O filho de...
Assim que meu espetáculo terminou no Centro de
Referência da Música Carioca Artur da Távola, formou-se uma grande fila para os
cumprimentos. Eu apresentara ali um show com pérolas da nossa música, todas elas
parcerias de Lamartine Babo, Alberto Ribeiro e Braguinha com um acompanhamento
luxuoso de uma banda de craques formada por Patrick Angello (violão de sete
cordas), Pedro Cantalice (cavaco), Sylvia Bastos (sax), Alexandre Bittencourt
(flauta), Luiz Augusto Guimarães e Guilherme Dizzy nas percussões. Na plateia,
além de amigos queridos, uma neta do Lamartine e minha prima Maria Cecília,
filha do Braguinha. E eu lá cumprimentando as pessoas até que um casal veio
(Nina e Andre), elogiaram o show e perguntaram se eu morava em Saquarema,
porque me viram passar pela praia algumas vezes. Contei que tinha uma casa em
Itauna e que estaria lá no dia seguinte bem cedo. Ao saberem disso, eles então me
ofereceram carona. Também iriam porque haviam combinado encontro com amigos
saquaremenses.
Durante a viagem, onde falamos sobre o show e também de
vários assuntos, como o trabalho de se manter uma casa de praia, Nina observou
a tira que envolvia meu muque quase no ombro. Perguntou o que era aquilo.
Levantei o braço para mostrar o que eu ocultava junto à axila: as chaves da
casa.
Usando dois cadarços, um preto e um vermelho, eu
fizera uma trança para prendê-las, só que maior que uma pulseira, era uma
espécie de bracelete que eu levava preso ao meu corpo para garantir a não perda
das chaves durante as caminhadas pela praia.
Em Saquarema, fomos direto a um restaurante no
shopping e, nesse almoço, Nina e Andre exaltaram amigos que moravam ali, principalmente
uma família constituída por um casal bem idoso e uma única filha. Nina
insistiu:
- Vamos até lá com a gente. Você vai adorar o Seu Zé
Luiz.
Cedi. A residência dos referidos amigos ficava na
Avenida Oceânica, uma das vias principais de Itauna, e duas quadras de
distância da minha casa. Atravessamos um
jardim bem cuidado onde logo fomos recebidos por um senhor extremamente
simpático. Com ele, uma senhorinha encantadora que nos conduziu até uma mesa na
cozinha e avisou que passaria um café. Aqueles meus vizinhos me encheram de
perguntas sobre minha casa e sobre o tempo que eu frequentava aquela cidade. No
meio da conversa, eis que surgiu a filha deles, uma mulher de seus quarenta e
poucos anos, gordinha, ausência de vaidade, jeito abrutalhado. Olhou para mim,
fez um cumprimento com a cabeça e bateu o olho no meu braço, o meu trançado das
chaves.
- Viu aquilo ali, papai? – comentou sem reprimir.
- Vi sim.
Levei uns segundos para entender e toquei com o dedo no
foco da atenção:
- Vocês estão falando disso?
- Sim – respondeu o velho – Vi logo que você é um dos
nossos.
- Como assim?
- Percebi assim que vi. Você é como eu, filho de...
Bem... Você sabe quem.
Emudeci. Nina e Andre, que sabiam a verdade, nada
disseram.
A filha do casal cutucou o pai:
- Leve o amigo lá fora pra conhecer a sua obra.
- Bem lembrado, filhinha. Venha, meu rapaz.
O velho me conduziu ao jardim. Caminhamos pelo gramado
até um canto rente ao muro. Ele apontou para uma recém-construída grutinha de
pedras redondas.
- Eis aí a casa que fiz pra “ele”. O que você acha?
- Puxa... Está muito bem feita – elogiei, tentando
disfarçar meu constrangimento.
- Você acha que “ele” vai ficar bem aí?
- Sim... Sim... Acho que... – balbuciei – Ficou mesmo
legal.
- Que bom que gostou. Eu estava inseguro, mas agora,
falando com quem entende...
Comecei a suar frio. Eu entendia do que? Quem seria “ele”?
Resolvi abrir o jogo:
- Olha, Seu Zé Luiz... Na verdade, essa tira...
- Não, não, não diga nada – interrompeu o homem – Não vamos
falar sobre “ele” aqui, ainda mais que o Andre e a Nina não acreditam no que
nós acreditamos. Vamos voltar lá para dentro. Não pude me explicar.
Durante o café na copa, não se tocou mais naquele
assunto. Falamos muito de música, da política do lugar e das frequentes serestas
que o casal promovia naquela casa. E eu pensando no equívoco causado pelo meu
bracelete. Lembrei-me de um aniversário em Vila Isabel numa casa, roda de samba
rolando no quintal. Eu saíra direto de Saquarema para lá e, por força do
hábito, esquecera completamente de tirar a tal tira do braço. Num determinado
momento da festa, um grupo iniciou um debate que falava de liberdade e de
respeito às religiões. Quis participar da conversa, mas percebi um casal
jovenzinho me olhando atravessado. Até que o rapaz não resistiu e perguntou:
- Isso aí é de que religião? É coisa de macumba, não
é?
Não gostei nada do jeito como ele falou e respondi de
pronto:
- É sim. Faço magia negra, pratico trabalho pesado pra
destruir inimigos, gente curiosa, gente de olho grande. Você nunca ouviu falar
em Exu Relógio?
O rapaz mudou de cor e se afastou depressa para
cochichar com a namorada.
Passaram a festa toda me evitando.
Mas voltemos ao momento Saquarema. Assim que
terminamos o café, na saída para a Avenida Oceânica, o Sr. José Luiz veio com
um convite ao pé do ouvido:
- Volte aqui lá pelas sete da noite. Vamos fazer uma
festinha pra “ele”. Você bem sabe, não é? Hoje é o dia “dele”.
Concordei com a cabeça muito sem graça e fui embora.
Claro que não voltei.
Longo tempo se passou. Eu estava terminando de pagar
minhas compras no caixa do Mercado Itauna quando surgiu na minha frente o Sr.
José Luiz.
- Puxa, rapaz... Você não foi à nossa festinha.
- Lamento. Não deu pra ir.
- Já sei. Também tinha suas obrigações com “ele”. Eu
te entendo.
Resolvi, numa segunda tentativa, revelar a verdade da
tira no meu braço:
- É que... Senhor... Acontece que... Isso aqui...
- Não, não, não, não diga nada, não diga nada – pediu quase
sussurrando - Não falemos “dele” aqui nesse lugar. As pessoas não entenderiam,
não aceitariam.
Apertou minha mão e sumiu para dentro do mercado.
Eu sai atormentado daquele novo encontro e sem saber,
afinal, que era “ele”.
Comentários