A Recatada 1

Episódio 1: uma boate com gente diferente, gente esquisita.

          Conheci Joana Maria numa festa na Rua Pareto e engrenamos um namoro. Bonita, branca como papel, cabelos castanhos escorrendo até metade das costas, era religiosa extremada, frequentadora assídua de um grupo jovem de certa igreja da Tijuca. Tímida de se enrubescer por nada - desafio a um galhofeiro como eu - tinha uma irmã sisuda e genitores também reservados. Soube que o pai nunca ralhava, sequer alterava a voz. Diante de algum problema, ouvia compreensivo, mediava, buscava solução ao conflito. Já a mãe variava de humor, ainda mais quando não encontrava objetos perdidos. Um tenebroso par de óculos fundo de garrafa ampliavam os olhos de Dona Renata tornando-a personagem de animação. Dava nervoso encarar aqueles olhões.
Nas primeiras semanas, Joana Maria insistiu e eu acabei conhecendo sua comportada turma da igreja retirada num sítio em Teresópolis. A dona do lugar chamava-se Priscila e se destacava dos demais pelo jeito extrovertido, abusado, olhares gulosos para mim, mesmo se dizendo melhor amiga das amigas. Outro que cintilava no grupo era Fernandinho, espevitado, metido a engraçadinho, intercalando gracejos aos declames de salmos colhidos da pequena Bíblia que trazia grudada nas mãos. O rapaz só não conseguia disfarçar seu incomodo diante de torsos masculinos expostos de súbito ou quando algum mancebo se desnudava no quarto. Havia uma japonesinha chamada Mioko que não abria a boca para dizer um “ai”. Mioko não brincava, detestava piscina, pouco comia, não gostava de nada. Apenas sorria.
Esse era o elenco de carolas que Joana Maria não se desgarrava. Nossos encontros eram frios, sem graça, beijinho, abracinho, um cheiro no cangote e aquela gente muito comportada e imatura, com seus papos cheios de teorias e preconceitos.
Numa noite, lá estava eu com ela e sua turma em final de missa de domingo e, sabendo que não me desvencilharia deles, propus um passeio até a Barra da Tijuca.
Adoraram minha sugestão e saímos em dois carros. Eu dirigindo o meu com Joana Maria, a irmã sisuda, Fernandinho e lânguida Priscila a mostrar sua língua para mim pelo retrovisor. No outro, dois casaizinhos serenos e a japonesinha Mioko. Como eu era o guia, levei todos ao Bar do Oswaldo, famoso pelas tradicionais batidinhas. Um simpático atendente indicou-nos uma mesa comprida, mas ninguém quis se sentar, olhando tudo com seus narizes torcidos. Não entendi de pronto a razão.
Joana Maria explicou-me baixinho que nenhum deles bebia batida.
Fiquei amuado, constrangido.
- Nem a Mioko? Diz pra ela que é quase um saquê.
A japonesa deu um risinho e acenou negativamente com a cabeça. Não ingeria álcool.
- Ai, Mioko... – resmunguei, querendo dizer outra coisa.
Retornamos aos carros, com Fernandinho esquecendo os salmos para fazer críticas ao aspecto do lugar e piadas sobre o jeito delicado do atendente. Quase o levei a um espelho. Foi então que ele exprimiu um desejo:
- Eu quero mesmo agora é me enfiar na primeira boate que tiver pelo caminho. Estou doido para dançar.
Todo mundo apoiou.
- Ah, é? Então tá – disse.
Resolvi me vingar daquela turma chata. Quase na praia, na Avenida Rodolfo Amoedo, indiquei um aglomerado de gente na portaria de uma casa noturna.
- Que tal? Vamos nessa?
Meus colegas de noitada toparam. Só não sabiam que ali era a Boate Gaivota, um famoso reduto gay. Estacionamos e saltamos. Os carolas animados logo estranharam o jeitão de alguns da fila, mas se postaram nela.
- Você conhece este lugar, Beto? – quis saber minha namorada.
- Não, mas já ouvi falar. Dizem que é bem legal.
- Vocês não estão achando essas pessoas meio esquisitas, diferentes? – questionou lânguida Priscila.
- Bota diferente nisso – apoiou a irmã sisuda de Joana Maria.
A japonesinha Mioko soltou seu risinho com a mão na boca.
O homem da roleta analisou aquela trupe bem comportada:
- Vocês sabem onde estão? Querem mesmo entrar aí?
- Sim. Qual é o problema? – rebati cínico - Não é uma boate?
- É sim, só que é gay.
- Como é? Boate de bicha e sapatão? – alarmou-se Fernandinho - Jesus amado!
Apesar de assustadinho, o devotado bem que trocava olhares e sorrisos com um mulato de cabeleira arrepiada. Dirigi-me aos demais:
- Isso não é problema pra gente, concordam? Afinal, nós só queremos dançar.
Um silêncio se fez. Minhas passageiras entreolhando-se, posicionadas quais candidatas em desfile de miss à espera de nota, só que sem maiôs Catalina e faixas. Esperei que se manifestassem. Ninguém sabia o que dizer. Pressionei:
- Vamos entrar, gente. Afinal, aí dentro todos são irmãos em Cristo.
Diante de tal argumentação, foram um a um atravessando a catraca, porém, não todos. – Ué! Cadê a Mioko?
Mioko e os do outro carro já iam longe e apressados pela rua se mandando dali.
Nós paralisamos no pátio interno e assim ficamos por cinco minutos. Ninguém arriscava ir adiante e entrar na pista de dança. Joana não queria me acompanhar.
Foi então que duas garotas se aproximaram e se atracaram num beijo de cinema, as línguas em serpenteio, mãos nervosas alisando os corpos. Mais a frente, outras duas. Também rapazes com rapazes. Aquilo bastou. Joana Maria, com as mãozinhas postas sobre o peito lembrando Nossa Senhora, sussurrou-me corada:
- Vamos embora daqui?
- Mas, por que?
- Esse lugar... É que, talvez não seja recomendável... Acho desnecessário...
- A Mioko nem está aqui pra desaprovar, ora. Tem certeza que quer mesmo ir?
- Por favor. Eu te peço. Vamos.
- Vocês queriam tanto dançar... Está bem - acedi – Voltemos à nossa província tijucana.
Atravessei a rua para buscar o carro, decidido a não mais sair com aqueles carolas, mesmo que isso me custasse o namoro. Mas, por dentro eu ria do constrangimento daqueles bobocas. Embarcaram todos comentando, escandalizados com o que viram, aliviados por saírem ilesos, as integridades asseguradas.
Aquela situação rendeu assunto por semanas.


Antes de levá-los para casa, tive de parar no famoso trailer dos uruguaios, porque lânguida Priscila e Fernandinho estavam doidos para abocanhar um churros. 

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