A recatada 3

Episódio final: Motéis, festas, flagras e retiros espirituais.

          Minha contida namorada Joana Maria conformou-se de não mais incluir seus amigos da igreja nos nossos programas. Enfim, livre das carolices deles, dos fricotes do espevitado Fernandinho, do silêncio irritante da japonesinha Mioko e, principalmente, longe do constrangedor assédio de lânguida Priscila. Porém, não conseguia fazer com que Joana Maria se sentisse mais a vontade comigo, se soltasse, rompesse, enfim, como direi..., a vigente formalidade existente entre nós. Nossa intimidade era praticamente zero. Mas vislumbrei luminosidade ao túnel, assim que descobri que meu amigo Flavio iniciara romance sem limitações com uma também lá da igreja, morena liberal, o oposto das suas coleguinhas de reza. Sendo assim, urdi um plano e a tal garota foi imprescindível. Como boa amiga, ela aconselhou, convenceu minha namorada de que já era tempo de aquecermos nossa relação, de desfrutarmos de certos prazeres inerentes ao espírito cristão.
Joana Maria ainda mantinha-se casta. Plano vitorioso.
No sábado seguinte, já estávamos os quatro, com outros, na sala de TV do “Paretão”, um motel fuleiro da Rua Pareto, a espera de se vagar quarto. Uma situação. Apesar do cheiro azedo, o muquifo bombava de gente naquela tarde. Finalmente, tivemos nosso encontro íntimo, só que cercado de receios e nojos. Fui paciente. Joana Maria estava nervosíssima e disse que só praticaria certas coisas se fosse debaixo do chuveiro. Não quis se deitar na cama de jeito algum. Antes de tudo, rezou sem se ajoelhar, fez o sinal da cruz e me pediu com cara de quem está prestes a chorar:
- Seja carinhoso, por favor.
Senti-me transportado para o Brasil Colônia, eu, um fidalgo cruel e sua virgem donzela sofredora. Cheguei até a sentir alguma compaixão e uma curiosa vontade de dar-lhe uns tapas. Não o fiz. Mas consumei o ansiado ato.
Depois daquela primeira experiência, fiquei bastante preocupado com ela, porque se modificara, se tornara obcecada por leituras sobre relações amorosas, estudos da sexualidade, depoimentos, Relatório Hite e se agarrava a um recorte de jornal, matéria do Arnaldo Jabor sobre o filme “Eu sei que vou te amar”.
E o conflito com os ensinamentos da igreja? Grilinhos saltitavam por sua cabeça.
Certa noite de terça-feira, apareci de surpresa em sua casa. A mãe dela me atendeu com seus olhões se dilatando pelas lentes fundo de garrafa dos óculos. Avisou que a filha ainda não chegara da Aliança Francesa. O ponderado futuro sogrão apareceu rapidamente e sugeriu que eu a esperasse. Ele era um sujeito tranquilo, ponderado, conciliador e tinha um nome curioso, diferente, inesquecível, que eu não consigo me lembrar agora. Esperei meia-hora. Esperei mais quinze minutos. Esperei outros cinco no silêncio constrangedor daquela sala, com Dona Renata emudecida a preencher uma revistinha de palavras cruzadas, mas seus olhões bisonhos pregados em mim.
Não resisti ao jogo.
- Ela está demorando. Vou embora.
Um alívio escapar daquele olhar de rã. Mas lá na rua, a surpresa: dentro de um carro, Joana Maria conversava animadamente com um cara.
Ruborizou-se ao me ver, saltou veloz e me deu um selinho, visivelmente embaraçada. Com as mãozinhas postas sobre o peito, fez a apresentação:
- Esse... Esse é Adalberto. Ele... Ele estuda francês comigo.
Aquele homem devia ter uns vinte anos a mais que eu e, pelo ar de poucos amigos, senti que não nutria só amizade por sua colega de sala. Não desenvolveu assunto comigo. Apertou minha mão com frieza, ligou o carro e partiu. Cocei a testa.
- Você nunca me falou desse seu amiguinho. O papo de vocês parecia empolgante.
- O que está insinuando? Adalberto é um bom amigo – rebateu irritada e corando mais.
Não quis polemizar. Mas, na quinta-feira, resolvi surpreendê-la de novo e foi a repetição da cena: a olhuda Dona Renata entretida nas palavras cruzadas avisando que sua filha não estava.
- Já sei. Ainda vai chegar da Aliança.
- Não. Joaninha veio e já saiu. Foi com um amigo do francês ver uma peça de teatro.
Disse aquilo de modo displicente, porque estava mais preocupada em preencher todos os quadrados da revistinha.
Homem traído com cinco letras... Deixe-me ver...
Voltei para casa com a testa comichando.
No dia seguinte, tivemos papo sério. Pedi que Joana fosse sincera e me contasse a verdade. Estaria rolando algo entre eles? Ela negou veementemente, jurou fidelidade, disse que me adorava, mas acabou confessando que estava confusa, que o Adalberto se declarara e vinha insistindo. Pediu paciência porque resolveria a questão. Mas quando já íamos nos despedindo, ela sugeriu um tempo entre nós. Irritei-me com sua indecisão. Como na época eu não acreditava em tal estratégia, disse que preferia terminar de vez a ficar naquilo. Foi um drama, um chororô. Mais calma, com a voz tremida, avisou que, sendo assim, iria com a família para o apartamento que tinham na Barra e ficaria umas duas semanas por lá. Achei bom. Longe da Tijuca, da turma da igreja, do Adalberto, de mim, de tudo.
Sozinha, descompromissada, saberia avaliar e decidir o que fazer da vida.
Passado esse tempo, recebi ligação de lânguida Priscila para me contar que Joana Maria estava internada. Óbvio que me assustei de imediato:
- Internada? Ela está doente? Acidentou-se?
- Calma. Não é isso, menino. Ela está num retiro espiritual no Alto da Boa Vista.
E me explicou o motivo de tal reclusão. Certa noite, durante a temporada na Barra, a mãe dela saiu pelo condomínio à procura de Joana Maria que não chegava para o jantar. Entrou pela garagem e reconheceu o carro do colega do curso de francês que, estranhamente, parecia balançar. Acreditou tratar-se da distorção provocada pelo grau forte dos óculos. Aproximou-se e, ao colar as lentes fundo de garrafa e o nariz no vidro que se embaçava, reconheceu a filha igual frango de padaria com Adalberto por cima a praticar conversação francofônica, um “mon amour, meu bem, ma femme”.
Bem que Dona Renata, dias atrás, flagrara os dois de papinho na entrada do condomínio. Mas daí, a estarem ali daquele jeito... Armou-se um escândalo dos diabos. Ao ver a mãe se descabelando, socando o vidro e gritando “Não, isso não pode ser verdade”, a filha se recompôs depressa, saltou e jurou que não era nada do que parecia ser. Apenas fora tomada por um sufocamento súbito, uma crise asmática e Adalberto a socorria, aplicando nela sua bombinha. Ele também sofria do mesmo mal. Dona Renata tentou muito acreditar, afinal, a filha, além de recatada, não era dissimulada. Enxugou as lágrimas e recolou as lunetas na cara. Mesmo assim, os dois foram levados ao apartamento, onde o pai dela, conhecido pelo jeito manso e compreensivo, não compreendeu nada. Ou melhor, compreendeu tudo. Explodiu num descontrole, perdeu o prumo, gritou como nunca fizera antes na vida e acabou tendo um piripaque daqueles. Coração. Correram desesperados até a clínica mais próxima, menos Adalberto, que evaporou-se por encanto. Ninguém soube mais dele. Nem na Aliança Francesa. Para compensar o grande desgosto que dera aos pais, Joana Maria se recolheu ao internato para redimir-se dos seus pecados.
Essa história contada pela suspeita Priscila bem poderia ser caluniosa, mas a própria protagonista me confirmou tudo cheia de arrependimentos, semanas depois, numa festa em apartamento da Rua Santa Sofia, contando com o apoio do seu amiguinho confidente, o afetado Fernandinho.  Ouvi calado. Nada disse. No dia seguinte, Joana insistiu e fomos caminhar pela Floresta da Tijuca. Ela me repetiu toda a estória em detalhes, até a posição do frango assado, porque acreditava que eu seria superior, compreenderia e aceitaria reatarmos.
Não foi o que aconteceu. Apesar da minha elevação espiritual, não digeri aquilo. Preferi ficarmos como estávamos. Amigos.
Dois anos depois, num aniversário no Humaitá, eu a encontrei com a irmã sisuda, as duas completamente bêbadas cantando “Cavalgada” do Roberto e Erasmo, e um povo todo ao redor, pelo chão, aplaudindo. Ao me ver, me agarrou, foi desabotoando os botões da minha blusa e disse que aquela era uma festa temática, onde cada um deveria apresentar um número qualquer. E propôs fazermos juntos um strip-tease. Disfarcei, disse que iria ao banheiro e fugi de lá.
Tempos depois, esbarrei com lânguida Priscila na Rua Desembargador Isidro. A conversa, que julguei ser breve, acabou se alongando de carro até o Bar do Oswaldo.
- Você deixou mesmo o grupo jovem da igreja? – perguntei.
- Deixei. Eu não tinha afinidade com aquela gente. Ninguém ali me acrescentava nada. A Mioko, sempre calada. Eu detestava os ataques de bichice do Fernandinho.
Interrompi o que dizia para brindarmos com as batidinhas famosas daquele bar.
- Quem diria... Nós dois aqui...
- Parece mentira. E solteiros. Sem a chatinha da sua ex-namorada e, principalmente, sem aquela sua amiga pitbull de Brasília.
- A Lígia? A Lígia é uma pessoa bem legal.
- Uma doida furiosa, isso sim. Ficou ali na sua cola. Cheguei a achar que ela ia me bater.
- Ela ficou brava porque você foi atrás de mim em Brasília. Esqueceu?
Propus sairmos dali e irmos a outro lugar mais condizente ao momento. E adentramos o Motel Playboy. Para minha surpresa, ela se comportou de maneira inusitada. Retraiu-se. Foi então que descobri que Priscila, de lânguida não tinha nada. Puro teatro. Revelou-me não sentir prazer no sexo, se dizia frígida e temia experimentar mulher e gostar. Nunca mais a vi depois daquela noite.
Muitos anos se passaram, muita coisa aconteceu.
Eu me mudara da Tijuca para o Flamengo e, certa tarde, saindo da padaria Benamor carregado de massas de pizza, dei de cara com minha namoradinha do passado, Joana Maria. Ficou vermelha igual tomate quando me viu. Pouca mudança se fizera em sua fisionomia, talvez mais cheinha. Sempre com as mãos postas de santa, contou que não se casara, não namorava, só estudava, trabalhava e se dedicava com fervor à igreja.
Contei-lhe da casa que eu alugara em Lumiar, bem simplezinha, apropriada para fugir dos transtornos da cidade grande. Ela mostrou interesse em conhecer.
- Quando quiser, me visite. Infelizmente, nesse carnaval não irei porque vou desfilar.
Ela refletiu uns segundos e perguntou com seu jeitinho tímido:
- Você... Será que você... Não me alugaria a casa? Não gosto de carnaval e queria um lugar retirado para minhas meditações, poder orar e arejar o espírito. Quero levar a Mioko comigo. Você se lembra dela? Uma caladinha.
- Olha... Lembrar é fácil, porque japonês tem tudo a mesma cara.
- E então? Você... Você me aluga a casa?
- Alugo não. Empresto. Vá com sua amiga e aproveite. É um lugar bem sossegado.
Tudo devidamente combinado. Ela foi. Assim que o carnaval passou, viajei para Lumiar e segui direto até o proprietário para buscar a chave da casa que lhe fora devolvida, após os dias de retiro espiritual da dupla de beatas.
Eu o encontrei dando de comer a um cabritinho.
- E aí, Seu Geraldo? Tudo bem?
- Oh, meu amigo. Tudo béééééém. Sua amiga Joaninha é muito boazinha.
- Ela é mesmo. É quase uma santa.
O homem foi e voltou trazendo a chave. Entregou-me e disse:
- É bom dar logo uma conferidinha lá pra saber se está tudo béééém mesmo.
Assim o fiz. Porém, mal entrei na casa, deparei-me com triste cenário: dezenas de garrafas de vinho e de cachaça espalhadas, algumas quebradas, assim como copos e um lampião de querosene. Colchonete rasgado, paredes manchadas de vermelho com buracos em alguns pontos. Desordem total. Que raio de retiro teria sido aquele para fazer tanto estrago?
Procurei Seu Geraldo de novo e contei o que vi.
- A Joana veio com mais gente ou era só ela e a amiga?
- Amiga? Que amiga?
- Uma japonesinha mirrada, caladinha.
O homem matuto tirou o chapéu de palha para coçar a cabeça e respondeu:
- Olha... Se era do Japão ou não, não parecia, porque era um galalau pretim dessa altura, cheio de cabelo na cara e falante demais da conta, sô.
Nunca mais vi Joana Maria. Não sei o que anda aprontando.

Mas a recordação daqueles nossos velhos tempos se deu com a chegada do Papa Francisco ao Brasil. Acompanhando tudo pela televisão, dentre vários religiosos que comentavam sobre a personalidade do simpático pontífice, um deles me chamou a atenção: padre jovem, sério, bem articulado. Eu o reconheci. Não tive dúvidas. Era ele, o outrora espevitado, histriônico Fernandinho.  

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