Gente que a gente vê por aí
Da
entrada do sobrado, meu primo me chamou a atenção gritando:
- Corre aqui! Corre aqui! Vem ver quem está passando!
- O que foi? Quem é?
- Olha lá! É o mosquito elétrico.
- Mosquito elétrico?
Na calçada oposta, um sujeito bem mirrado, boné
escondendo os olhos, camiseta, bermuda abaixo dos joelhos, meias, tênis, bolsa a
tiracolo, andava a passos largos, quase correndo.
Parecia personagem da Disney competindo em marcha
atlética.
- Mas, ele... Ele é uma criança, não é? – perguntei.
- Nada. Já é homem feito.
- Jura? Qual será a idade dele?
Enquanto questionávamos seu tempo, ele nem dava tempo. Ia
longe até sumir no final da rua. Durante alguns anos, vimos o Mosquito Elétrico
passar sempre com aquele jeito de menino assustado. Qual seria o motivo de tanta
pressa? Colégio? Trabalho? Seria entregador?
Outro que via e ainda vejo com certa constância, é um ruivo
gordinho e sardento lembrando Ferrugem, aquele comediante mirim sumido. Porém,
um Ferrugem sisudo, abstraído dos que estão a sua volta, impossível de se cumprimentar.
Topo com ele em todos os lugares: shows, cinema, praia, shopping, mercado. E
ele sempre com o olhar perdido.
Recentemente, às vésperas da Copa, uma reportagem da TV
mostrou uma galera da Tijuca ornamentando suas casas para os jogos. A câmera deu
um giro pela rua e lá estava ele, paradinho, quieto, observando, quem sabe, querendo
ser mais um desses manjados papagaios de pirata que se postam atrás da repórter.
O tempo passa, e eu vou acompanhando, até pelo vídeo, as mudanças gradativas na
fisionomia do ruivo, sem jamais termos trocado uma palavra sequer. Nada sei
dele. Um desconhecido conhecido.
Depois que você se fixa num endereço e, todos os dias, repete
trajetos, vai esbarrando nas mesmas pessoas. Para algumas, vou desejando meu “Bom
dia”. Saúdo as meninas da Fábrica de Bolos, a secretária do curso de línguas,
sempre com a atenção na rua e o jornaleiro, que agora sei que se chama
Alexandre.
Quando me mudei para a Tijuca em 2008, comecei a cruzar
com um homem de cabelos grisalhos e olhos claros. Aí, eu embarcava para
Saquarema e, ao saltar no shopping de lá, dava de cara com ele. Retornava para
o Rio e, de novo o sujeito atravessando a Avenida Maracanã. Fiquei intrigado
com aquilo até descobrir que eram irmãos gêmeos e ambos meus vizinhos. Um, na
Tijuca. O outro, em Saquarema. Vi os dois juntos numa roda de samba dos Escravos
da Mauá, no Largo da Prainha, local onde só encontro determinadas pessoas. Ali
ou nos blocos de carnaval. Fora isso, elas desaparecem como por encanto.
No supermercado, já fui atraído algumas vezes pelo
assobiar forte de uma senhora de oitenta anos. Uma figura fascinante. Está
sempre alegre com sua música. A assobiadora puxa papo com todo mundo, repete
sua idade e diz não depender de ninguém. E o povo na fila troçando da tagarela,
taxando de maluca. Adorei conhecê-la.
De fato, existem muitos maluquinhos por aí. Que durezas
teriam enfrentado na vida para que se tornassem assim? Lembrei-me da negra Vitória
a vagar pela Rua General Roca. Nos meus tempos de Grajaú, uma senhorinha,
agarrava-se ao portão de uma clínica psiquiátrica e gritava “Rádio Grobooo!”,
fingindo segurar microfone. Quantos ouvintes teria seu programa?
Esses dias, uma amiga fez inventário de tipos curiosos que
vagam ou vagaram pela cidade, aqueles que ela se lembrou: o profeta Gentileza,
o Beijoqueiro, o malabarista da bola do Arpoador, o ginasta do Fundão, o
travesti bundudo Catileia e o versador de partido alto Denny de Lima, ambos de
Vila Isabel. Também incluiu um sujeito que só anda de sunga pela Tijuca, outro
que puxa carrinho de brinquedo e uma doida que anda com cachorros obesos. Na
minha lista de pessoas fora da casinha, tenho a minha doida dos cachorros. Só
que são pequenos poodles de chapéu, vestido e sapatinhos, que vão dentro de um
carrinho de bebê empurrados pelo calçadão de Ipanema e ela, uma senhora de
cabelos cor de neve, a entoar cantigas de ninar. Os animais são válvulas de escape para aqueles
que, já de longe, vê-se que não têm a normalidade do geral. De perto, ninguém é
normal mesmo. Só os gatos e os cachorros.
Ah... Os animais... Não importa quem. São companheiros
dos ricos e dos mendigos.
Muitas vezes vi pela Lapa um desvalido empurrando carroça
abarrotada de papelão com quase uma dezena de cães por cima e me admirava do
carinho, do cuidado como ele tratava os bichos. Falando em mendigos, uma velha moradora
do meu prédio saía de manhã toda arrumada, pintada, toda bonitinha ao mercado, igreja,
o que fosse. Mas, quando entardecia, colocava o vestido ao contrário com o saco
dos bolsos a mostra, sujava o rosto, enfiava o braço numa tipoia e ia esmolar
junto ao relógio da Gloria. No dia seguinte, estava digna de novo.
Tive outra vizinha, essa não trocava de roupa nunca.
Sempre zanzando pelo corredor do prédio de camisola transparente, calcinha e
sutiã. De vez em quando, tocava minha campainha e pedia para usar meu telefone.
Beleléu total. Eu procurava me manter distante de vizinhança matusquela, que de
doido basta eu, mas a loucura, se não está em nós, de algum jeito, chega junto.
Fiquei arrasado ao saber que uma amiga, querida colega de curso de línguas,
perdera a razão. De repente, começou a ser vista pela rua, daqui para lá, de lá
para cá, desgrenhando os cabelos e falando sozinha. Ganhou fama em Botafogo e
virou “A doida da Voluntários”.
Procurei suas filhas e fiquei sabendo que era um
processo irreversível. Uma pena.
Noutro dia, ao saltar na estação Saens Pena do metrô,
um rapaz bem trajado, barba alinhada, abordou-me na escadaria de saída se
dizendo argentino e que sofrera um assalto:
- Estoy perdido! Estoy perdido!
Dei-lhe umas moedas. No dia seguinte, lá estava ele de
novo com o mesmo texto:
- Estoy perdido! Estoy perdido!
Aproximei-me e disse:
- E aí, malandro? Não se achou ainda?
Porém, com o passar dos dias, vi que não era o vagabundo
que eu imaginava. Diariamente, lá estava ele pedindo na entrada do metrô e
repetindo “Estoy perdido, estoy perdido”.
Foram semanas naquilo. Sua aparência se deteriorando, a
barba crescendo, as roupas imundas se rasgando. Até que um dia, ele sumiu.
A loucura da cidade. A cidade e suas vítimas.
Já que não é possível, nem
saudável viver no isolamento, vamos seguindo neste hospício.
Saio de manhã, distribuo
meus cumprimentos às meninas dos bolos, à secretária do cursinho, ao
jornaleiro. Atravesso uma galeria da praça e avisto, de longe, um homem
pequenino de cabelos grisalhos a conversar com alguém. Usa bermudão abaixo dos
joelhos e sacola com a correia atravessada no peito. Eu me aproximo, mas ele
dispara, súbito, igual foguete.
Apesar da falta do boné, eu
o reconheço. É o Mosquito Elétrico.
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