Fim de noite no motel
Domingo
bem cedo, meu amigo João me ligando para um convite:
“Beto.
Vamos à Feira da Providência. Meus pais estão trabalhando na barraca da França
e eu vou com meus irmãos. Topa?”
Eram
quatro irmãos.
Naquela
época, a Feira da Providência era uma badalação. Porém, além da ausência de
produtos importados no Brasil, também não havia telefone celular e os postos de
gasolina não abriam nos finais de semana.
“Puxa,
cara. Adoraria, mas estou com menos de um quarto de gasolina.”
“Não
tem problema. Seu Fiat é econômico e, caso precise, estou com o tanque cheio.
Tenho uma bombinha pra puxar gasolina. Vamos?”
Aceitei.
Convidei minha amiga Alayde e também chamei meu primo Ricardo que levou a
namorada. Marcamos o encontro dos dois carros na esquina da Rua Itacuruçá, onde
eu morava, com a Conde de Bonfim. E subimos pelo Alto da Boa Vista, descemos
até o Itanhangá, pegamos a Avenida das Américas... O caminho normal até o
Riocentro, onde acontecia o evento.
O
pavilhão fervilhava de gente. Uma festa. Percorremos as barracas dos estados.
Paramos numa espécie de botequim que representava o Rio de Janeiro. Bebemos
chope ouvindo um cara no violão cantando repertório do Djavan. Adorei quando
ele cantou “Cerrado”. Dali, fomos para o setor dos países. Bebemos saquê na
barraca do Japão, apreciamos os selos da Rússia, vimos fotos da Turquia, as
roupas do Egito e comemos sanduíches com queijos finos na barraca da França,
onde os pais do João atendiam. Havia também uma área destinada aos jogos. Num
stand, um desafio para os corajosos: um motociclista percorria um circuito
entre caçambas, ziguezagueando com um candidato na garupa. O sujeito deveria
enfiar a cara nas caçambas que estavam cheias de farinha e catar algum brinde escondido
ali, mas com a moto em movimento. Desafiei meu primo. A namorada dele não
gostou da ideia.
Fui
lá e o inscrevi. Ele topou.
Foi
muito engraçado vê-lo se cobrindo de branco, enfiando a cara nas caçambas de
farinha e a moto arrancando, ele quase caindo, mal podendo abrir os olhos.
Não
conseguiu brinde algum. Ganhou muita farinhada.
Perto
das nove horas da noite, João avisou que levaria seus irmãos para casa, depois
voltaria para buscar os pais. Resolvi ir logo embora o acompanhando, porque
dependia do socorro dele, caso me faltasse gasolina. Não contei nada para meu
primo, para não afligi-lo. Somente Alayde sabia.
Na
saída do Riocentro, um engarrafamento fenomenal. Um para e anda, para e anda.
E
eu de olho no painel com a luz piscando. O carro do João na nossa frente.
Aquela espera, uma buzinação. Nada andava.
João
se impacientou. Fez uma manobra brusca e saiu com o carro pelo meio fio.
“Meu
Deus!”
Eu
me desesperei. Tentei fazer o mesmo para segui-lo, mas não consegui. Ficamos ali
parados naquele mar de automóveis. Alayde murmurou:
“E
agora?”
“Deixa
ele ir. Não precisamos dele”, disse meu primo desconhecendo a nossa real
situação.
Não
disse nada. Ficamos ali esperando. E novamente um para e anda, para e anda.
Até
que, finalmente, tudo se desafogou. Fiquei animado. Meti o pé no acelerador e
seguimos velozes já entrando na Avenida das Américas.
Ricardo
desconfiou ao ver Alayde fazendo o sinal da cruz e perguntou:
“Beto.
Que luz vermelha é essa no painel?”
“Nada.
É só um mau contato.”
“Mau
contato é o cacete. Isso é a luz da gasolina.”
Resolvi
então dar-lhe ciência de tudo, da nossa dependência do João.
“E
agora? Você acha que dá?”
“Vamos
rezar. Esse carro é econômico e, se tivermos sorte de chegarmos até a pracinha
lá do Alto, o resto descemos na banguela.”
A
namorada dele imediatamente deu o maior piti.
“Vamos
descer, Ricardo. Vamos pegar um ônibus ou um táxi.”
E
ele:
“De
jeito nenhum. Não vou abandonar meu primo.”
“Que
primo, que nada. Ele já te fez de palhaço com a estória da farinha.”
O
clima ficou quente. Os dois discutindo atrás. Eu e Alayde segurando o riso.
Já
pelo Itanhangá, iniciaríamos nossa subida pelo Alto. Ali seria nossa prova
maior. Conseguiríamos vencer aquela escalada?
Bem
na nossa frente, a entrada do Motel Holliday. Ultrapassamos por ele e fomos subindo,
subindo. Fizemos a primeira curva e a segunda.
Mas
quando já fazíamos a terceira, o carro refugou e parou. Parou completamente.
Virei
a chave. Não dava sinal de vida. Nisso, ouvimos uma freada atrás. Um carro
surpreendido conosco. Conseguiu se desviar. Passou xingando. Outro carro veio.
Nova freada e xingamentos.
“Vamos
saltar depressa se não quisermos morrer.”
Bastou
falar isso e vimos surgir de dentro dos matos quatro vultos. O pavor aumentou.
“Morreremos
de qualquer jeito.”
Os
homens só tinham fisionomia feia, mas eram pessoas do bem. Ofereceram-se para levar
o carro até o lado oposto da pista, onde havia o recuo da entrada de um
condomínio. Um deles sinalizou para os veículos que subiam e os demais
empurraram a Fiat, que ficou com seus faróis apontados para a descida. Junto da
gente, um enorme letreiro luminoso do Holliday.
Agradeci
a generosidade dos caras que logo foram embora.
Enquanto
isso, o casal brigando. Ela estava histérica.
“Sabia
que não era pra sair hoje. E agora estou aqui passando esse perigo. Você não se
preocupa, não é, Ricardo? Posso até ser estuprada.”
Ele
gritou mais alto e ordenou que ela entrasse no carro. Lembrei que havia um lenço
cor de abóbora no painel. Eu o peguei e fiquei sinalizando para os que
passavam. Ninguém parava. Fiquei uma eternidade ali acenando.
Até
que, num determinado momento, vi a esperança surgir. Reconheci o carro do João com
os irmãos subindo. Estávamos salvos.
Saltei,
gritei, balancei o lenço.
“João!
João! Aqui! Aqui!”
Ele
não me viu. Seguiu reto. Nenhum deles notou a gente. Ainda tentei atravessar a
pista, mas havia um fluxo enorme de carros descendo.
“Não
acredito”, indignou-se Alayde. “Ele não viu a gente?”
“Nem
tudo está perdido. Ele está levando os irmãos, mas vai voltar por aqui pra
buscar os pais na feira.”
E
eu continuei ali parado na beira da estrada acenando o lenço cor de abóbora.
Passado um bom tempo, lá vinha o João descendo a estrada com o carro vazio. Gritei:
“É
ele! É o João! Graças a Deus!”
Alayde
se juntou a mim para pular e gritar.
Mas
ele passou igual uma bala.
“Não
estou acreditando nisso. O João é um lesado.”
“Estamos
ferrados. Se dependermos dele...”
“Certamente
vai passar aqui mais uma vez com os pais e não vai nos ver.”
“E
agora?”
“Vamos
ter que partir para outra estratégia.”
Fui
até o carro. Naquele momento, o casal estava em profundo silêncio, cada um com
a cara virada para sua janela. Brigados. Pelo menos, deram uma trégua.
“Olha
só... Vou lá embaixo no motel ligar pra um reboque. Vocês esperem aqui, certo?
Ou querem ir também?”
A
namorada do Ricardo torceu o nariz e resmungou que não entraria em motel algum.
Alayde
quis ir junto. Não ficaria com aqueles dois briguentos.
Dei
a mão a ela e descemos a estrada correndo.
Uma
fila de carros entrava pelo motel. O recepcionista, que entregava as chaves um
a um, estranhou quando nos viu chegar a pé. Aquilo era uma novidade.
“Não
viemos para nada disso, moço”, expliquei. “Só queremos usar o telefone, porque
estamos com o carro enguiçado lá em cima na estrada.”
Ele
consentiu. Agarrei o telefone e revirei a documentação do carro. Não encontrava
o cartão do Automóvel Clube do Brasil. Perguntei ao recepcionista se eles
tinham o contato com algum reboque e ele disse que não.
“Vamos
ter que ligar pra alguém. Mas pra quem?”
Para
minha casa, não ligaria nem por um decreto. Seria o caos na terra. Pensei nos
amigos. Porém, talvez pelo nervosismo, não me recordava de número algum. Fiz
umas tentativas que deram em engano. Alayde lembrou-se dos primos. Só chamava.
Nada.
Até
que o número de um amigo também Ricardo me veio na mente.
Liguei
e o pai dele, Seu Adriano, atendeu:
“Ah...
O Ricardo não vem hoje pra casa não.”
Expliquei
o drama. Ele então se ofereceu para ir ao nosso encontro prestar o socorro,
mesmo já estando deitado vendo Fantástico.
Foi
uma alegria. Dei a ele as coordenadas, o recuo da entrada do condomínio, a Fiat
branca parada bem debaixo do letreiro do Holliday.
Subimos
a estrada bem animados e rezando para que tudo estivesse bem com o casal.
No
carro, o silêncio ainda predominava. Dei a boa notícia. Logo estaríamos salvos.
Meia
hora se passou até a chegada da Caravan do Seu Adriano. Ele nem se dera ao
trabalho de mudar de roupa. Viera de pijama e chinelos. Saltou sorridente:
“Que
enrascada essa sua, hem, rapaz?”
Deu-me
tapas no ombro antes do pedido:
“Vamos
lá. Cadê a bombinha pra puxar a gasolina?”
Paralisamos.
“Bombinha?
Que bombinha?”
“Você
não tem?”
“Não.”
“Nem
eu.”
“E
agora?”
“Vamos
ter que arrumar uma borracha.”
“Onde?”
“Ora...
No motel.”
Não
pensei duas vezes. Soltei o freio de mão e o carro foi descendo a estrada. Foi
um Deus nos acuda, porque a garota do Ricardo entrou numa histeria só. Disse
que não entraria num motel de jeito nenhum, que aquilo era um absurdo.
Ignorei.
E
a Fiat entrou bonita para dentro do Holliday.
Seu
Adriano veio atrás com a Caravan, mas não fez o mesmo. Ficou parado lá fora na
entrada. Coitado. Deixara o conforto da cama e a mulher para se meter naquela
roubada. Apesar de lamentar aquilo tudo, confesso que achei muito engraçado ver
aquele homem de pijamão e chinelo na porta do motel esperando.
Parei
o carro junto da recepção e fiz meu novo pedido:
“Precisamos
de uma borracha, uma mangueira. Vocês têm?”
“Não
temos não”, respondeu o recepcionista sorrindo. “Só se algum cliente tiver.”
Um
casal acabava de chegar num bonito carro preto. Antes que recebessem a chave do
quarto, quase meti a cabeça pela janela do motorista para pedir:
“Você
tem alguma mangueira aí?”
“Tenho,
mas vou usar.”
Ainda
tive que ouvir esse tipo de coisa.
Outro
carro veio entrando. Faria uma abordagem diferente.
“Amigo...
Você, por acaso, não teria no seu porta-malas alguma bombinha de puxar
gasolina?”
O
cara riu e disse:
“Eu
até tenho, mas nas condições de animação que me encontro, não vou saltar pra
pegar mesmo.”
Comecei
a entrar em desespero. Olhei para Alayde. Olhei para o carro morto com o casal
brigando. E seu Adriano de pijama lá na entrada pagando o maior mico.
O
recepcionista sugeriu:
“E
se vocês fossem aqui ao lado? Acho que vão encontrar.”
Era
outro motel e, se não me engano, se chamava Hollywood. Corri para lá. Uma
funcionária ofereceu uma mangueira de jardim.
Daria
certo aquilo?
Voltei
arrastando aquela borracha imensa, compridíssima, quilométrica.
Analisei a situação. A entrada do motel fazia um caimento e a Caravan do Seu Adriano estava num nível bem mais acima de onde estávamos. Não custava nada tentar.
Analisei a situação. A entrada do motel fazia um caimento e a Caravan do Seu Adriano estava num nível bem mais acima de onde estávamos. Não custava nada tentar.
Esticamos
a mangueira, introduzimos uma ponta no tanque da Caravan. A outra ponta mirando
a Fiat. Mas quem iria puxar a gasolina com a boca? Precisaria de muita sucção.
Ricardo saltou do carro e se ofereceu ao sacrifício.
Meteu
a boca na borracha e sugou, sugou, sugou. Foi ficando vermelho, vermelho como
um pimentão. Precisou parar para respirar. Nova tentativa até ter um acesso de
tosse provocado pelo gás que vinha. A garota dele voltou a espernear:
“Você
de novo bancando o palhaço! Não aguento mais isso!”
Ele
ordenou que ela se calasse.
Antes
de meter a boca na borracha outra vez, avisou:
“Vou
conseguir.”
E
sugou o mais que pode. Um filete surgiu e ele engasgou muito. Bebera a
gasolina. Tornou a sugar e a engasgar. O líquido entrou com mais consistência pelo
orifício do meu carro. Transferimos o suficiente para o motor voltar a
funcionar.
Desse
jeito nos safamos.
Agradeci
ao nosso salvador de pijama, Seu Adriano. Subimos e descemos o Alto. Deixei Alayde
em casa. Depois foi a vez do meu primo, que saltou com a namorada sem falar
palavra com ela. Acho que, depois daquele programa, o namoro acabou.
Assim
que entrei pelo apartamento da Rua Itacuruçá, minha mãe veio com a novidade:
“Seu
amigo João já ligou duas vezes. Disse que vai ligar daqui a pouco.”
Exausto,
fui para meu quarto tirar a roupa e me deparei com o cartão do Automóvel Clube
do Brasil jogado displicentemente sobre a escrivaninha. Tirei a roupa, tomei
meu banho e já me preparava para deitar, quando o telefone tocou.
Da recepção de um motel, João
me pedindo ajuda.
Precisava desesperadamente de um reboque. Enguiçara com seus pais na saída do Riocentro.
Precisava desesperadamente de um reboque. Enguiçara com seus pais na saída do Riocentro.
Comentários
adorei!
beijos!
euzim