Cantando para o Brasil


Era sexta-feira, dia 06 de outubro de 2000, mais uma noite de cantoria no Clube Militar da Lagoa. Uma chuva forte caía sobre o Rio de Janeiro. Eu no interior do ônibus 409 paralisado por um engarrafamento gigantesco na Rua Jardim Botânico.
No assento do lado oposto, um sujeito magro de óculos me observava, analisava meu visual, eu todo arrumado, de chapéu panamá na cabeça e um cavanhaque acidental por uma barba mal feita que me dava certo ar cafajeste. Ele não resistiu a pergunta:
“Você é nordestino, não é?”
Achei engraçado aquilo.
“Não. Sou daqui mesmo.”
“Ah é? É que sou fotógrafo e observo as pessoas. Eu achei...”
“Sou carioca da gema”, reforcei.
“Mas é cantor, não é?”
“Sim. Estou indo agora cantar.”
“Cantor de forró, acertei? Acho que já vi você e seu conjunto na televisão.”
Não segurei o riso.
“Olha... Eu até canto forró, mas não é minha especialidade.”
Ele se desculpou do engano, mas continuou a me observar, talvez, não convencido das minhas respostas. Impaciente, abri o guarda-chuva e resolvi saltar. Fiz o resto a pé.
Cheguei ao Clube Militar com meia hora de atraso. Apesar da chuva, muita gente esperava o início do happy hour.
Os irmãos Santana ajustavam seus instrumentos, eu me posicionando para começar.
Um mulato se aproximou de mim:
“Vocês vão cantar forró?”
“Também. Aqui a gente canta de tudo um pouco.”
“Canta Morango do Nordeste?”
“Não. Não canto não.”
Ele coçou a cabeça.
“Achei que vocês eram uns cabras lá de Pernambuco.”
“Você é de lá?”
“Sou sim e vim ao Rio de Janeiro pra tocar.”
Sacou de um cartãozinho e me entregou.
“Um músico?”
“Toco zabumba. Meu irmão toca acordeão e meu primo, triângulo e pandeiro.”
“Qual o repertório de vocês?”
“Muita coisa. Mandamos Gonzaga, Jackson, João do Vale.”
O técnico do som avisou que estava tudo pronto. O mulato se despediu dizendo que iria ao Mistura Fina ali perto prestigiar um amigo num show sobre Nara Leão.
Comecei logo a cantar para um público constituído, na sua maioria, por pessoas idosas. Um ou outro jovem assistindo, mas a predominância era de militares com suas respectivas esposas. Havia também uma mesa só de mulheres, provavelmente, viúvas.
Cantei Ary, Herivelto, Orestes... Quando anunciei o primeiro intervalo, uma delas veio e apertou minhas bochechas.
“Que Jesus te ilumine! Você é um amor! Você é mineiro, meu filho?"
"Não. Sou carioca", respondi.
"Ora... E esse seu jeito calminho? Eu jurava que era de Minas, uai!”
Tascou-me um beijo e me arrastou até a mesa delas. Eram de Barbacena. Fiquei o intervalo todo sentado com a mulherada, falando de sotaques, rindo com as bobagens que me diziam. Retornei para o segundo set para cantar bossa nova. Casais se levantaram para dançar. Como sempre, virava um baile. Emendei uns choros. Foi quando notei uma senhora magra, enfeitada igual árvore de Natal. Ela me olhava com austeridade. Talvez não estivesse gostando. No momento solo de cavaquinho do Ailton Santana, ela se levantou e veio me abordar:
"Você é gaúcho?"
"Não. Sou carioca."
"Se não é gaúcho? Por que esse chapéu? Não gosto desse chapéu."
"Faz parte do show, senhora."
"Não, não. Isso esconde seu rosto. Por isso que a televisão não descobriu você."
Fiquei desconsertado. Ela me obrigou a tirar o chapéu e sorriu.
"Agora sim. Um rapaz bonitão, talentoso com esse treco da cabeça.”
Fez que ia, mas voltou.
“Chapéu é coisa de gente atrasada, gente velha."
Antes de retornar ao seu lugar, entregou-me um guardanapo com algo escrito.
"Aproveita e canta essa música pra mim. É de um conterrâneo do meu pai."
Abri o bilhete para ler: “Matriz e filial”, do Lupicínio Rodrigues.
Atendi ao pedido dela.
O segundo set durou uma hora mais ou menos. Com o novo intervalo, procurei a mesa de uma amiga minha, a Bebeth. Logo um coronel reformado veio tirar nossa tranquilidade. Segurou a mão dela, beijou e saudou:
“Quero cumprimentá-la pelo talentoso maridão.”
Ela riu muito daquilo, mas não o contrariou. E ele para mim:
“Como se chama sua linda esposa?”
“Bebeth.”
“Bebeth...”, repetiu. “Nome de princesa. Vocês são de São Paulo, acertei?”
“Não senhor. Somos cariocas mesmo.”
“Mas, seu jeito de falar e cantar... Achei que fosse paulista.”
Contou que era de Piracicaba, voltaria no dia seguinte para o casamento de uma neta e que adoraria levar meu show para lá. Apertou minha mão e, já se afastando, deu uma olhadinha marota para minha amiga e perguntou:
“Seu nome é mesmo Bebeth, minha filha?”
Eu respondi antes dela:
"É nome artístico que nem chacrete. Sou Beto e ela é a minha Bebeth.”
Minha amiga riu escancaradamente. Uma senhora baixinha que ficara de longe com os olhos pregados na nossa mesa, veio fazer dar sua contribuição ao momento.
"Vi você rindo, minha filha. Não tenha vergonha de apoiar seu marido.”
“Mas... Eu apoio ele sim.”
“Posso também lhe dar outro conselho?”
“Claro.”
“Não exiba suas pernas dessa maneira. Não fica bem para uma mulher casada."
E se retirou. Não entendemos nada. O elenco daquela noite estava bem “puxado”.
No último set, mandei uns sambas bem animados. Depois foi o momento forró, onde cantei “Enquanto engomo a calça” do Ednardo. Os casais na pista se acabando.
Encostado numa parede, um rapazinho assistindo. De vez em quando, saía, mas voltava. Tinha a expressão aflita. Fez um sinal querendo falar comigo. Consenti.
“Será que você poderia cantar parabéns?”
“Claro. Para quem?”
“Pra mim.”
Estava completando dezessete anos naquele dia.
Atendi seu pedido. Todos cantaram e bateram palmas. Depois, foi a vez do pai dele vir falar comigo para agradecer. Cinquenta e poucos anos, cachimbo na boca, delegado de polícia. O filho, estudante de pré-vestibular para Direito. Os dois de Curitiba.
Antecipei qualquer indagação.
“Não sou paranaense, viu? Sou do Rio de Janeiro.”
Os dois me deixaram seus telefones e e-mails para, quem sabe um dia, eu ir até a casa deles no Paraná ou até uma fazenda em Goiânia.
Chegada a hora da saideira. Mandei um pot-pourri de Dorival Caymmi e uma morena de longos cabelos e ar debochado veio me cumprimentar:
“Sabia que você era dos meus.”
“Dos seus?”
“Baiano.”
“Eu, baiano?”
“Sim. E deve ser lá de Salvador como eu.”
E me lascou um beijo.
Encerrada a apresentação, eu me despedi de todos e sai. Lá fora, a chuva diminuíra bastante. Passei pela portaria e já ia atravessando a rua quando um senhor bem branco de boné na cabeça veio correndo atrás de mim, acenando com um papel. Era diretor de um clube em Niterói e queria que eu me apresentasse lá.
Apertou minha mão com força e disse:
“Olha... Estou comovido. Fiquei ouvindo você cantar e me deu uma saudade danada de tantas coisas, de algumas pessoas, da minha terra. Sou de Uberlândia.”
Fiquei esperando alguma pergunta maluca. Ele continuou:
“Sua voz me inspirou a escrever este poema. Queria dá-lo a você. Não repare, hem?”
Abriu uma folha de papel e leu em voz alta aquela inusitada composição:
“A chuva cai fria lá fora e eu aqui nesta grande varanda
Lembrando você, minha amada, que saudade no meu coração
Sinto o beijo, uma dor tão intensa, um calor, a saudade é imensa
E você, que exala, perfuma, esse cheiro de flor, tão ingênuo
É o pulsar deste meu coração, traz a grande emoção, um querer
Este amor que em mim quer viver, é você, meu amor, é o meu ser.”
Terminada a leitura, dobrou o papel e me entregou.
“Se der pra fazer uma música disso, faça, meu rapaz. Se não der, não deu.”
Apertou mais uma vez a minha mão e retornou veloz para dentro do clube.
Dentro do ônibus 409 quase vazio, exausto, chapéu panamá no colo, remexendo o cabelo desgrenhado, reli aquele papel e fiquei pensando naquela noite.
Eu provocara emoções nas pessoas. E cantara para quase todo o Brasil.

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