O lorde e a dama da Voluntários
Durante meus estudos na Aliança Francesa, conheci, em
momentos distintos, duas pessoas adoráveis, colegas meus de sala, os dois
regulando na idade, a idade dos meus pais. Um deles, um senhor magérrimo, pele
bem negra, trajando terno azul marinho, caneta esferográfica espetada no bolso
da camisa, mantinha-se na carteira com as pernas cruzadas, as mãos sobre o
joelho. Conquistou-me com seu sorriso gigante. Logo, já estávamos lado a lado
em conversas “en cachette”.
O carismático Vicente Paulo, com o correr dos dias, transformou-se
em Vincent, afrancesamento instigado pelo nosso professor Juan, um uruguaio engraçado,
meio maluco que desaparecia de vez em quando, por também ser guia de turismo.
Jeito de falar revelando origem humilde, Vincent era
um verdadeiro lorde. Sempre elegante, educado, atencioso com os colegas,
organizava grupos de estudos uma hora antes da aula com os que, assim como ele,
tinham dificuldade com a lição dada, principalmente quando Juan sumia e era
substituído por Michelle, excelente professora dona de francês impecável. Meu
amigo se desesperava porque não entendia nada do que ela dizia, achava-a uma
metralhadora. Preferia a fala tropeçada do Juan com seu forte sotaque espanhol.
Mesmo com tanta simpatia, notei rejeição de alguns ao
Vincent, quem sabe por sua idade, talvez pela questão social, provavelmente
pela cor da sua pele. Alguns mal lhe dirigiam a palavra e evitavam sentar perto.
Dentre estes, havia um tal Renato, preconceituoso até a raiz dos cabelos, “un
complet idiot”. Qualquer comentário vindo daquela boca era de natureza
discriminatória, quase sempre se referindo pejorativamente à sexualidade de
alguém. Até o dia em que rolou discussão acalorada entre colegas num intervalo
da aula. Falavam sobre política e o Renato defendendo ideia retrograda. No auge
do nervosismo, bastante contrariado, soltou já aos berros:
- Quer saber? Não estou nem aí! Eu acho isso tudo
“uó”!
Só faltou colocar as mãos nas cadeiras. Falou aquilo
de forma tão exagerada, tão afetada que todos se calaram. Um silêncio de
segundos até explodirem as gargalhadas. O sujeito se avermelhou qual o Hellboy.
No final da aula, Vincent me pegou pelo braço e me convidou a acompanhá-lo até
um botequim na Rua Evaristo da Veiga. No trajeto até lá, fez um comentário
seguido de riso:
- Acho que o Renato é ‘pedê’, ‘un parfait pédéraste’.
- Concordo. O cara fala mal de gay, mas escorrega
bonito no quiabo.
Vincent jamais se referia à sua vida amorosa. Era
discretíssimo. Mas eu logo percebi que gostava de rapazes. Havia outro negro na
sala que se chamava Carlos. Este ficava lá no cantinho, não abria a boca, não
se enturmava. Eu até tentei uma aproximação com o tímido, mas de nada adiantou.
Logo desapareceu da turma.
Muitas vezes, depois da aula, eu ia com Vincent beber uma
cerveja naquele botequim da Rua Evaristo da Veiga. Ele adorava aquele lugar. Ia
sempre carregando alguma sacola de compras que dizia levar para umas
senhorinhas pobres que ajudava.
Uma parada na banca de jornal da Rua Senador Dantas. Ele
folheava rapidamente as revistas de televisão, via as beldades e comentava:
- ‘Ce galã est beau’. Mas não é como ‘Monsieur Betô, le
prince, qui est trop beau’.
- ‘Et toi est trop bobôôô!’
Monsieur Betô e príncipe. Era assim que me chamava.
Já sentados, a cerveja espumando nos copos, meu nobre
amigo abria o caderno de exercícios do Archipel para revisarmos a lição dada.
Sua dificuldade com o francês era grande. Pronunciava as palavras num jeito
rascante, pausadamente, sempre errando nas acentuações. Não tinha o menor jeito
com a língua. Mas insistia.
Morador da Rua do Riachuelo, contou-me ser alto
funcionário da Embratel e trabalhava junto à diretoria. A existência pobre com
a mãe só foi atenuada quando ela foi contratada como cozinheira de diplomata
americano. Graças a isso, partiram para o exterior e moraram em embaixadas pela
Europa, África e muitos anos nos Estados Unidos. Nessa altura, o jovem ajudante
de cozinha se virava com seu inglês precário. Substituiu a mãe doente, uma vez
que dominava muito bem a culinária e conhecia os protocolos e a etiqueta da boa
mesa. Descrevia aquela vida em detalhes, as ricas cerimônias, os elogios recebidos
dos diplomatas e chefes de estado pelos pratos sofisticados por ele produzidos.
Devaneava, pausava, ficava meio fora do ar.
Seu retorno ao Brasil foi o episódio mais triste da
sua vida: o falecimento da mãe na noite de Natal. Tomou verdadeiro horror pela data.
Falar da mãe o entristecia.
Eu só contava casos engraçados para alegrá-lo, nem
ousava queixar-me de nada. Mas quando o fazia, Vincent segurava minha mão e repetia
o mesmo texto:
- ‘Monsieur Betô est
un prince’. Não nasceu para ‘tristesse’.
Só para ‘allégresse’.
Uma vez, mal pedimos nossa única cerveja, e Vincent me
veio com duas novidades.
A primeira:
- Sabe quem eu encontrei na Rua do Riachuelo? Aquele
nosso ex-colega Carlos.
- O tímido? O caladão?
- ‘Il n’est pas timide’. Estava irreconhecível.
- Como assim?
- Ele é travesti. Peruca ruiva, vestidinho... Estava
muito saído pro meu gosto. E foi logo perguntando pelo bonitão da sala.
- Bonitão?
- ‘Oui. Mon ami le Monsieur Betô, le prince’.
- Hahahahaha! Jura?
- ‘Cet garçon est incroyable’, se transforma. Durante
o dia, finge ser encabulado, mas, de noite, é Carla Kess, a sapeca. Como será
que se diz ‘sapeca’ em francês?
Ri muito do comentário, principalmente da expressão
“sapeca”. Foi então que Vincent veio com a outra surpresa:
- ‘J’ai un cadeau pour toi’.
Era uma agenda novinha. Sabia que eu gostava de
escrever, de anotar tudo. Aquilo virou hábito. Perto do final de cada ano, íamos
até o boteco da Rua Evaristo da Veiga e ele vinha com uma agenda da Embratel.
Vincent revelou que escrevia poemas. Eu pedi para ler, ao que respondeu que
precisaria coragem para mostrar. Um dia, quem sabe.
Outra amizade incrível nesse meu tempo de Aliança foi
com Luiza Dorotéia. Aquela mulher causou grande estranheza na minha nova turma.
Primeiro pela maneira como se vestia. Quando não vinha com a mesma bata
surrada, usava blusa e saia sem qualquer comprometimento com combinação. Metia
qualquer coisa no corpo e saía para estudar. E sempre o mesmo par de sandálias
arruinadinhas, os dedos a saltarem para fora da sola. Cabelo oleoso escorrido
que ela insistia em puxar para frente, fazendo-o cobrir a metade do rosto. Luiza,
ao contrário de Vincent, dominava línguas com uma facilidade impressionante.
Falava perfeitamente o inglês e o alemão, idioma dos pais. Assimilava tudo o
que era dito na sala e, logo, já estava craque no francês. Na turma, havia uma
professora da Cultura Inglesa que, quando empacava na conversação, soltava
alguma expressão britânica. Luiza mandava na hora:
- ‘Parlez en français, s’il vous plaît’.
A repreendida se enfurecia. Tal presença era
hostilizada por outros ali, que a consideravam totalmente ‘détraquée’. Eu não
achava justo. Certa vez, cheguei a me encrespar com uma patricinha que debochava
das roupas, do cabelo e da aparente sujeira dos pés daquela curiosa mulher.
Mesmo assim, Luiza tinha cuidados com a classe e anotava
tudo o que era dado, para depois entregar uma cópia a algum colega faltoso.
Gostava de dizer que era “Caxias”.
Lembro-me de tê-la flagrado num boteco da Rua Santa
Luzia se deliciando com um daqueles bolinhos de carne pingando gordura. Ela
adorava aquelas porcarias. Também os ovos coloridos. Ficamos logo amigos e nos
divertimos a valer. Fora da Aliança, não trocávamos uma palavra sequer em
francês. E quando eu vinha com minhas bobagens, ela juntava as duas mãozinhas e
dizia rindo:
- Ai, Beto! Meu filho... Que maravilha! Você é ótimo!
Com a convivência, descobri, além da sua
intelectualidade, seus dotes culinários. Em todo o início de inverno, ficaram
costumeiras minhas idas ao apartamento dela, que morava com duas filhas e a mãe
quase centenária na Rua Voluntários da Pátria. Lá, ela servia torradinhas de
queijo e um delicioso creme de ervilhas, onde eram jogados, sem cerimônia nos nossos
pratos, enormes salsichões. Aí ela vinha com um tubo de mostarda e traçava
linhas sobre cada um deles. Luiza passou a frequentar minha casa e as festas
que aconteciam. Comia quase tudo, só não comia frango por achar que galinha era
bicho agressivo. Sócia do Clube Piraquê, almoçamos algumas vezes lá.
Certa vez, ela me fez um agrado que jamais esquecerei:
preparou dois panelões de bobó de camarão. Foi tanto bobó, mas tanto bobó que,
mesmo distribuindo, passei uma semana inteira comendo aquilo. Uma querida. Assim
como Vincent, Luiza não gostava do Natal, ainda mais quando Dona Gertrudes, a
mãe quase centenária, faleceu bem no final do ano. Aquele acontecimento a
desestruturou. Mas teve alegria com a chegada do primeiro netinho no início do
ano seguinte. Fiz uma visita para conhecer a criança e gracejar como sempre.
Ela rindo e juntando as mãos para dizer o que eu já conhecia:
- Ai, Beto! Meu filho... Que maravilha! Você é ótimo!
Depois disso, minha querida amiga, minha dedicada colega
de Aliança foi se distanciando aos poucos da realidade. Uma coisa inexplicável.
Abandonou a Aliança, os estudos de
francês e não quis ver mais ninguém. Alguns a viram zanzando pela Rua
Voluntários da Pátria falando sozinha e puxando os cabelos. Liguei algumas
vezes sem sucesso até que um dia ela atendeu. Foi simpática, perguntou por
todos, mas disse que estava num tratamento espiritual que a proibia de sair, de
falar e de ver as pessoas. Obsessores, espíritos malignos estariam rondando sua
casa. Pena.
Quanto ao Vincent, lembro-me bem do nosso último
encontro no botequim da Rua Evaristo da Veiga. As sacolas para as velhinhas, o mesmo
terno azul marinho, a esferográfica na lapela – até no carnaval daquele jeito,
constatação quando nos esbarramos em plena Avenida Rio Branco, ele paralisado
diante das famosas gêmeas foliãs. Pois bem... Esse nosso último encontro
aconteceu no primeiro dia de dezembro e ele estava visivelmente melancólico.
Pedimos nossa cerveja e meu doce amigo veio com mais uma agenda, a última que
me daria. Também o surpreendi e deixei em suas mãos uma caixinha comprida. Ele
abriu, sorriu e seus olhos se encheram de lágrimas. Era uma caneta metálica
Parker.
- ‘C’est un stylo! Oh, Monsieur Betô, mon prince’...
Por que isso?
- Você é um lorde. Não tem cabimento andar com essa
caneta esferográfica no bolso.
Examinou o presente bastante emocionado. Disse que
nunca tivera uma daquelas. Pegou um guardanapo para estrear e escreveu:
“Já amei demais
Já brinquei com o amor
Hoje não quero mais
Vou evitar essa dor
Hoje só quero
Para mim um amor
Que me faça carinhos
E não me deixe penar”
E encerrou com um “The end, Vincent”.
- Pronto. Agora você já tem um escrito meu.
Entregou-me o papel que guardo até hoje comigo.
No momento da despedida, nos demos um forte abraço e,
para minha surpresa, ele chorou igual criança. Não entendi aquilo. Emoção a
flor da pele.
Substituiu a esferográfica pela caneta prateada na
lapela, atravessou a rua e seguiu balançando a sacolinha de compras até sumir
através dos Arcos da Lapa.
Semanas depois, um pesadelo me despertou ao final de
uma madrugada. Sonhei que eu telefonava para o trabalho dele e a secretária me comunicava
sua morte. Esperei amanhecer e liguei para o telefone que tinha da Embratel. Mandei
chamar o Vicente Paulo. Foi então que, assombrado, escutei a atendente repetir
as palavras ditas no sonho ruim. Meu amigo falecera na manhã de 25 de dezembro,
justamente o dia que ele não gostava. Uma ironia. Data do falecimento da sua
mãe. O Natal.
Vincent e Luiza Dorotéia: colegas de francês, cada
qual com seu comportamento diferenciado com a língua. Ele, falador aos tropeços
onde quer que estivesse. Ela, articulada, mas limitando-se à sala. Amigos
queridos, generosos, meus dois anjos da guarda. Muito me iluminaram, muito me ensinaram, muito
alegraram minha vida.
“Merci beaucoup, mes amis!”
“À bientôt!”
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