A casa da esquina
Voltando da Praça Saens Pena, eu e minha irmã, bem
pequenos, íamos de mãos dadas com nossa tia Célia pela Rua General Roca, quando
avistamos Vitória, uma negra mendiga em pleno surto, indo de cá para lá falando
sozinha, gesticulando na calçada oposta. Minha tia não resistiu e gritou:
- Vitória maluca!
Ao ouvir aquilo, a mulher nos fuzilou com ódio e
retribuiu:
- Sua branca azeda!
Aquilo já fazia parte de uma relação de muitos e
muitos anos entre as duas. Desde menina, minha tia adorava atiçar a coitada,
uma crueldade típica de criança travessa que ainda se fazia constar. Mas aquele
não era um bom dia para a tal brincadeira. Repetiu a provocação:
- Vitória maluca!
- Você vai ver só, sua branca azeda – ameaçou a
mendiga – Você hoje não me escapa.
Agarrou um pedaço enorme de pau que havia por ali e
veio ameaçadora na nossa direção. Entramos em pânico e desatamos a correr. Só
que eu e minha irmã eramos muito pequenos, portanto, seríamos facilmente
alcançados. Conseguimos atravessar a Rua Santo Afonso no risco e os carros que cruzaram
pelas nossas costas impediram momentaneamente a perseguição da nossa inimiga.
Ganhamos uma pequena vantagem, mas ainda havia um quarteirão inteiro até
chegarmos à casa de nossa avó materna. Já passávamos pela galeria Marapuama,
quando olhei para trás. Vitória não desistira e vinha espumando, cada vez mais
perto. Estávamos perdidos.
A casa de Vó
Nadina ocupava toda a curva da esquina onde se encontravam as ruas General
Roca, Soriano de Souza e Barão de Mesquita. Era espaçosa, amplos cômodos, duas
salas, três quartos, boa cozinha, quintal e um grande jardim na frente a contorná-la,
bem ornado de roseiras e pequenas árvores recostadas no baixo muro.
Da varanda com jogo de mesa e cadeiras de ferro,
víamos bem defronte, uma construção comprida que eu associava a um imenso vagão
de trem seguindo o fluxo da Rua Barão de Mesquita. Era a fábrica Confiança de Tecidos
com suas janelas escondidas por verdes grades e uma vegetação fechada, talvez
ciprestes. Não sei dizer. Numa noite, vimos pousar um estranho clarão no teto
da fábrica. Ficou uns minutos ali aumentando e diminuindo a intensidade da sua
luz. Juntou gente na rua para ver. Alguns afirmavam que era balão. Outros,
estrela cadente. De repente, a claridade de forma indefinida foi se elevando,
subindo, subindo... Ganhou a velocidade de um raio e sumiu no céu.
À esquerda, na agulha da Soriano de Souza com Barão de
Mesquita, havia um posto de gasolina que chegou a pegar fogo. Foi um
corre-corre danado, um desespero. Esperavam que o posto explodisse. Não
explodiu.
Lembro-me vagamente do bonde passando. Sei que vinha
do Andaraí, onde morávamos e havia mudança de trilhos no cruzamento da Avenida
Maracanã. Naquele trecho, o rio do mesmo nome se escondia por debaixo de uma
sequência de casinhas operárias. Dali até a Rua Maxwell era um bairro que não
existe mais: Aldeia Campista, onde morava o escritor Nelson Rodrigues.
Ainda pela visão da varanda, já para a direita, um bar
de esquina colado a um açougue, que depois se transformou no famoso Sheik.
Aquela lanchonete de comida árabe não primava pela higiene, ao contrário, deixava
muito a desejar. Lugar sujo, talheres e copos imundos, balcão sempre melado
pela alta rotatividade de clientes. Nos fundos, uma escadaria e um corredor
escuro conduzindo ao mictório fétido. Era comum ver rapazes em atitude suspeita
recostados naquelas paredes úmidas à espera de algo. O vício da vadiagem. Mas
as esfiras deliciosas do Sheik, nada de ruim me fizeram, senão, não estaria
aqui agora para contar.
E quando o padeiro batia palmas no portão? Maior
alegria. Ele vinha com seu cesto gigante apoiado na bicicleta trazendo, além
das bisnagas, bolos e todo o tipo de guloseimas: sonhos, doces de batata-doce, de
abóbora, de leite, mariolas, peitinhos de moça, queijadinhas, balas, suspiros.
Era uma festa.
O violão do meu avô embalou muitas das noites tijucanas
até o dia em que avisou que precisava ir à farmácia e nunca mais voltou. A
partir desse fato, as coleguinhas de colégio das meninas Cavalcanti foram
proibidas por seus pais de frequentarem casa de mulher separada. Mas a turma
toda continuava se reunindo na esquina. Ali havia a patota da Soriano de Souza,
cujo ator Hugo Carvana fazia parte. Pela Tijuca dos muitos cinemas, era muito
comum ser integrante de algum grupo. Patotas, clubinhos, gangues de motoqueiros,
galeras rivais. Alguns dos seus frequentadores se tornaram famosos: Jorge Ben,
Tim Maia, Roberto, Erasmo... Havia a
turma do Farney’s Fã Club que rivalizava com os fãs do cantor Lucio Alves. Tom
Jobim, um nascido na Tijuca, criou a “Teresa da praia” para Dick Farney e Lucio
cantarem na esperança de se acalmar ânimos. Não adiantou. Só o tempo aplacou a guerra daqueles fanáticos.
Minha avó me contava de tempos remotos, do pai dela se
enfatiotando para ocupar sua cadeira cativa no Municipal e de quando a alegria
daquela esquina fora interrompida pela gripe espanhola, com muita gente doente jogada
pelas ruas pedindo ajuda, comida. A morte se espalhando. Uma tristeza.
Fora esse episódio, o som da vitrola a embalar com os
mesmos: Dalva de Oliveira, Angela Maria, Elizeth e Cyro Monteiro. Com o passar
dos anos, foram sendo substituídos por Roberto Carlos, Wanderléa e a turma da
Jovem Guarda. Nada como a música para quebrar a sobriedade daquela casa de
mobília escura. Muitas jarras, um lustre magnífico de cristal sobre a mesa de
jantar, o espelho imenso com moldura banhada a ouro, o fascinante relógio cuco.
Havia uma cristaleira espetacular com peças lindas, muitos cristais, jogos de
chá finíssimos, talheres pesados todos de prata. Além do cuco, eu cismava com
uma cuia de chimarrão com sua bomba e suporte em forma de patas de animal que
ficava sobre a cristaleira. Eu teimava em subir na cadeira para pegar aquele
objeto e sentir o cheiro de mate que exalava. Algumas vezes o deixei cair.
Tanta era minha insistência que minha avó acabou dando-o a mim de presente. Até
hoje está comigo, mas o cheiro do mate se perdeu. Memória olfativa é uma coisa
curiosa, não é? Um exemplo: toda a vez que sinto cheiro da tinta da caneta
Pilot, logo me vem à mente a cena das minhas tias e avó na sala desenhando
corvos em pedaços de cartolina com as ditas canetas pretas. E fui levado por
elas para ver Carlos Lacerda inaugurar a Praça Lamartine Babo ali perto, elas,
lacerdistas doentes, acenando seus desenhos.
Outros moradores habitavam a casa das Cavalcanti: duas
gatas, a Pupê e a Marilyn. Também um papagaio, um miquinho e um corrupião. O
corrupião, um pássaro negro, vivia solto e saía em passeios para a rua no ombro
de suas donas. O mesmo acontecia com o miquinho, que adorava se enfiar nos
grossos cabelos da minha tia Sonia. Lembro-me da gata Pupê. Já bem velhinha,
esclerosou e pegou a mania de defecar no fogão. Um dia saiu para a rua e nunca
mais voltou.
Por um período, morou com elas um senhor muito velho,
o tio Gastão, que era primo do meu avô. Ele fazia impressionantes bichinhos com
miolo de pão: vacas, cavalos, tartarugas, cães, gatos, aves... Eram perfeitos.
Por fim, a última moradora, só que essa dormia fora da
casa: Vitória, a negra mendiga. Aquela mulher vagava pelas ruas, quase sempre
quieta, mas tinha seus momentos de loucura. Tornava-se agressiva, xingava quem
passasse, cuspia, chegava a desnudar-se. Algumas pessoas tentaram reabilitá-la,
investigaram sobre parentes, colocaram-na em abrigo. Não adiantava. Ela fugia,
voltava às ruas e ia batendo de porta em porta pedindo comida. Minha avó, com
pena, passou a alimentá-la e chegou a oferecer-lhe guarida, roupas e banho. Ela
recusou. Apenas comia e se ajeitava algumas vezes no canto do jardim para
dormir. Nesse convívio, logo surgiu a relação conflituosa entre ela e minha tia
Celia, uma verdadeira moleca na época. Bastava ouvir Vitória entrando pelo
jardim para minha tia provocá-la por detrás da veneziana da janela:
- Vitória maluca! Vitória maluca!
- O que é, branca azeda?
- Vitória maluca! Vitória maluca!
- Branquela! Branca azeda dos infernos!
E assim viviam as duas. Algumas vezes, até água minha
tia jogou na mulher. Aquilo se tornou um aborrecimento para minha avó que
ralhava, batia, punha de castigo em vão. A menina era impossível, implicante
que só.
E foi por conta disso que, anos depois, eu me vi
naquele dia correndo feito um doido, com minha irmã e minha tia, a irada
distante apenas alguns passos, o porrete prestes a descer sobre nossas cabeças.
Por um milagre, alcançamos a esquina, o jardim, a varanda. Entramos esbaforidos
e batemos com força a porta.
- Você já está burra velha e ainda provoca a coitada,
Celia? – indignou-se minha avó.
Minha tia não deu importância. Achou graça e correu
para a veneziana da última janela do canto direito da casa só para levar
adiante aquilo:
- Vitória maluca! Vitória maluca!
- Você vai ver só, sua branca azeda. Vou te pegar –
respondeu a enfezada lá fora.
Entrou furiosa pelo jardim e saiu dando porretadas em
todas as janelas até a última de onde vinha a provocação. Nesse momento, minha
tia já estava na outra ponta da casa abrindo a veneziana e de novo:
- Vitória maluca! Vitória maluca!
Lá ia a pobre correndo, seguindo a voz e dando as
pauladas, com minha tia se divertindo naquele vaivém.
- Para com isso, Celia! Ela está muito nervosa! Vai
quebrar as janelas!
Nisso, escutamos um chamado lá do portão seguido de
palmas. Era minha avó paterna que resolvera fazer uma visitinha de surpresa.
- Meu Deus! É a Dona Anita!
- E agora?
Vó Nadina abriu a janelinha da porta principal e
gritou para a outra:
- Fique aí, Dona Anita! Não entre! Não venha!
Mas ela não entendeu nada e foi logo abrindo o portão
e entrando. Pousou na mesa da varanda o pacote que trazia, um bolo feito por
ela. Quando já ia tocando a porta, esta se abriu e foi puxada no desespero para
dentro. Foi no tempo certo. Vó Anita chegou a sentir um ventinho do porrete que
passara rente a sua cabeça.
Aquela situação crítica só foi resolvida graças à
ideia da recém-chegada. A ensandecida escutou a voz serena de Vó Nadina, sua
protetora, dizendo:
- Tem um bolo todinho para você, Vitória. Está aí em
cima da mesa.
Um silêncio se fez.
Esperamos algum tempo até podermos abrir uma das
venezianas da janela da sala. A visão daquela pobre mulher sentada no chão,
desmanchando aquele bolo fofo com as mãos magras e comendo com gosto, acentuou
piedade e despertou arrependimento. Nunca mais minha tia implicou com ela.
Passou a tratá-la com carinho.
Vitória ainda viveu por ali mais uns anos até
desaparecer misteriosamente para sempre. Depois dela, sumiram os bondes e a
fábrica Confiança foi demolida para erguerem um shopping com edifícios. Ainda há o posto de gasolina, mas mudou-se dono
e a marca. Após muitos anos de existência, o Sheik fechou. Agora é um comércio
popular de roupas. Na nossa famosa esquina, agora existe um restaurante, o
Balada Mix. Estive certa noite ali com amigos para papearmos tomando sucos. Não
revelei nada a eles, mas fiquei observando tudo em volta, calculando, pela
posição da nossa mesa, qual seria a parte da casa onde eu estaria naquele
momento. Talvez a sala de jantar ou a varanda. Passo todos os dias por ali. É
grande a agitação com gente apressada, trânsito doido, muita sujeira. Hoje, a
Rua General Roca virou dormitório de mendigos. Não é a gripe espanhola, mas uma
doença diferente que se alastra com força pela cidade e que podemos
qualificá-la por muitos nomes.
Daquele tempo, da casa da minha avó não há mais
qualquer vestígio.
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