Os miseráveis (pelo dia da vovó)

          Aconteceu num domingo de sol no Governador Iate Clube da Ilha, onde éramos associados e possuíamos uma lancha para as aventuras de final de semana.
Meus pais no restaurante em conversa de negócios com um casal. Eu e meus irmãos, pequenos ainda, com nossa Vó Anita (Julia), encarregada de nos vigiar, enquanto zanzávamos por ali até a hora do almoço. Meu pai combinou o seguinte:
“Mamãe. Só me apareça com as crianças no restaurante quando der meio-dia.”
Era cedo ainda. Doidos por um mergulho, mas, pela primeira vez, sem os trajes de banho e os chinelos, teríamos que inventar algo, embecados, bermudas novas, camisas e sapatos com meias, uma exigência para fazermos bonito junto ao casal ilustre.  Um tormento aquilo. Nossa avó, senhora humilde que nunca se importou com etiquetas, meteu-se no mesmo vestido de florzinhas azuis simples, seu preferido. Ela, irredutível, não usaria outra coisa. Não adiantava dar-lhe roupas mais sofisticadas. Não usava. Também não abria mão da sacola courvin de alça longa, onde guardava sabe-se lá o que. Mas cedeu às pressões do meu pai e sacrificou os pés num desconfortável par de sapatos fechados, presente que vivia esquecido no fundo do armário.
Ficamos assim. Indo daqui para lá, de lá para cá. Vovó andando com dificuldade e praguejando pelo sacrifício que fazia. No hangar, entramos nos barcos repousados sobre cavaletes para balançar e brincar com os remos. Espiamos lanchas lindas estalando de novas. Fizemos uma inspeção em nossa bat-lancha. Era ínfima diante daquelas maravilhas, mas era nossa. No final do hangar, um iate enorme e todo branco. Decidimos invadi-lo. Vó Anita ralhou, preocupada para que não nos sujássemos nas estripulias, mas, ao ver nossos rostos surgindo nas escotilhas e acenando, não resistiu. Entrou no iate também. Mexemos em tudo, abrimos torneira, armários, caímos na cama e usamos o banheiro. Desembarcamos felizes, fingindo sermos donos. Nossa avó era tão criança quanto nós. Topava tudo.
Seguimos para o cais e ficamos a olhar ao longe os movimentos de um guindaste sobre um navio em manutenção. A água escura com cheiro de óleo forte. Muito calor e a vontade de mergulhar. Restou-nos sentar num alambrado.
Quando deu meio dia, ela avisou:
“Agora já podemos ir para o almoço.”
O clube é um grande aterro e o restaurante, ao longe, uma construção de dois andares com varanda comprida na frente. Para se chegar lá, teríamos de percorrer um caminho de calçamento longo beirando a praia. Depois, num ângulo de noventa graus à esquerda, mais um tanto.
Não me conformei com aquele percurso enjoado e tracei uma linha reta com os olhos.
“E se a gente for direto por aqui, vó?”
Ela analisou o território. Era um grande descampado.
“Mas deve estar tudo cheio de lama.”
De fato, no dia anterior, chovera muito, um temporal terrível. Aparentemente, aquele chão coberto por rachaduras parecia seco. Estaria mesmo firme?
“Já secou tudo, vó. Se a gente for por aquele caminho, vamos andar muito.”
“Tudo bem. Mas se tiver ruim por aqui, a gente volta.”
E fomos caminhando devagar, ela na frente a bambear nos sapatos.
Numa certa altura, seu pé esquerdo afundou um pouco. Ela parou.
“Ih... Acho que não vai dar não.”
“Pisa mais pra cá”, reclamei indicando para que mudasse de direção.
Ela deu um passo mais aberto para a direita e o sapato atolou mais. Resolveu voltar. Mas ao dar o terceiro passo para trás em semicírculo, a perna esquerda afundou até o joelho. Sem equilíbrio, ela rodou os braços três vezes e... Tibum na lama.
De fato, apenas a superfície estava seca. O resto era pura armadilha movediça. Quis ajudá-la. Escorreguei e me esparramei também. Na verdade, pura traquinagem minha. Meus irmãos aderiram aquilo e se jogaram. Fingimos que nos afogávamos naquele mar de lama. Ao longe, duas mulheres rolavam de rir da gente.
Minha avó, indecisa entre se irritar ou se divertir, pediu que a ajudássemos a salvar a sacola que descera ao centro da Terra. Chegou a enfiar a cabeça no lamaçal, enquanto corria as mãos buscando as alças. Recuperamos seus sapatos.
“Não quero essas porcarias. Quero minha bolsa”.
Remexemos, nadamos, atolamos até o pescoço.
Finalmente, ela resgatou a sacola de courvin que voltava recheada de terra.
Conseguimos desatolar e saímos completamente sujos. Cobertos até a alma, iguais aos integrantes daquele tradicional bloco carnavalesco de Paraty.
Eu me lembrei de que, junto ao restaurante, havia um vestiário dos barqueiros, onde poderíamos nos lavar. Minha avó seguiu descalça e decidida para lá, sacudindo o vestido, com pitolocos se esvaindo pelo meio de suas pernas.
Mas ao chegarmos ao tal vestiário, a surpresa: a porta estava trancada com cadeado.
E agora?
Nem tudo estava perdido. Havia uma torneirinha na parte lateral. Para lá fomos.
Enquanto isso, na varanda do restaurante, meus pais conversavam com o ilustre casal sentado de frente para o visual da baía. Em meio a burburinho e risos crescentes do povo que almoçava, os dois comentaram:
“Vocês não vão acreditar no absurdo. Tem uma velha mendiga com pivetes imundos tomando banho bem aqui na frente do restaurante.”
Meu pai virou-se e, transtornado, reconheceu as crianças e a senhora com uma latinha enferrujada derramando água para dentro do decote a esfregar os peitos com energia.
“Mamãããããããeee!!!!!”
Os olhos azuis dele a saltar das órbitas.
O resto, nem vale a pena contar, porque foram tantos gritos, tanto escândalo.
Lembro-me da gente caminhando, todos imundos, cabisbaixos para o carro.

Mas depois da aventura, em segredo, nós e nossa avó demos muitas risadas. 

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