O presente de Simone
Difícil acreditar que Simone não anda mais entre a gente.
João Alexandre, filho dela, me ligou pedindo que eu o acompanhasse até
o apartamento deles, agora vazio, porque não tinha coragem de entrar lá
sozinho.
Precisava organizar algumas coisas pendentes antes de alugá-lo. As
roupas dela já haviam sido doadas para uma instituição de caridade.
Encontro com ele no calçadão da praia de Ipanema, pouso a mão sobre seu
ombro e saímos conversando, vendo o povo na areia. Quando conheci Simone, João
era um menino bem mirrado, seu irmão Luciano usava fraldas e tinha a mania de
cuspir nas pessoas e beijar a boca de outras crianças.
Tornaram-se homens. Luciano tornou-se um talentoso desenhista e João,
fotógrafo. Já é pai de três filhos e continua me chamando de tio.
Um ônibus de vidros grandes repleto de turistas vem passando. Aproveito
para contar a ele os passeios de jardineira que costumava fazer com sua mãe. As
jardineiras eram ônibus menores, de largas janelas e que circularam por um
tempo pela orla, saindo do Shopping Fashion Mall em São Conrado, seguindo pelas
praias até a estação do teleférico do Pão de Açúcar na Urca. Algumas vezes,
promovemos cantorias naquele transporte ou então encenamos brigas de casal.
Eu e Simone nos divertíamos com pouco ou nenhum dinheiro.
Chegava ao seu apartamento e a primeira coisa que eu fazia era retirar
da estante o “Almanhaque” do Aparício Torelli, o Barão de Itararé. Abria
aleatoriamente uma página para capturar uma frase engraçada para marcar aquele
encontro.
“Adoro esse livro, Simone. Você bem que podia dar ele pra mim.”
“Um dia, quem sabe.”
Lida a frase escolhida, saíamos.
Sempre uma caminhada para ver o mar, a saia indiana dela se mexendo, os
cabelos dourados esvoaçando. Pele muito branca, olhos esverdeados. Era uma
mulher linda.
Entravamos pelas galerias para expiar vitrines e papear com vendedores.
Quando era loja de antiguidades então, era festa. Simone tinha paixão por
coisas antigas, ainda mais aquelas consideradas bregas. Uma vez, numa feira de
Petrópolis, encontrei três andorinhas azuis dessas de louça que se colocam em
varandas. Dei a ela de presente. Mãe e filho adoraram e estabelecemos que cada
uma representaria um de nós.
Certa vez, num brechó, eu a fiz experimentar um vestido de noiva bem
antigo de longa cauda. E me enfiei num fraque cheirando a naftalina. Coloquei
uma cartola e, com a permissão da vendedora, fomos até a rua. Juntou gente na
calçada para nos ver.
Diante da porta do
apartamento, João mete a chave no trinco e avisa que tudo está uma grande
desordem. A porta se abre e aquele cheiro conhecido ainda permanece. Porém,
quase mais nada em seu lugar. Os discos, as gravuras emolduradas espalham-se
pelo chão junto com caixas e mais caixas. A estante permanece intacta. Bons
livros. As paredes nuas revelam marcas e pregos. Vem um aperto no peito.
Vou até a cozinha beber água. Ali fora laboratório de experimentações,
num período de sufoco, onde eu a estimulei a fazer biscoitos amanteigados e
pães.
Retorno para a sala e espero em silêncio João remexer coisas no quarto.
Observo o móvel rústico com espelho tripartite, o cesto indígena com
duas flechas, o porta guarda-chuvas. Descubro no meio da confusão o primeiro
quadro que pintei a óleo, um barquinho ancorado em praia calma com coqueiro,
numa tentativa inexpressiva de ser pintor.
Relembro muitas coisas, as risadas, a boa música tocando, o vinho, a
pizza, a gatinha de estimação que adorava ficar na rede. Ali, falavamos
bobagens, mas também coisas sérias. Falavamos de amor, amizade, família, vida e
morte.
Uma vez, fizemos aquele manjado pacto do “Quem desencarnar primeiro,
dará um jeito de avisar ao outro”.
João aparece na sala trazendo uma mala e pergunta:
“Beto. Você não quer ficar com esses discos?”
Observo desanimado a pilha. Há muita coisa ali que me interessa, mas
recuso.
“Não quero não.”
“Nem mesmo os livros?”
“Desculpa, João. Mas não quero nada mesmo.”
Ele é tomado por uma lembrança e diz:
“Ah... Mas tem uma coisa que você tem que levar.”
Vai lá dentro e volta com um embrulho. Abro. A surpresa: as andorinhas
azuis.
“Mas, João... Aqui estão duas. Falta uma.”
“Falta uma?”
“Sim. Eram três.”
Um silêncio paira entre nós. Vejo as lágrimas descerem pelos olhos dele.
Ameaço fazer o mesmo. Torno a embrulhar as duas andorinhas.
Comentários