A velha do piano
“Pelo
galo não cantar, o dia não vai deixar de raiar”.
Li em voz alta a frase retirada do livro “Almanhaque”
do Aparício Torelli (Barão de Itararé). Tornei a repeti-la, enquanto Simone me
trazia um copo com água. Eu acabara de chegar esbaforido ao seu apartamento em
Ipanema.
- Pronto. Eis a frase do nosso dia.
Aquilo se convencionou. Todas as vezes que eu
adentrava o apartamento dela, abria displicente aquele livro e colhia uma frase
no rodapé da página, como uma forma de celebrar nosso encontro. Minha loura
companheira de bagunças veio com a novidade:
- Você não imagina o que eu descobri. Sabe o Cassino
Atlântico? O shopping?
- Sei. O que tem?
- Tem uma velha tocando piano lá na meiuca de tarde.
Achei graça daquela frase: “Uma velha tocando piano lá
na meiuca”. Ela riu junto.
- Um piano naquele shopping sem graça?
- Vamos até lá ver? Que tal? Alayde vai também. Já
deve estar chegando.
Topei, apesar de surpreso. Simone não era muito fã de
sair com dia claro.
Animada, foi lá dentro vestir a bata indiana colorida,
espetou o brinco de pena de pavão que eu lhe dera de presente e cobriu os
lábios com um batom vinho. Assim que a amiga Alayde chegou, rumamos para o
Posto Seis de Copacabana. Já na entrada do shopping, ouvimos o dedilhado de
música se espalhando por aquele espaço de lojas, a maior parte delas, voltada
para estrangeiros, agências de viagem e câmbio, comércio de pedrarias e
artesanatos caríssimos. Descemos a escada rolante.
Na praça de alimentação no subsolo, mesas e cadeiras vazias
indiferentes ao piano, que era executado com maestria por uma senhora vistosa,
o cabelo caprichado no laquê. Sentamo-nos numa mesa bem ao seu lado, pedimos
cafezinhos ao entediado garçom e nos aquietamos, ouvindo e analisando a gravidade
daquela fisionomia com os olhos cravados nos desenhos do pentagrama, mãos
magras e ágeis, divididas entre as carícias no teclado e a virada de página.
Quando a música terminou, aplaudimos.
A senhora ruborizou-se com o inusitado, porque aplausos
não aconteciam ali. Fez breve movimento de cabeça para agradecer, remexeu
partituras e mandou outra mais lenta que aquela. Repetimos as palmas no final,
com o eco delas se espalhando, indo lá para cima, para o piso principal. Pessoas
surgiram nas grades curiosas.
Uma terceira música veio. Depois outra e mais outra. Todas
lindas, mas lentíssimas. E nós lá no incentivo. A questão é que, a cada número
executado, uma tristeza profunda foi se apoderando da gente. Tínhamos chegado
tão animados ali, mas, no decorrer da récita, a melancolia bateu junto com uma sonolência
que outro café não cortaria.
Se havia algo a se cortar, seria o pulso.
- Tá me dando vontade de chorar – disse Alayde.
- Em mim também – concordou Simone, soltando um breve
riso.
E a pianista concentrada, taciturna, triste,
tristonha, tristonhezima, tristonhenhezima.
O lindo virara chato. Chato demais. Antes que cometêssemos
suicídio ou assassinato, esperei o último acorde da marcha fúnebre para propor:
- Que tal uma coisa mais alegre? Uma valsa animada...
Sei lá, uma...
- Achei que vocês estavam gostando – cortou a artista,
um pouco amuada.
- Estamos gostando sim. Mas, que tal dar uma variada
no repertório? A senhora toca outro gênero?
Ela remexeu nas partituras e perguntou:
- O que sugere?
Antes que eu dissesse, mandou com maestria o “Noturno”
de Chopin. Enveredou para “Quatro Estações” de Vivaldi. Imediatamente,
recordei-me de uma amiga querida, a excelente pianista Beatriz Licursi, grande
intérprete de Ernesto Nazareth. Sugeri um chorinho e ela atacou “Odeon” do referido
compositor emendando com “Atraente” da Chiquinha Gonzaga. Percebi gente
espiando de novo lá em cima. Recuperávamos o fôlego dos aplausos. Ela animou-se,
ainda mais quando novos ouvintes, perto de uma dezena talvez, se ajeitaram
naquelas geladas cadeiras de alumínio.
Vieram assobios e gritos de “Bravo”.
Fiquei imaginando a razão de tão sóbria senhora tocar
num ambiente daqueles. Não combinava com ela. Uma praça de alimentação imensa,
fria, inóspita.
Antes de comunicar o breve intervalo, dedilhou famosa
composição de Scott Joplin.
Nossa “entertainer”, nesta altura do campeonato,
transformara-se por completo. Deixara a sisudez e sorria contente, sempre
agradecendo com seu movimento tímido de cabeça. Veio sentar-se conosco.
Maria Edilza, este era seu nome, enviuvara de pouco e
morava num quarto e sala na Rua Julio de Castilho na companhia apenas de um
poodle já velhinho. Uma amiga a recomendou à administração do shopping para
“alegrar” as tardes de quinta-feira, uma distração para aquela que, além do
marido, perdera um filho em acidente de carro. Nossa nova amiga embaçou os
olhos ao relatar o fato. Tratei de quebrar o clima:
- E MPB? Toca um Chico, um Caetano?
- Puxa... Seria ótimo! – animou-se Alayde.
- Pô! Só falta vocês quererem que ela toque samba e
funk – brincou Simone.
- Funk não – respondeu Edilza na calma – Mas farei uma
surpresa para vocês.
Voltou ao piano, recolheu aquele bolo de partituras
velhas e enfiou tudo numa bolsa. Pôs as mãos no teclado e “Minha Namorada” do
Carlos Lyra e Vinícius se fez presente. Nós cantamos quase aos berros e o
público, que crescera, fez coro. Uma lista de pedidos foi desfiada. Mais meia
hora, eu já estávamos de pé, agarrados ao piano e cantando “Foi um Rio que
passou em minha vida” do Paulinho da Viola.
Extrapolamos limites e o horário da audição.
Maria Edilza fechou o piano, recolheu seus pertences e
nós a acompanhamos até a rua para beijos e abraços calorosos.
- Valeu pela força – agradeceu emocionada – Estava
precisando da alegria de vocês.
- Nós é que agradecemos pela tarde maravilhosa. E
voltaremos na próxima quinta.
Cumprimos o prometido e retornamos na semana seguinte,
inspirados pela frase “Ingratidão é apenas falta de memória”, colhida do
“Almanhaque”.
Assim que chegamos ao shopping, percebemos mudanças
radicais na nossa concertista. Usava roupa mais descontraída e o cabelo se
livrara do laquê. As melodias tristes de outrora deram lugar a “Chega de
Saudade” do Tom e do Vinícius.
Ao nos ver, os olhos dela se iluminaram. E a alegria
se repetiu.
Porém, ficamos algum tempo sem podermos voltar lá.
Coisas da vida ou por esquecimento mesmo.
Até que um dia, combinei nossa ida ao Cassino
Atlântico. Eu iria direto de casa.
Mal atravessei a porta corrediça do shopping, notei o
silêncio. Desci a escada rolante e vi apenas Simone tomando seu café num mar de
mesas e cadeiras desocupadas.
- O que aconteceu? Cadê a Dona Edilza? Cadê o piano?
- Não sei. Esse garçom com cara de bunda não sabe
explicar. Acho que foi demitida.
- Caramba... Que pena. E nem pegamos seu telefone.
- Será que a culpa foi nossa?
- Culpa? Culpa de que, Simone?
- Sei lá. Ficamos aqui pedindo sambas e no maior
carnaval com a velhinha, coitada.
Pedi meu café e o sorvi refletindo sobre aquele vazio,
as lojas praticamente desertas, mas funcionando normalmente, como sempre.
Lembrei-me da frase colhida de quando estivemos pela
primeira vez naquele shopping.
Realmente, com ou sem o som do piano da Dona Edilza, nada
mudaria ali.
Vida segue e o sol vai raiar inevitavelmente.
Pagamos a conta e saímos lamentando muito. Assim que
entrei no apartamento de Simone, como não podia deixar de ser, abri o livro do
Barão de Itararé.
E a frase do nosso dia era:
“Este mundo é redondo, mas está ficando chato”.
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