Três festas, quatro penetras e um sumido
Em
plena época de copa do mundo e festas juninas, isso há alguns anos atrás, uma
amiga me fez convite inusitado: participar com outros de uma sessão de fotos,
trabalho da faculdade de comunicação, na Floresta da Tijuca e em plena
madrugada. A ideia era sairmos em caravana de quatro carros até a estrada das
Canoas, onde escolheríamos o melhor lugar para a locação. Tremi só de imaginar
o risco, mas aceitei. Por volta das oito da noite de sexta-feira, eu me juntei
ao grupo dos escolhidos na Praça General Osório em Ipanema. Fui logo
encaminhado até um dos carros, uma Kombi abarrotada de figurinos inusitados, onde
me enfiaram dentro de um colan azul bebê justíssimo do pescoço até os pés com
sunga de banho por cima, luvas de couro, botas, um poncho gaúcho azul marinho
se enrodilhando pela frente até os ombros e um chapéu de veludo preto. Um
ridículo super-herói paladino dos pampas.
No lugar de máscara, uma pasta d’água cobriu meu rosto
e ganhei olheiras. Um sangue de batom escorreu pelo canto da minha boca. Observei
a produção dos demais. Gente esfarrapada igual zumbi ou de capa preta, vampiros
de dentes afiados, lobisomens. Parecia um clipe de Michael Jackson. Havia
também a Fada Sininho, o violinista “no telhado”, a noviça rebelde e a mentora
do projeto, metida num maiô escuro, capa plástica transparente, chapéu
pontiagudo de bruxa. Era Elvira, a rainha das trevas.
Quis saber dela a explicação para aquele halloween
fora de hora. Qual a razão daquilo? Qual a temática? Ela falou em movimentos de
rebeldia, hippies, Secos & Molhados e mais outros questionamentos, numa
explicação confusa que, até hoje, ao lembrar, fico tonto. Desisti de entender. Dentro
do porta-malas de outro carro muitas velas, jarros, caçambas de barro, serpentes
de borracha e demais acessórios para a composição do festim macabro da mata.
Porém, um detalhe importante: nada do fotógrafo chegar. Ninguém sabia o paradeiro
do Edmilson. A hora avançava e o grupo, impaciente com a espera, chamava a atenção
dos transeuntes que achavam que éramos elenco de algum humorístico da TV. Foi
então que uma garota vestida de Chiquinha do Chaves, após algumas ligações,
informou que o aguardado indivíduo se atrapalhara todo com sua agenda de
trabalho e estava fotografando numa festa na zona norte. Elvira, rainha das
trevas, não se conformou. Anotou o endereço de onde, supostamente, ele estaria e
decidiu buscá-lo na marra. Porém, não teve eficiência para convencer a maioria
dos fantasiados a seguirem naquela empreitada. Quase todos desistiram. Ficaram
com ela somente o Conde Drácula gorducho, a Múmia de dois metros de altura e
eu. Minha vontade também era de cair fora daquilo, mas não o fiz. Seria
solidário até o fim.
O comboio, reduzido a um único carro, seguiu para Vila
Isabel. Paramos diante de um casarão da Rua Barão de Cotegipe com muita gente
para entrar, seguranças na porta, música alta lá dentro. Entramos na fila dos
convidados, que não esconderam o estranhamento diante daqueles quatro esquisitos.
Cada um ali possuía um convite, ganhava pulseira colorida e entrava. Óbvio que
fomos barrados. Elvira mentiu dizendo aos seguranças que o fotógrafo da festa
nos esperava. O homem mais atarracado trocou palavras com outro, depois nos
analisou desconfiado:
- Vocês são contratados? São performáticos? Quem é o
gogo boy?
- Surpresa, amigo – respondeu Conde Drácula cínico – Mas,
vamos agitar aí dentro.
Abriram passagem, mas recomendaram que ficássemos num
canto qualquer até acertarmos com nosso amigo fotógrafo. Mas não foi bem isso
que fizemos. O salão fervilhava de gente bonita e chique. Um luxo só. O DJ nas
carrapetas mandava música techno. Muito efeito de luz, bola espelhada, fumaça
de gelo seco. Ao longe, um barman preparando drinques coloridos. Múmia foi até
lá e retornou com caipirinhas. Foi uma segunda vez e voltou com uísque. Beber
aquelas coisas provocou-me alteração de comportamento. Logo, eu já estava no
meio da pista rodando no poncho igual pião. Conde Drácula também entrara no
clima de uma bebida cor de sangue e ameaçava pescoços com seus dentes afiados. Mauricinhos
e patricinhas de olho na gente, todos comentando. Viráramos atração, roubávamos
a cena. A desagradada aniversariante veio nos abordar com rispidez, querendo
saber a razão de estarmos ali e trajados daquele jeito. Múmia, já de cara
cheia, tentou explicar enrolando a língua. Sem chances. Fomos taxados de
penetras abusados e ridículos. E mandaram chamar os seguranças. Nossa rainha
das trevas, que percorrera obstinada os quatro cantos da mansão atrás do
desaparecido, retornou aflita:
- Vamos cair fora daqui antes que nos linchem. O
fotógrafo é outro. O endereço é errado. Mas já sei aonde foi o Edmilson.
Ela não iria desistir.
Conde Drácula reverenciou todos os presentes com um
movimento de capa, Múmia virou a bebida de um gole e nos evadimos do recinto
quase correndo.
Ao cruzarmos o portão, bati no ombro do segurança:
- Valeu amigão. Pena que você perdeu o strip.
Todos dentro do carro, seguimos para São Cristovão com
direito a parada numa blitz.
Aí, dá para se imaginar a cara dos policiais diante
daquele quarteto fantástico, ainda mais quando abriram o porta-malas e
encontraram um monte de velas, caçambas de macumba, serpentes, aranhas,
galinhas de borracha. Fomos liberados logo, porque os homens estavam mais focados
em debaterem Copa do mundo.
Estacionamos na Avenida do Exército. Bem pertinho de
nós, uma grande árvore no meio do asfalto, cuja lenda rezava ser a preferida do
imperador Pedro I para deixar ali suas necessidades fisiológicas.
Tocamos a campainha de um sobrado e uma mulher de seus
setenta anos atendeu. Arregalou os olhos ao se deparar com bruxa, múmia, vampiro
e um gaúcho de colan.
- Boa noite, senhora. Estamos sabendo que o Edmilson...
- Ah... Que bom que vieram – cortou ela abrindo um
sorrisão – Afinal, não é sempre que se faz noventa anos, não é? Sejam
bem-vindos.
Escalamos uma rangente escadaria de madeira, com nossas
capas, poncho e a gaze da múmia se enganchando em pregos salientes do corrimão.
Na sala ocupada por uma dezena de convidados, cujo somatório das idades superava
a da Terra, nossa anfitriã nos levou até uma senhorinha enrugada acomodada numa
cadeira de rodas.
- Veja, mamãe! – falou em voz alta - Seus amigos
acabaram de chegar!
E virou-se para nosso constrangido grupo num sussurro:
- Vocês já a conhecem. Não escuta direito e anda se
esquecendo das pessoas. Mas está feliz que só vendo. O Ed já tirou tanta foto
dela hoje... Um querido, não é?
Percorremos os olhos pela sala. Nada do fotógrafo. Fomos
convidados a nos sentarmos, ganhamos copos com guaraná e uma mulata, talvez
empregada, veio nos oferecer esplendorosa bandeja de salgadinhos. Mas a dona da
casa a impediu:
- Não, Maria. Pelo avançado da hora, eles devem estar
com fome. Traga logo a comida.
Era estrogonofe. Apesar de frio, estava delicioso.
Devorei e repeti. Não havia música sequer naquela festa. Só um sussurrar de alegre
velório, talvez comentando de nossa aparência nada casual. Ao ver que acabávamos
de comer, a mulher:
- Podemos começar então?
- Começar? – disse Múmia intrigado.
- Sim. Já está tarde. Mamãe precisa se recolher.
- Mas... Começar o que?
- Ora... A cantoria. Vocês não vieram aqui pra isso?
- Cantoria?
- Sim. Vocês não são os cantores amigos lá da clínica
da mamãe?
Depressa interrompi o embaraço que se fazia:
- Claro! Claro! Vamos cantar “Carinhoso”.
E entoamos no meio da sala, num tom qualquer, a música
para deleite geral. Aplausos no fim. Cada um de nós recebeu um beijo da
aniversariante que expressou sua alegria:
- Obrigada, meus queridos. Eu já estava morrendo de
saudade de vocês.
Aí, nossa amiga feiticeira fez a pergunta que não
queria calar:
- Mas... E o Edmilson? Cadê o Edmilson?
- Oh, minha filha. O Ed já veio e já se foi. Tinha de
fotografar um pessoal fantasiado.
- Caramba! – afligiu-se Conde Drácula – Ele deve ter
ido a Ipanema encontrar a gente.
- Ipanema não – corrigiu a dona – É uma festa no Lins.
Até deixou o telefone.
Múmia pediu para usar o aparelho e ligou. De posse do
novo endereço, saímos depressa dali. Em poucos minutos, já estávamos diante de
uma casa modesta na Rua Araújo Leitão. Naquela, a festança bombava com música sertaneja
nas alturas, cheiro de churrasco, falação, risadas vindas lá dos fundos.
Batemos muitas palmas até que uma menina vestida de caipira apareceu na porta,
olhou-nos com estranhamento, depois gritou lá para dentro:
- Mãe! O pessoal da quadrilha chegou!
Um homem de camisa rubro-negra encharcada de suor surgiu
em seguida carregando um espeto comprido com linguiça e nos deu passagem.
- Que bom que chegaram e em hora boa, porque acaba de
sair uma carne no ponto.
A festa acontecia num quintal apinhado de gente, com
fogueira, bandeirinhas, balão e tudo o mais, mas era, na verdade, comemoração
de bodas de ouro de um casal, que nos recebeu com simpatia. Estranharam nossas
roupas, mas pediram que agitássemos a quadrilha para mais tarde, porque os
músicos estavam com dificuldade nos ajustes do equipamento de som. Novo
equívoco.
- E agora? Estão achando que somos animadores de
festa.
- Calma – disse Elvira – Vamos achar o Edmilson e cair
fora.
Resolvemos abstrair e curtir a folgança junto ao
barril de chope. Logo nos entrosamos com o sanfoneiro vestido de Zorro. Uma boa
parte dos convidados se deslocou para a sala, todos de olho na televisão. Era a
Copa do Mundo. E nós lá fora, bebendo, bebendo... Múmia bebeu tanto que se desfez
todo da gaze. Num certo momento, já não dávamos mais nem por burro, nem por
albarda. Nem nos lembrávamos do desaparecido Edmilson. Quando o regional,
enfim, começou a tocar, saímos dançando, cantando, inventando poses e passos esdrúxulos
de quadrilha. Exibimos língua, peito, mostramos pedacinho de bunda, fizemos
presepadas mil. E a menina de caipira fotografando tudo. Por fim, o dia amanheceu
e a festa acabou. Muitos dos que passaram grudados na televisão, saíram de lá
aborrecidos. O Brasil perdera a Copa. Eu ganhei uma urticária daquelas, por conta
de tantas horas naquele traje grudento.
Inconformada com o desenrolar de tudo, minha amiga,
futura jornalista, marcou outra sessão de fotos uma semana depois. Aconteceu
nos jardins lá do meu sítio e com outro fotógrafo. Ninguém nunca soube do
Edmilson.
E eu, de novo, tive que vestir o malfadado colan e o
poncho azul marinho.
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