Zé Paulo está fazendo é música – respondi chocado.
- Eu sei... Mas é que o povo quer ouvir o cantor.
- Ah, tá. Não seja por isso.
Subi ao palco. Mandei de primeira “Pra machucar meu coração”, música do Ary Barroso. O povo parou momentaneamente de conversar. Algum impacto eu causara. E fui seguindo nessa linha: Cartola, Nelson Cavaquinho, Noel...
Novamente o Luizinho veio e me chamou no canto:
- Cadê a música?
- Como é?
- A música.
- Ora... Francamente...
- Me deixa explicar. O pessoal quer dançar. O prefeito está aí com a família reclamando.
Meu sangue se esquentou. Mirei na direção da mesa do dito cujo, que abriu os braços, num gesto de quem está inconformado.
Escolhi então uns sambas mais agitados do Paulinho da Viola.
Nenhuma alma se dignou a dançar, ouvi uma vaia contida ao longe e alguém arremessou uma bolinha de papel na nossa direção. Um casal da mesa do prefeito se levantou e veio para a pista. Enfim, alguém dançaria. Mas a intenção deles era só provocar. Ficaram ensaiando passos de rock bem na minha frente e fazendo caretas. Retornaram para a mesa às gargalhadas.
E uma enxurrada de papeizinhos com pedidos começou a vir: “Canta Gian & Gilvan”, “Vai um Zezé di Camargo?”, “Sabe cantar lambada?”, “Manda um sertanejo aí, pô!”, “Minha mulher quer que você leve Ciúmes”.
Eu lia os bilhetes e os empilhava todos sobre a caixa de som. Meus nervos em pandarecos. Uma situação. Zé Paulo não se abalava. Aliás, ele não se alterava nunca. Músico cascudo, acostumado a tocar em orquestra de baile e a encarar todo tipo de situação. Seria capaz até de cochilar tocando. Apenas achava graça do meu nervosismo.
- Você está rindo, é? – reclamei transtornado – Quero ver se vai rir quando esses índios começarem a nos flechar.
Foi a vez do Ricardo Sardinha subir ao palco com seu violão e dizer:
- Deixa comigo.
Eu e Zé descemos. Ricardo mandou um repertório de músicas mineiras: Beto Guedes, Milton, Lô... Ninguém se animou. E mais bilhetes chegavam com pedidos de axé e reclamações. Sentindo a tensão da coisa, ele resolveu descontrair aquela galera complicada e resolveu contar um causo de mineiro. Ninguém riu, ninguém gostou. Emendou para uma piada de coxo bem na hora em que um homem arrastando de uma perna entrava. Só estávamos mandando bola fora.
Voltei com Zé para o palco.
- Piada agora é péssimo negócio, é morte certa. Vamos cantar estritamente o que combinamos e seja o que Deus quiser. Daqui a pouco acaba e a gente cai fora daqui.
E assim fizemos, sem outros maiores conflitos. Mas não agradamos em nada. De tão nervoso, eu cantei sem parar. Frustrado, arrasado. Simplesmente me esqueci de dar um tempo de pausa. Não pausamos, nada comemos, só ficamos na água.
Encerrado nosso horário, fui até o Luizinho e reclamei muito do nosso acerto, daquele equívoco todo. Exigi a pizza maior e mais cara da casa e sai de lá com a cabeça estourando, jurando não colocar mais os pés ali. Um verdadeiro programa de índio.
Passei a manhã seguinte amargando aquele fracasso. Mas logo começou o churrasco do Tupiara e foi aquela animação. Cumpri o prometido e cantei as músicas do Cartola que o aniversariante queria. Entre os amigos da Nanda e Kinha, havia um rapaz chamado Henrique, que era bem habilidoso no pandeiro. Vendo-o tocar, uma luz me acendeu. Fui até o quarto e fiz anotações num papel. Depois, meus amigos vieram me perguntar sobre o Sabor da Terra e eu respondi seguro:
- Uai. O combinado não é fazermos dois dias? Vamos voltar para nossa segunda noite.
- Jura? Você quer voltar lá? - se surpreendeu Sardinha.
- Quero. E vamos levar mais um. Vai ser um arraso.
Levamos Henrique e seu pandeiro com a gente. Assim que adentramos o forte apache, a casa já cheia, avistamos sobre o palco um cabeludão a montar teclado e toda uma parafernália. Luizinho se espantou ao nos ver ali de novo e veio se explicar:
- É que eu não sabia se vocês voltariam ou não...
- Trato é trato, meu caro. Vamos cumprir.
- Claro... Claro... Quanto aquele rapaz...
- O cabeludão do teclado? O que tem?
- Ele costuma animar bailes na cidade. Você se importa dele tocar um pouco?
- Problema algum. Ele pode tocar nos nossos intervalos.
Subimos no palco e cumprimentamos o cabeludão, que fazia caras de “você vão ver do que sou capaz”. Eu tirei do bolso o papel com as anotações. E mandamos um repertório completamente diferente da noite anterior. Muito sambão, muita música suingada, muito pop, sambas-enredo... O povo caiu na pista. E o cabeludão parado atrás da gente com seu teclado sem saber em que posição ficava. Sequer ousou um acompanhamento que eu propus na simpatia. Eu, já mais esperto, determinei quatro longos intervalos de descanso. Em cada um deles, mandamos vir muita comida e cerveja a vera, para compensar a escassez do show anterior. Aqueles quatro momentos de parada ficaram por conta do cabeludão. Enquanto ouvíamos o teclado dele tocando seu axé e sertanejo, a tribo delirando com aquilo que já estava acostumada, nós enchíamos a pança de tudo o que a casa podia nos oferecer. De vez em quando, o cara olhava para mim querendo saber se era hora de encerrar suas tecladas e eu, com a boca cheia de pizza, sinalizava para que continuasse, que tocasse o quanto quisesse. Eu achava tudo ótimo, queria a felicidade total e esquecer o estresse, o desastre da noite passada.
O último set foi propositalmente curto para dar um sabor de quero mais. Quando demos o derradeiro acorde, o povo inteiro de pé gritou o tradicional “Por que parou? Parou por que?” Ninguém mais se lembrava do tecladista.
Enfim, nossa noite de glória naquela taba.
Fui direto ao caixa para acertar com Luizinho, reparti a grana e deixamos aquele local esquisito depressa. Na madrugada, apesar de exaustos, seguimos satisfeitos, contentes, rindo muito, tropicando pela rua.

Beto e sua banda. 

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