O vingativo

O amigo Marcus Vinícius está vivendo perrengue por ter contratado mau profissional para reformar sua sala. Uma das paredes ficou parecida com a superfície da Lua. Isso me fez lembrar um personagem curioso que marcou minha infância, o Roberto.
Roberto era o típico “Faz tudo”, pedreiro, mexia com hidráulica e eletricidade, mas o seu ofício principal era o de pintor. Era bom no que fazia, buscava ser perfeccionista e trabalhou alguns anos na casa da minha avó materna e na nossa. Negro, sem grande estatura nem corpo malhado, bonito, simpático, sempre o sorrisão aberto. De vez em quando, era visto se engraçando com alguma garotinha. Minha tia o provocava, ameaçava contar tais estripulias para a mulher dele. Realmente, ele era casado com uma moça que até já estava grávida. Sujeito boa onda. Só não levava desaforo para casa. De vez em quando, se amuava com clientes que o destratavam, muitos o discriminando pela cor da sua pele, um pé para brigas, distribuição de gritos e tapas. Depois, retomava o bom humor de sempre. Mas seu espírito vingativo estava sempre alerta. Era mais complacente com crianças, no caso, eu. Quando vinha à nossa casa, Roberto precisava ficar alerta quanto à minha pequenina pessoa porque, não sei explicar a razão, eu vivia aprontando. Coisa de petiz. Bastava ele chegar, trocar de roupa, vestir o macacão e ir cuidar de algum serviço para eu planejar alguma traquinagem. Eu costumava entrar no quartinho dos fundos sorrateiro para inspecionar seus objetos. Catava alguma coisa e escondia pela casa. Podia ser o que fosse: documentos, dinheiro, maço de cigarros, isqueiro... Algumas vezes, extrapolei na brincadeira e joguei tudo dentro do vaso sanitário.  
Ele se desesperava com as repetidas travessuras, mas tinha simpatia por mim.
Uma vez, Roberto resolveu se vingar e me entregou uma lagartixa enorme morta e já seca. Agarrei aquele presente todo feliz e fui mostrar para minha mãe na sala. Eu ia apertando aquilo com meus dedos, fazendo estalar.
- Mãe! Olha o que eu ganhei do Roberto!
Ela me obrigou a jogar aquilo no lixo e lavou minhas mãos com álcool.
Em outra ocasião, o regalo foi uma barata. Nunca me assustei com tais seres e logo repetia os malfeitos. Roberto era figuraça, dessas pessoas que passam pela vida da gente e, sem que se saiba explicar, desaparecem para sempre.
Numa das últimas vezes em que o vi, andava irritado com uma cliente. Segundo ele, era uma granfina metida a besta, prestes a se mudar para um apartamento novo, que o contratara para pintar a sala. Queria que fosse tudo na cor gelo. Ele fez a pintura, concluiu a tarefa rápido. Quando a mulher veio conferir, se desagradou. Classificou como porcaria e o tratou abaixo de cachorro. Exigiu que refizesse o serviço, porém, que se mudasse. Resolveu que o ambiente deveria ser todo em creme.
Roberto providenciou o galão da referida tinta e fez a repintura.
Porém, na hora do acerto de contas, a pedante olhou tudo e se enfureceu:
- Você quer que eu lhe pague por esta merda? Olha só a parede! Manchada, suja. Só me falta pintar igual a sua cara! Mereço uma bosta dessas?
Ele ouviu aquilo quieto e corando de ódio pelo escancarado preconceito. Prometeu refazer mais uma vez e colocar no jeito que ela merecia.
Saiu decidido até a loja de tintas e comprou novo galão.
Dois dias depois, mandou recado para a cliente dispensando o pagamento e dizendo:
- Pensei bem e resolvi pintar igual a minha cara.


A mulher correu ao apartamento para conferir e constatou assombrada: a sala fora toda pintada de preto.

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