Cadê a Luzinete?
Liguei
a TV e, num programa da manhã, um deficiente visual falava da alegria de brincar
nos blocos de rua. Lembrei logo de Luzinete. Sobre ela, contarei daqui a pouco.
A reportagem na TV era sobre superação. Numa roda de debate, vários davam seu
depoimento. Havia um ator, um técnico de futebol, um ex-modelo e atual atleta,
pessoas que encararam com coragem um revés da vida.
E
vem a pergunta irritante da entrevistadora:
“Mas
como se dá isso? De onde vem toda essa força?”
Cada
um respondeu ao seu modo, dizendo que todos nós somos capacitados de um poder
que nos leva a ultrapassar obstáculos, transformar nossa existência, apesar da
ignorância, do preconceito, da falta de oportunidade e de um mínimo de estrutura
das cidades para esse seguimento da população.
Na
hora me veio a cena que acompanhei num desses blocos carnavalescos: um folião
cadeirante metido no meio do povo, feliz da vida, mas encarando uma série de
obstáculos. Aqui no meu bairro, vejo com frequência uma senhora passando numa
cadeira. O lamentável é que ela é obrigada a ir pela rua, pelo cantinho do meio
fio arriscando sua vida até encontrar a próxima entrada de garagem, porque as
calçadas não são preparadas com acesso.
Não
é nada fácil.
Conheci
uma mineirinha linda, bailarina, que teve sua vida mudada de repente. Prestes a
embarcar para Londres, onde ingressaria numa companhia de dança, deixou-se
levar pelas amigas ao baile de carnaval de um clube da sua cidade. Como não
curtia nada daquilo, ficou num cantinho do salão vendo o povo pular. E uma enorme
caixa de som caiu sobre ela, deixando-a paralítica. Foi o fim de um sonho.
Porém,
não se abateu.
Dedicou-se
à fisioterapia, cursou faculdade de Direito, comprou carro adaptável (onde
muitas vezes viajou sozinha), namorou, casou, teve filhos.
No
especial da TV exibiram um grupo de balé com cadeirantes realizando o sonho de
dançar. Dançar é muito bom e você querer e não poder...
Certa
vez, eu estava com amigos numa festa e havia uma moça sentada no sofá quieta
olhando todo mundo dançando. Pela sua expressão de tristeza, percebi que queria
dançar, mas ninguém a convidava. Fui até ela e fiz o convite. Sorriu
envergonhada, mas recusou com a cabeça. Eu insisti, insisti, insisti até ela se
dar por vencida.
Buscou
um apoio no sofá e levantou-se com dificuldade. Foi então que eu vi que tinha
as pernas arqueadas.
A
música que tocava era frenética. O que fazer?
Não
teve outro jeito. Eu a abracei e ficamos ali balançando pra lá e pra cá bem
devagarzinho. A galera debochando de longe.
Quando
a música acabou, agradeci, ela sorriu e recuperou seu lugar no sofá.
Um
dos meus amigos perguntou:
“Você
não a conhecia, lesado?”
“Não.
Por que?”
“Ela
é a famosa Garrincha da turma.”
“Garrincha?
Puxa... Que sacanagem!”
E
a gozação continuou caindo solta em cima de mim.
Não
me importei. Senti que ela ficara feliz. Também fiquei. Dei alegria pra
Garrincha.
Mas
durante uma recepção de boas vindas a um francês, num tremendo apartamento no
Parque Guinle, não proporcionei a mesma felicidade.
Após
beber uns drinques, sai animado tirando a mulherada para dançar. Dancei com
uma, com outra, até chegar diante da morena que encostada de lado numa parede,
o olhar perdido para a janela. Parei diante dela, abri os braços na posição do
dançarino condutor. Olhou-me com desprezo. Recusou.
Forcei
a barra, mas ela não quis de jeito algum.
“Detesto
dançar.”
Voltou
as costas para mim e se retirou. Nesse momento, vi que não tinha o braço
direito. Lamentei. Soube depois que era
uma pessoa bem amargurada.
Alegre,
de bem com a vida era a responsável pelo Departamento de Braile da biblioteca
municipal ali na Avenida Presidente Vargas. Falei com ela pela primeira vez ao
telefone. Esfuziante, engraçada e falava gritando. Deduzi que era cega. Acertamos
meu ingresso ali para a atividade que realizei por um bom tempo, a leitura para
deficientes visuais. Narrei livros, matérias de revistas e notícias de jornais.
Todas
as segundas-feiras, eu entrava naquela sala abarrotada de imensos livros propositalmente
na ponta dos pés e ela, da sua mesinha:
“Boa
tarde, Beto. Sou cega, mas não sou surda nem boba.”
E
caía na gargalhada.
Na
ausência da visão, outros sentidos se destacam. Num asilo em Jacarepaguá
conheci um alegre grupo de teatro composto por cegos. Simpáticos toda a vida. O
trabalho deles era bem interessante porque satirizavam situações do dia-a-dia e
seus personagens não tinham qualquer deficiência. Até brincavam com isso.
“Você
parece cego, rapaz!”, diziam em um dos esquetes.
Adorei
conhecê-los. A única coisa que deu certa irritação é que falavam gritando
demais. Cheguei a ficar com dor de cabeça. Antes mudos que cegos.
Mas
eu estou aqui enrolando e não falei de Luzinete.
Luzinete
foi uma senhora que conheci durante meu desfile pela Escola de Samba Acadêmicos
do Cabuçú. Por ser deficiente visual, chegara ao Sambódromo por uma mulher
muito zelosa, que sempre lhe trazia água, perguntava se queria comer alguma
coisa. Na verdade, conheci primeiro a tal acompanhante que surgiu desesperada,
cachorro quente na mão procurando por ela.
“Alguém
viu uma senhorinha negra, magra? É cega e está comigo. Fui buscar algo pra comer
e ela sumiu. Que impossível!”
A
irrequieta estava na ala logo atrás conversando com dançarinos de salão.
A
mulher foi lá e a trouxe pelo braço debaixo de bronca. Agarrou sua mão com
força. Dela não se desgrudaria de jeito algum. Definiram suas posições na ala e
ficaram na espera até avisarem que estava na hora da escola entrar. Luzinete
riu de alegria, deu pulinhos numa euforia danada.
Era
sua primeira vez. Eu a achei uma graça.
E
começou aquele movimento de gente, as alas avançando pela concentração.
Nesse
momento, o coração da gente vai batendo forte. O povo canta, a bateria ataca, os
fogos pipocam para anunciar nosso surgimento na avenida.
O
enredo era uma homenagem às Marias.
Mas
quando nossa ala dobrou para a esquerda e foi entrando pela Sapucaí adentro, o
delírio tomou conta geral, todo mundo enlouquecido pulando, cantando alto o
samba.
Eu
lá me acabando, quando de repente, vejo a acompanhante de Luzinete soltinha,
sambando como uma cabrocha, os braços para cima jogando beijos e acenando para
a plateia. Corri até ela e quis saber:
“Cadê
a Luzinete?”
Ela
se deu conta do descuido. Colocou as mãos na boca.
“Meu
Deus! A Luzinete! E agora?”
Olhamos
pela ala. Nada dela.
Um
pânico crescente. Procura daqui, procura de lá...
Alguém
acenou para avisar sobre o paradeiro da cega desaparecida.
Cataram
Luzinete entrando por dentro da bateria, quase levando gongada no quengo. Mesmo
com aquele risco, ela estava feliz.
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