Vassouras e esfregões de noite na Barra


Essa história já tem muitos anos.
Minha amiga Anadir me ligou certa tarde com uma novidade: conseguira dois pares de convites para uma festa na boate “New York, New York” na Barra da Tijuca com show de lançamento do disco do Guilherme Arantes. Ela convidara nossa amiga Rosane e uma colega de trabalho. Só precisávamos de um carro para nos levar até lá. Sugeri que fossemos de taxi, mas ela achou que ficaria caro demais. Garantiu que arrumaria uma carona. As horas foram se passando e nada. Ela me ligou para confessar seu insucesso. Resolvi tentar, sondar amigos. Ninguém disponível. Naquela época, eu não tinha carro. E as horas correndo. Quase oito da noite e não tínhamos arranjado um transporte. Busquei uma alternativa complicada, porque já sabia de antemão que não daria certo. Mas não custava nada tentar. Pediria o carro ao meu pai.
Ele no sofá de pijama cochilando diante da TV. Mandei o pedido.
“Para que você quer emprestado? É pra ganhar dinheiro?”
“Uma amiga conseguiu ingressos para um...”
“Não. Não empresto não.”
“Mas é que...”
“Peça pra um desses seus amigos. O meu carro não empresto.”
Papo encerrado.
Fiquei no meu quarto remoendo aquilo. Rosane me ligou. Depois Anadir. Já estávamos dando o programa por perdido. As duas ansiosas, adoravam o cantor, autor de “Meu mundo e nada mais”.
“Puxa, Beto. Será que a gente vai perder uma oportunidade dessas? Uma festa com coquetel e o Guilherme Arantes cantando.”
Matutei por um tempo até me vir na cabeça uma ideia maquiavélica. Liguei para elas e mandei que se arrumassem. Iríamos de qualquer jeito. Vesti uma boa roupa e esperei até escutar a porta do quarto dos meus pais se fechando. Já se preparavam para dormir. Deixei o prédio da Rua Itacuruçá perto das onze horas da noite e caminhei até a sede da empresa do meu pai, também na Tijuca. Era uma firma de limpeza.
Eu tinha as chaves. Abri o portão bem devagar e, munido de uma lanterna, fui atravessando aquele pátio escuro, quando tropecei em algo. Era um corpo.
Mirei o foco de luz. Eu acordara o vigia que dormia sobre um encerado. Desesperado, imediatamente ele se pôs de joelhos e, com as mãos juntas, implorou:
“Por Deus! Não me mate! Não me mate! Não me mate!”
E começou a chorar.
“Calma, rapaz. Sou eu, o Beto.”
“Beto! Puxa... Que susto. Achei que era um assaltante.”
Ele se recompôs, foi beber água pra se acalmar. Depois perguntou:
“O que você veio fazer aqui uma hora dessas?”
“Vim buscar emprestado a Fiorino, mas não quero que ninguém saiba.”
“Mas ela está cheia de material pra entregar amanhã bem cedo.”
“Não tem problema. Devolvo antes do dia amanhecer.”
O homem coçou a cabeça com preocupação.
“Ai, Beto. Isso não vai me prejudicar?”
“Só se você contar.”
“Mas eu vou ter que dizer ao seu pai...”
“Então diga. E eu vou dizer que você dorme no serviço.”
Desse jeito, nos entendemos. Na pressa de sair logo com o furgão, nem quis verificar o que havia no seu interior. Liguei o carro e fui embora.
Até chegar a Botafogo, uma barulheira na caçamba. Dei uma espiadela. Latas de cera, detergentes, desinfetantes, rodos, esfregões e muitas, muitas vassouras.
“E agora? Como vou arrumar a mulherada aí dentro?”
A privilegiada foi Rosane, porque foi a primeira a embarcar na Rua Voluntários da Pátria. Sentou-se ao meu lado e riu muito daquela situação. Subimos a Rua São Clemente. No Largo dos Leões, Anadir e a amiga esperavam, as duas finamente trajadas, saltos altos, bolsas, etc e tal. Quando viram a Fiorino, quase caíram para trás. Pior reação viria depois ao saberem que teriam de se ajeitar dentro da caçamba, em meio aquela traquitana toda de produtos de limpeza. Abri as portas e as vassouras foram caindo em cascata na rua. Elas entraram com dificuldade e cada uma escolheu uma lata grande de cera para sentar. Recolhi as vassouras, que elas teriam que viajar segurando. Fechei as portas e seguimos caminho.
Na Rua Jardim Botânico, um engarrafamento enorme, algo incomum para uma noite de quinta-feira. Talvez fosse uma blitz. Gelei. Anadir e a amiga reclamavam muito, as duas tentando se esconder dos faróis dos carros que iluminavam o interior, as duas vistas pela janela daquele jeito se equilibrando nas latas de cera e segurando aquela vassourada toda.
“Por favor, Beto. Assim que chegarmos, pare longe pra ninguém ver a gente saltando.”
A boate ficava logo após o viaduto sobre o canal da Barra. Fizemos o retorno lá na Igreja Nossa Senhora do Ó e voltamos. Diante da “New York, New York” muitos carros, muita gente na porta, trânsito obstruído, ninguém avançava. E ficamos paralisados com a Fiorino justamente bem na entrada da festa. Não havia como sair dali. O desespero se fez dentro do furgão. As pessoas iam passando e olhando as duas daquele jeito segurando as vassouras. Anadir teve um ataque:
“Eu quero sair daqui! Me tira daqui!”
Saltei para abrir a porta traseira. E novamente a vassourada caiu toda na rua. As duas saltaram e alguns assobiaram e gritaram para elas de zombaria. Catei tudo bem na hora em que os carros já andavam. Por milagre, consegui uma boa vaga perto.
Já dentro da festa, rimos muito da situação. Mas valera a pena. Bebemos, comemos, dançamos a valer. As garotas ganharam autógrafos do Guilherme Arantes nos discos.
Quase quatro da manhã, embarcamos na Fiorino de volta para casa. Anadir, de tão exausta, nem se importou em abraçar as vassouras e tirar sua soneca.
Deixei todas sãs e salvas nas suas casas.
Não amanhecera o dia ainda, quando entrei pela garagem da firma. O vigia estava lá roncando, dormindo tão pesado que não ouvira o barulho do furgão entrando.
Eu o cutuquei para acordá-lo. Ele levou o maior susto, se desesperou e, novamente, se colocou de joelhos, as mãos postas e chorou:
“Por favor! Não me mate! Não me mate! Não me mate!”
“Sou eu de volta, rapaz.”

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