O coqueiro maldito
Sexta-feira,
12 de outubro de 1990. Eu, o amigo Maurício, a irmã dele Aurora e meu irmão
Italo dentro do fusca azul viajando para mais um final de semana como outro
qualquer na nossa casa de praia num condomínio em São Pedro d’Aldeia.
Jamais
poderia imaginar a tremenda encrenca em que nos meteríamos.
A
noite foi normal, tranquila. Deixamos as bagagens na casa, nos fartamos com as pizzas
do restaurante Vovó Chica em Araruama, e nos enchemos de chá para digeri-las
antes do sono.
“Caramba...
A gente só faz comer.”
Dias
antes, eu encarara um churrasco com piscina pelo aniversário do meu pai.
Nossa
casa no condomínio Moinhos d’Aldeia era ampla com sala grande, boa cozinha,
três quartos e varandão. Fora isso, meu pai construíra um anexo com uma suíte,
sauna, garagem coberta e churrasqueira.
Quando
amanheceu o dia é que pude verificar a última novidade da casa: descansando
sobre um cavalete, uma lancha tinindo de nova, branca, estofamentos confortáveis
e branquinhos, um painel bonito com volante e um grande visor de acrílico. Toda limpinha, cheirinho de novo. Meu pai a
adquirira de pouco e tirara brevê para pilotar. Colocara na água uma única vez.
Meu irmão participara da estreia. Eu não, porque estava ausente. Fiquei curioso
com aquilo, mas não ousaria mexer.
Aquele
sábado ensolarado nos obrigou a irmos logo para a praia, para nossas caminhadas
através da salina até uma pontinha de areia onde se formava quase uma ilhota.
Horas depois, Claudia, a outra irmã de Mauricio, apareceu com a amiga
Valerinha. Trouxeram bastante carne para churrasco. De novo a comilança.
Obviamente,
enquanto comíamos, a curiosidade delas em cima da lancha.
“Quem
de vocês sabe pilotar isso?”
Meu
irmão logo se apresentou como o comandante do momento. Disse que não era
difícil, era uma moleza de pilotar e que poderíamos passear no dia seguinte.
Senti que aquilo não seria uma boa ideia e aconselhei para deixarmos o bicho
quieto. Mas a euforia dos demais foi se acirrando e meu irmão se animando.
O
domingo veio com sol forte e ventania. Lá estava meu irmão rodeando a lancha.
Eu preocupado:
“Tem
certeza disso? Não vai dar problema?”
“Problema
nenhum. Eu vi como se faz.”
Tremi.
O grupo se organizou e já estávamos nós empurrando o reboque da lancha para
fora. Logo de início, paralisou bem na saída da garagem, com as duas rodas
enormes traseiras enfiadas no caimento do meio fio da rua. Empurra daqui,
empurra de lá, empurra para frente, empurra para trás. Até que o reboque se
desprendeu. Uma dificuldade manobrá-lo e apontá-lo na direção da praia.
“Como
é que levamos isso até lá?”
Meu
irmão apontou para a passarela de pedestres, um caminho de caramanchão com suas
estacas pintadinhas de branco em meio a um coqueiral e parquinho para crianças.
“Será
que não vão encrencar da gente passar com ela por ali?”
“Claro
que não.”
Na
verdade, não deveríamos fazer aquilo. O certo seria levarmos o reboque engatado
num carro até a rua detrás, onde havia uma plataforma para lanchas.
“To
achando que a passarela é apertada. Não vamos conseguir.”
Meu
irmão teimou:
“Bobagem.
Vai ser mole, mole.”
E
assim foi feito. Fomos empurrando o reboque que passava rente as estacas do
caramanchão até chegarmos à praia lotada. O povo vendo e comentando.
Porém,
um incidente nos tirou do foco.
O
síndico do condomínio dera de presente ao filho um jetski, que o garoto evoluía,
rodopiava, fazia mil peripécias em alta velocidade. De repente, ele veio vindo,
vindo, vindo igual um alucinado, o povo deitado se levantou e correu. E ele foi
areia adentro se estourar no casco da lancha do pai.
O
homem ficou alucinado com a imprudência do filho. Gritou muito. Na verdade,
estava mais indignado com o fato do moleque ter acertado seu patrimônio.
“Tanto
lugar pra bater e foi logo na minha”, se queixou.
Ao
ouvir aquilo, Valerinha ficou nos cascos e quis iniciar uma briga com o homem. “Esse
idiota preferia ver alguém atropelado. Palhaço.”
Nessa
altura do campeonato, nossa lancha já estava na água com todo mundo dentro.
Contivemos nossa amiga revoltada, mas não evitamos que o cara escutasse. Ele veio
até nós, mas não aconteceu quizila. Observou o que fazíamos e perguntou ao meu
irmão se meu pai também viera. Não lhe demos assunto.
Imediatamente
meu irmão virou a chave, mas o motor não quis pegar. Nova tentativa.
“Acho
que a bateria arriou.”
Claudia
percebeu uma peça metálica no chão e a agarrou para mostrar. Era uma tampa de
registro rosqueada.
“O
que é isso, gente?”
Ninguém
soube responder, tampouco meu irmão. Logo a resposta veio ao notarmos a água que
subia pelo assoalho.
“Meu
Deus! É a tampa da lancha!”
A
bateria não arriara. A bateria se afogara. Empurramos a lancha de volta para a
areia.
E
todo o povo vendo aquilo. Fomos buscar um balde para tirarmos a água de dentro.
A bateria também foi retirada.
“Vamos
colocar no sol.”
“E
agora? Mixou nosso passeio. Vamos guardar essa lancha.”
Mas
um comentário de Maurício daria prosseguimento aquela saga:
“É
a mesma marca de bateria do Herbie.”
Herbie
era o fusca azul dele.
Resultado:
instalou-se a bateria do Herbie na lancha.
Livres
de boa parte da água, a tampa do registro devidamente colocada, lá fomos nós na
lancha pela lagoa. Uma euforia. Vento forte no rosto, cabelos, a emoção das
manobras. Meu irmão exibindo seu talento de piloto. Acelerava, diminuía.
Apontamos na direção da praia do Sudoeste.
“Que
tal invadirmos a praia do Roberto Marinho?”
“Oba!
Vamos nessa!”
Eu
e Claudia, os mais cheinhos na constituição física, íamos deitados no caput com
as costas grudadas no acrílico do painel. Paramos uns vinte metros da praia
particular e mergulhamos. Água quente, deliciosa, um sossego. Não sei quanto
tempo ficamos ali. Num determinado momento, nadei até a areia para caminhar um
pouco. Logo voltei e me deparei com minha turma toda na algazarra, os
estofamentos servindo de boias.
A
brisa logo se tornou vento. E o vento virou ventania.
Um
aviso para que fossemos logo embora. Estava ficando tarde, estávamos famintos e,
dos biscoitos que levamos, só restavam farelos por toda a lancha.
Embarcamos.
Dada a partida para uma volta de muita apreensão. Íamos contra o vento forte, a
lancha batendo, saltando de encontro com as marolas. Eu e Claudia na mesma
posição de antes, deitados no caput, batendo nossas costas no acrílico. Escutei
um estalo, algo rachando.
“Ai,
meu Deus!”
Um
medo enorme de sermos cuspidos para fora. E a lancha saltando igual cavalo
bravo. Olhei para trás. Meu irmão segurando o volante parecia não enxergar nada
direito. Aurora ao seu lado. Na parte traseira, Valerinha e Mauricio agarrados
num único colete salva-vidas. Finalmente alcançamos a praia do condomínio.
Trouxemos o reboque até a beira d’água. Mas na hora de colocar a lancha em
cima...
Quem
disse que conseguíamos?
E
empurra a lancha daqui, empurra dali. Nada de a encaixarmos no cavalete.
“Vamos
descer mais o reboque.”
A
situação só piorava. Praia de lagoa é lodo só e as rodas do veículo foram
atolando.
“Se
ao menos conseguirmos colocar a lancha em cima, o resto a gente resolve puxando
com o carro da Valerinha.
Quase
não havia gente na praia. Deveria ser umas cinco da tarde. E nós ali, exaustos,
agarrados na lancha, tentando levantá-la, tentando de todo o jeito. Escorregávamos,
puxávamos daqui e dali. Esforços hercúleos.
Inesperadamente,
um garotão todo musculoso vem passando. Parou diante daquela cena patética e
perguntou:
“Vocês
querem ajuda?”
“Claro.
Pelo amor de Deus.”
Ele
foi direto, agarrou a traseira da lancha e, como se ela fosse uma pluma, a
colocou sobre o reboque. Ficamos abismados com aquilo. Um cara sozinho
resolvera.
“Valeu,
gente. Até mais.”
E
seguiu correndo. Não dava para acreditar.
O
próximo passo seria puxar o reboque. Conseguimos uma corda bem comprida na
administração. E Valerinha veio vindo por dentro do caramanchão, passando bem
rente às hastes, com seu chevetinho verde até a beirada da areia.
Amarramos
a corda. Ela foi dando ré. Nada do reboque se mexer. Ela aumentou mais a
pressão e a corda se soltou. Nova amarração, nova tentativa. A corda
arrebentou.
Chamamos
um funcionário do condomínio que vinha passando. Ele deu um nó poderoso e, com
todos empurrando o reboque, conseguimos tirá-lo do atoleiro.
E
com muita alegria, devolvemos a lancha para a garagem.
Um
sufoco.
No
dia seguinte, o Herbie recebeu sua bateria de volta e todos foram embora.
Só
eu fiquei.
Dias
depois, meu pai apareceu de surpresa no condomínio. Desconfiei que o síndico o
tivesse alertado sobre nossas peripécias. Ele saltou do carro e olhou na
direção da garagem. De cara, viu a lancha mal arrumada, toda torta em cima do
reboque.
Logo
se exasperou:
“O
que andou acontecendo aqui?”
Foi
até ela. Viu a bateria num canto da garagem, os estofamentos todos se
estragando, manchados de mofo, o assoalho de madeira fora de lugar.
Gritou
meu nome e eu fui apavorado receber a bronca.
“O
que aconteceu na minha ausência? O que fizeram com a lancha?”
Tive
que contar. Não teve jeito.
“Que
presente de aniversário vocês me deram!”
Ele,
ao verificar o painel, percebeu a rachadura que nossas costas haviam provocado
no acrílico.
“E
isso aqui? O que significa isso aqui?”
Senti
que eu iria levar a responsabilidade de todo aquele desastre.
“Sabe
o que foi... Foi um coco.”
“Um
coco?”
“É...
Quando passávamos com o reboque pelos coqueiros, um coco caiu bem em cima da
lancha.”
“Como
é que é? Você quer que eu acredite que um coco causou todo esse estrago?”
E
seus gritos foram ouvidos por todo o condomínio, pelos arredores, certamente,
por toda a Região dos Lagos.
Comentários